5 O PROCESSO DE JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E O ATIVISMO JUDICIAL NO BRASIL
A expansão da ação judicial é marca fundamental das sociedades democráticas contemporâneas. No Brasil, também se opera a ampliação do controle normativo do Poder Judiciário, favorecido especialmente pela Constituição de 1988, que, ao estabelecer princípios e fundamentos do Estado Democrático de Direito e ao incorporar direitos e princípios fundamentais, possibilita uma ação judicial no sentido de viabilizar tais aspirações sociais.
O Poder Judiciário passa, então, a participar da configuração dos assuntos públicos, fazendo perceber que a lei não é mais o único instrumento útil para a regulação do sistema social da saúde no país, embora seja um instrumento insubstituível e indispensável para assegurar, em sociedades pluralistas e complexas um dos valores fundamentais do direito: a segurança jurídica.
Nesse cenário, a insuficiência da lei em uma sociedade que, em muitas vezes, ameaça a dignidade humana através do constante descaso com que é tratada a saúde pública no país se reflete na necessidade de ampliação do papel do juiz, já não mais neutro, mas como aquele que atua como intérprete da norma, o que não significa uma atividade “alternativa” à lei, senão uma qualificada tarefa de assegurar a sua legítima e devida efetividade ao acesso à saúde.
A partir do exposto, recorre-se à concepção de Barroso (2006, p. 10), para quem a idéia de “ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla do Judiciário na concretização dos valores constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos demais Poderes”.
Ademais, Barroso (2006) invoca dois motivos pelos quais o ativismo judicial encontra espaço no âmbito brasileiro: a) nova composição do STF (por Ministros bastante preocupados com a concretização dos valores e princípios constitucionais); e b) crise de funcionalidade do Poder Legislativo (que estimula tanto a emissão de Medidas Provisórias pelo Executivo como o ativismo judicial do Judiciário).
Tanto a judicialização como o ativismo judicial podem ser compreendidos, de um lado, como importantes fenômenos no processo de efetivação do direito fundamental à saúde, mas, por outro, podem ser utilizados dentro da retórica daqueles que não concordam com o posicionamento do Poder Judiciário face às questões que acabam chegando no âmbito judiciário.
Entretanto, é mister ressaltar que ambos os fenômenos possibilitam reflexões no sentido de gerar um diagnóstico do exercício jurisdicional no tema da efetivação do direito à saúde, além de fomentarem o debate acerca de uma possível ofensa à teoria da Separação de Poderes, especialmente no que se refere às funções típicas do Poder Legislativo e do Poder Judiciário.
Com base no exposto, pode-se afirmar que a judicialização da saúde, “significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário” (BARROSO, 2006, p. 6). Trata-se, portanto, de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais – o Legislativo e o Executivo.
5.1 Críticas à Judicialização da Saúde
Apesar do sistemático descaso com a saúde pública no Brasil, além da ineficiência da máquina estatal na efetivação dos programas de promoção de melhor qualidade no acesso à saúde, legitimando o Poder Judiciário à uma atuação cada vez mais presente no sentido de garantir o direito em comento a pessoas que dele precisam, tal tutela jurisdicional não está imune a objeções e críticas, sobretudo quanto a interferência entre Poderes Públicos.
Uma das posições contrárias à judicialização tem por base a circunstância de estar a norma constitucional a ser aplicada positivada na forma de norma programática. Segundo o artigo 196 da Constituição da República, o acesso ao direito à saúde se dará por programas sociais e não por atuação judicial. Dessa forma, a judicialização da saúde encontra obstáculo na forma como está prevista a efetivação deste direito na Carta Magna.
Apenas para esclarecer, a norma programática vincula comportamentos públicos futuros. Mediante disposições desse teor, o constituinte estabelece premissas destinadas, formalmente, a vincular o desdobramento da ação legislativa dos órgãos estatais e, materialmente, a regulamentar uma certa ordem de relações.
Assim, não teria legitimidade o Judiciário ao tomar medidas previstas em normas programáticas, vez que estas estabelecem uma atuação dos poderes representativos da população, cabendo a estes a elaboração, efetivação e garantia do direito à saúde.
Tal entendimento contorna, ainda, o problema da interferência do Judiciário sobre a esfera de atuação dos demais poderes. Os Tribunais, ao determinar a realização prática de normas programáticas, invadem a independência de escolha do Executivo e do Legislativo, sendo este o cerne da questão.
Outro óbice à judicialização da saúde no Brasil reside na questão da legitimidade democrática. Sustenta-se que cabe aos poderes legitimados pelo voto popular, Executivo e Legislativo, a escolha sobre o modo como os recursos públicos devem ser gastos, pois estes poderes falam, precipuamente, em nome da população, não podendo o Judiciário usurpar tal função, determinando alocação de recursos para determinado exame, tratamento, terapia, cirurgia ou medicamento.
