Resumo - Inegável a importância do contrato de compromisso de compra e venda de imóvel para a realidade brasileira. Embora a transmissão do direito de propriedade dependa de registro do título translativo no Registro de Imóveis, o ordenamento jurídico pátrio há muito prestigia transações imobiliárias formalizadas a partir do aludido compromisso particular sem registro, hipótese também hábil a conferir ao compromissário comprador direito obrigacional em face do alienante. E é justamente nesta hipótese, quando a compra e venda materializa-se em instrumento particular sem registro, que se abre margem imensa para conflitos judiciais: de um lado o adquirente postula primazia sobre o imóvel; de outro, credor do alienante defende a penhora sobre o mesmo bem. O presente ensaio visa descortinar o uso fraudulento do compromisso de compra e venda de imóvel sem registro, bem como propor a correta valoração probatória que referido instrumento particular deve merecer quando suscitado em disputa com credor penhorante do mesmo bem.
Palavras-chave – Direito Civil e Processual Civil. Compromisso de Compra e Venda. Prova Documental. Fraude à Execução.
Sumário: 1. Introdução. 2. Contextualização do Tema. 3. Do Compromisso de Compra e Venda de Imóvel. 4. Do alcance da Súmula 84 do Colendo Superior Tribunal de Justiça. 5. Crítica à negociação imobiliária em absoluta clandestinidade. Denotação de má-fé. 6. Da força probante do compromisso de compra e venda sem registro. 7. Conclusão. 8. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
Tarefa árdua é recuperar crédito em execução judicial. É sabido que o tempo do processo não é o mesmo dos negócios jurídicos, felizmente ágeis e eficazes segundo a vontade de seus pactuantes; segundo o que reclama o mundo moderno.
O compromisso de compra e venda[1] de imóvel é contrato sério, enraizado à realidade brasileira, porém às vezes usado de maneira insidiosa para prejudicar terceiro.
A lida diária na execução civil revela que muitos compromissos particulares de compra e venda de imóveis mais transparecem artimanhas forjadas para fraudar a execução do que negócios idôneos, dotados de boa-fé.
O presente estudo objetiva descortinar indícios de seu mau uso e, à luz do sistema processual vigente, propor a melhor valoração probatória que referido contrato deve merecer quando suscitado em disputa com credor penhorante do mesmo bem.
Antes, contudo, carece ser dito que a matéria nada tem de inusitada. Pelo contrário. Trata-se de tema bastante dissecado nas lides país afora que, no entanto, às vezes não recebe a solução mais consentânea com o sistema processual vigente.
2. CONTEXTUALIZAÇÃO DO TEMA
O cerne do problema consiste em saber se o instrumento particular reflete com fidedignidade a data de imissão na posse do imóvel pelo compromissário comprador. Dúvida inexiste quando a compra e venda é celebrada por escritura pública ou contrato particular levado a registro no Cartório de Imóveis. A publicidade que informa estes atos permite apontar com segurança a data da compra e venda.
Contudo, a problemática reside no compromisso de compra e venda de imóvel não registrado e desacompanhado de mínima nota de publicidade, a exemplo de reconhecimento de firma das partes ou extração de cópia autenticada do instrumento contratual (contrato de gaveta). Nesse caso, margem imensa de dúvida existe sobre a verdadeira data de celebração do negócio jurídico.
A saber, penhorado um imóvel, não raro o exequente depara-se com terceiro embargante reivindicando precedência sobre o bem. Legitima-o a Súmula 84 do Colendo Superior Tribunal de Justiça. Serve-lhe de fundamento contrato particular de compromisso de compra e venda não registrado apontando data de celebração anterior à execução aforada contra o devedor alienante.
Nesse contexto ganha relevo discutir se referido instrumento contratual, por si só, constitui prova idônea da data da compra e venda a ponto de preterir penhora do exequente.
3. DO COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL
Sem a pretensão de esgotar o tema, cumpre ao menos gizar os seus contornos básicos.