A atuação expansiva do Judiciário tem recebido, historicamente, críticas de natureza política, que questionam sua legitimidade democrática e sua suposta maior eficiência na proteção dos direitos fundamentais. Isto porque juízes e membros dos tribunais não são agentes públicos eleitos, não tendo, portanto, sua investidura o batismo popular.
Há, ainda, o problema da falta de padronização das decisões judiciais sobre a determinação de atuação da Administração para efetivar o acesso à saúde de determinado paciente. É preciso, assim, encontrar métodos que racionalizem e uniformizem o papel judicial.
Além destes obstáculos, a crítica mais frequente reside no tema da reserva do possível. Sob esta ótica, os recursos públicos são insuficientes para atender às necessidades sociais, impondo ao Estado sempre a tomada de difíceis decisões, priorizando alguns serviços ou pessoas em detrimento de outros.
O Supremo Tribunal Federal enfrentou o presente tema no julgamento do Recurso Extraordinário 436966/SP, Ministro Relator Celso de Mello (DJ 26/10/2005), a saber:
Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.
Destarte, a reserva do possível é uma limitação à atividade jurisdicional em matéria de efetivação do direito social e fundamental à saúde.
Por fim, sem a pretensão de esgotar todos os questionamentos, há a crítica técnica. Segundo esta visão, o Poder Judiciário não domina o conhecimento específico instituir políticas de saúde, não tendo como avaliar a eficácia de um tratamento ou medicamento para se promover a saúde e a vida. Ainda que instruído por laudos técnicos, seu ponto de vista nunca seria nunca seria capaz de rivalizar com a Administração Pública. Isto porque o juiz apenas observa o caso concreto, fazendo análise casuística, e não o sistema de saúde como um todo ou o que seria melhor para a coletividade.
6 SUGESTÕES PARA COADUNAÇÃO DA TUTELA JURISDICIONAL DA SAÚDE AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES
Com base em todo o exposto na análise da teoria do mínimo existencial, principalmente quanto aos aspectos positivos e negativos trazidos por Marmelstein, uma possível solução seria, admitindo-se que há uma afirmação explícita de que os direitos sociais possuem eficácia jurídica, possibilitar a atuação jurisdicional garantindo o acesso à saúde de quem a pleiteia desde que esteja dentro das condições mínimas para uma existência digna, sem jamais, porém, permitir que, em análise interpretativa, se esgote o conceito de mínimo existencial.
Marmelstein (2009, p. 316) vai além destes parâmetros. Segundo o doutrinador, “a Constituição Federal brasileira não prevê que apenas um mínimo seja protegido”. Há diretrizes que orientam para uma proteção cada vez mais ampla, principalmente no âmbito da saúde, que se orienta pelo princípio da universalidade do acesso e integralidade do atendimento, o que afasta a idéia minimalista.
Assim, possibilitar-se-ia ampla atuação jurisdicional na tutela à saúde, corroborando-se tal entendimento o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, incorporado ao ordenamento brasileiro em 1992, ao falar em “máximo de recursos disponíveis” para implementar os direitos sociais, o que também é incompatível com uma idéia minimalista.
Por esta visão, teria o Judiciário amplo acesso às escolhas administrativas e legislativas, podendo interferir nos demais poderes enquanto existisse a necessidade de garantir o direito fundamental da saúde constitucionalmente estipulado.
Outra solução pode ser dada pela aplicação do princípio da subsidiariedade. Assim, apenas quando os demais órgãos públicos falharem em sua missão ou simplesmente forem inertes na adoção de medidas necessárias à proteção e promoção do direito à saúde, será justificável uma intervenção do Judiciário, desde que seja possível demonstrar o desacerto do agir ou do não agir dos demais poderes.
Nessa esteira, é importante conhecer o trecho do voto do Ministro Celso de Mello, em julgamento da ADPF 45/2004 (DJ 04/05/2004) no Supremo Tribunal Federal, como transcrito a seguir:
Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integralidade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados e cláusulas revestidas de conteúdo programático.
Ocorre que, em um país como o Brasil, onde os governantes têm sido ineficientes em promover o direito à saúde, não conseguindo fornecer à população a realização dos mais básicos direitos de dignidade, a atuação judiciária para implementar o direito em análise faz-se estritamente necessária para tais finalidades.
Dessa forma, teria, mais uma vez, o Judiciário permissão para intervir na esfera dos demais poderes públicos, a fim de garantir o direito à saúde pleiteado casuisticamente.