Sílvio de Salvo Venosa[2] leciona que:
“Pelo compromisso de compra e venda de imóvel (...) os poderes inerentes ao domínio, ius utendi, fruendi et abutendi, são transferidos ao compromissário comprador. O promitente vendedor conserva tão-somente a nua-propriedade, até que todo o preço seja pago. Nessa situação, o ius abutendi, direito de dispor, não é transferido de todo, mas esmaece para o vendedor à medida que o preço é pago. Embora a função de garantia nesse contrato não seja sua característica principal, é elemento marcante do instituto”.
Diversas razões concorreram para a larga utilização do compromisso de compra e venda no Brasil. Uma delas está implícita na doutrina acima. A saber, tratando-se de bens imóveis, geralmente de elevada monta, convém que suas transações se façam mediante parcelamento do preço. Nesse contexto o compromisso de compra e venda assume relevante papel ao propiciar que o promitente vendedor adie a transferência do direito real de propriedade até o pagamento integral do preço[3].
Assim, enquanto não adimplido todo o preço o compromissário comprador conserva mero vínculo obrigacional em face do promitente vendedor, cujo direito é proporcional ao montante amortizado.
Posteriormente, abusos perpetrados pelo promitente vendedor, lesivos ao interesse do comprador, revelaram a necessidade de se introduzir um direito real (inferior ao de propriedade) oponível erga omnes desde que registrado o contrato.
A saber, no início do século passado o compromisso de compra e venda favoreceu a especulação imobiliária. Para não perderem expressiva valorização experimentada pelo bem[4], promitentes vendedores valiam-se do direito de arrependimento previsto no artigo 1.088 do Código Civil anterior[5]. Dessa forma muitos compromissos de compra e venda foram desfeitos em prejuízo de pessoas humildes que se viam despojadas de seu único imóvel e sem receberem justa indenização.
Para combater essa prática adveio o Decreto-lei 58/37 (aplicável inicialmente apenas a terrenos loteados), que ao atribuir ao compromissário comprador direito real oponível a terceiro (se registrado o contrato[6]), subtraiu do promitente vendedor o direito de arrependimento. O artigo 15 do mesmo diploma confere ao comprador, pago todo o preço, direito de exigir a outorga da escritura.
Posteriormente o regime do Decreto 58/37 foi estendido a terrenos não loteados por força da Lei 649/49, sendo ambos derrogados pela Lei 6.766/79 que passou a regular os compromissos de compra e venda de imóveis urbanos.
Superado esse brevíssimo delineamento do contrato de compromisso de compra e venda, cuida enfatizar que os contratos particulares sem registro situam-se na contramão do que preconizou todos esses diplomas legais: robustecer a posição do compromissário comprador, conferindo-lhe, desde que registrado o contrato, direito real oponível a terceiro[7]. O atual Código Civil também encampou esse direito real (artigos 1.417 e 1.418) [8].
Entretanto, hodiernamente nota-se indiscriminado desvirtuamento do instituto. Deliberadamente celebra-se compromisso de compra e venda sem a intenção de registrá-lo ou outorgar subsequente escritura pública. Essa prática, premida pelo desejo de economizar emolumentos cartorários (escritura pública, registro de imóveis) e imposto sobre a transmissão de bens imóveis - ITBI, acarreta grave insegurança jurídica e faz pulular lides envolvendo compromissários compradores e credores que muitas vezes têm o imóvel transacionado como única garantia disponível no patrimônio do devedor alienante (art. 591, CPC).
4. DO ALCANCE DA SÚMULA 84 DO COLENDO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Desde já cumpre demonstrar que o presente estudo em nada conflita com o entendimento contido na Súmula 84 do STJ, cuja correção e justeza devem ser prestigiadas.
O Colendo Superior Tribunal de Justiça reconheceu que o compromissário comprador possui legitimidade ad causam para defender a sua posse sobre imóvel penhorado em execução movida contra o promitente vendedor. Sua legitimidade subsiste mesmo que inexistente registro público do contrato. Nesse sentido a mencionada súmula: “É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda de compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro”.