No tocante à reserva do possível acima apontada, a escassez de recursos exige que o magistrado tenha preocupação com os impactos orçamentários de sua decisão e entender que uma decisão, além de resolver o caso concreto, gera importantes precedentes, podendo desaguar em um enorme “efeito cascata” que terminará em gastos públicos ainda maiores.
No entanto, “se a decisão estiver dentro da reserva do possível, o direito fundamental não pode deixar de ser concretizado sob a alegativa de que a realização de despesa ficaria dentro da esfera de conveniência do administrador” (MARMELSTEIN, 2009, p. 322).
Assim, cabe esclarecer que a regra não é a interferência do Judiciário sobre as escolhas administrativas. Apenas quando se demonstrar que a atuação administrativa está aquém das expectativas, com base em dados empíricos e consistentes, será legítimo o controle judicial, inclusive através de imposições de certa complexidade.
Com relação a determinações de fornecimento de medicamentos, deve o Judiciário se ater aos dispostos nas listas elaboradas pelo Executivo ou Legislativo, pois se presume que estes, ao delimitá-los, avaliaram as necessidades prioritárias a serem supridas e os recursos disponíveis, além de critérios técnico-médicos. Portanto, o Judiciário só pode determinar o fornecimento de medicamentos constantes de listas oficiais, o que preserva o princípio da separação dos poderes, pois se respeita as escolhas administrativas.
Deve, ainda, o Judiciário estabelecer parâmetros para uniformizar suas decisões, de modo a evitar discrepâncias e insegurança jurídica à população. Assim, dentro do exemplo do fornecimento de medicamentos e tratamentos, além de se ater às listas oficias, devem os Tribunais optar por aqueles com eficácia comprovada, excluindo-se os experimentais e os alternativos, optar por substâncias disponíveis no Brasil e pelas de menor custo, considerando, parcimoniosamente, se o tratamento, exame ou medicamento em análise é indispensável para a vida do demandante e/ou para a dignidade de sua vida.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não é objetivo do presente trabalho esgotar o tema em questão. Isto porque a discussão é extremamente delicada. Muitas vezes, a fronteira entre o princípio da separação dos poderes com a necessidade de garantia do acesso à saúde de quem necessita é bastante tênue. Questiona-se até que ponto deve ser preservada a independência entre os poderes públicos quando uma vida humana se esvai em um leito de hospital, sem a devida atenção, relegada, muitas vezes ao descaso, à falta de medicamentos, de aparelhos, de vagas, de profissionais, à escassez de recursos, à espera indefinida por uma solução.
Quem, em algum momento, precisou e buscou serviços de saúde pública no Brasil, sabe que, raramente, algo adequado está disponível à população. Fazendo alusão a uma mãe que presencia seu filho “à beira da morte” em um hospital público sem profissionais, remédios ou tratamentos, percebe-se que, certamente, nenhum pensamento de preservação da independência entre os poderes lhe chegará. O direito que predomina, e até mesmo domina, o simples caso imaginário, é a vida, através do direito ao acesso à saúde.
Depreende-se, analisando concretamente uma situação semelhante ao singelo exemplo, a importância da tarefa do magistrado ao decidi-la. Sopesar gastos públicos com saúde, separação de poderes com a vida humana, não é um ofício dos mais fáceis. Decidir pela opção de não determinar o fornecimento de um medicamento para preservar a independência entre as esferas públicas é correr o risco de sentenciar o pleiteante à morte.
Por todo o exposto, conclui-se que o direito à saúde, como forma de preservação do direito supremo à vida, deve ser efetivado e garantido pelo Poder Judiciário sempre que presentes os seus requisitos.
Não se quer dizer, aqui, que o princípio da separação dos poderes deva ser totalmente desconsiderado, pois o ideal é que princípios, valores e direitos sejam sempre conjugados para obter soluções que abriguem a todos, o que deve ocorrer também, no caso em comento.
Deve o Judiciário buscar meios de racionalizar sua atuação em nome da segurança jurídica e de preservar o temático princípio, mas não pode deixar de garantir a saúde enquanto direito. Assim, a saúde, sendo um direito social fundamental, gozando de exigibilidade perante o Judiciário, deve ser sempre acolhido se realmente existir. Não pode o Judiciário deixar de acolher um direito fundamental sendo seu dever afastar qualquer lesão ou ameaça de lesão a este direito.
Portanto, embora sendo necessário coadunar o direito e o princípio em análise, aquele não pode ser preterido em nome deste, tendo em vista ser maior e mais importante, uma vez que o elemento primordial de um Estado é o seu povo e não a sua divisão funcional.
REFERÊNCIAS
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