Incensurável esse entendimento, tanto que a Advocacia-Geral da União aprovou a Súmula n.º 52, de 3 de setembro de 2010 (Publicada no DOU Seção I, de 09/09/2010): "É cabível a utilização de embargos de terceiros fundados na posse decorrente do compromisso de compra e venda, mesmo que desprovido de registros."
Com efeito, embora a transferência do direito de propriedade apenas se aperfeiçoe mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis (artigo 1.245, Código Civil), negociações imobiliárias multiplicaram-se a partir de simples contratos particulares, muitas vezes de forma bastante singela, mediante emissão de recibos, sinal de arras ou “termo de transferência de posse”.
Tamanho pragmatismo nem sempre evidencia má-fé do alienante ou conluio com o adquirente para lesar terceiro. Muitas vezes a desinformação e o alto custo dos emolumentos cartorários concorrem para que as negociações ocorram nesses moldes.
Assim, atento à realidade brasileira andou bem o Superior Tribunal de Justiça ao reconhecer, com esteio no 1.046, § 1.º, do Código de Processo Civil, legitimidade ad causam ao compromissário comprador, titular de direito obrigacional em face do promitente vendedor.
Esse posicionamento jurisprudencial teve o mérito de divergir da Súmula 621 do Supremo Tribunal Federal, que, muito rigoroso com a realidade nacional, impedia a defesa judicial da posse quando inexistente o registro imobiliário do contrato: “Não enseja embargos de terceiro à penhora a promessa de compra e venda não inscrita no registro de imóveis”.
Com efeito, preocupado com a segurança jurídica, o Supremo Tribunal Federal prestigiava o sistema legal que governa a propriedade imobiliária, segundo o qual é dono aquele que figura como tal no fólio real. Assim, ausente o direito real oponível a terceiro, decorrente do registro do contrato (art. 5.º, Decreto-lei 58/37), subsistiria mero vínculo obrigacional entre os contraentes. Consumada a perda do imóvel em favor do credor penhorante, ao compromissário comprador restaria reclamar perdas e danos junto ao devedor alienante.
Felizmente o Colendo Superior Tribunal de Justiça inaugurou novo entendimento mais consentâneo com a realidade nacional e na esteira do que sinalizava prestigiosa corrente jurisprudencial nos Tribunais inferiores, zelosa em não tolher o direito de ação apenas por que não inscrito o contrato no Registro de Imóveis.
Delineado esse panorama confirma-se a assertiva inicial no sentido de que a Súmula 84 do STJ assegura ao compromissário comprador apenas o direito de ação aos embargos de terceiro, não sendo defeso, contudo, discutir se a data da compra e venda é seguramente comprovada a partir de instrumento particular não registrado e sem qualquer nota de publicidade (reconhecimento de firma, p. ex.). É o que se pretende abordar nesse ensaio.
Em suma, a Súmula 84 é nitidamente processual. Estende ao compromissário comprador a ação de embargos de terceiro; não garante, de per se, a proteção possessória deduzida naquela ação. Este direito será concedido apenas se provado que a compra e venda é pré-existente à ação movida pelo credor e capaz de reduzir o devedor alienante à insolvência (art. 593, II, CPC).
A fim de corroborar essa posição colaciona-se precedente daquela súmula resumido no seguinte trecho do voto vencedor proferido pelo eminente Ministro Bueno de Souza da 4.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n.º 188/PR (processo 89.0008421-6), julgado em 08/08/89 e publicado no DOU de 31/10/89:
“Penso, por conseguinte, que não se aconselha a peremptória recusa liminar da ação de embargos de terceiro, fundada em compromisso de compra e venda destituído, embora, de registro imobiliário, como recomenda a Súmula 621: ao cerceamento do direito de ação, somar-se-ia, no caso, o drástico enfraquecimento da própria posse, que, em casos tais, transcende a mera realidade de fato para invocar a qualificação de posse legítima, as interdicta (fundada em contrato), oponível ao esbulho perpetrado por sujeitos da ordem privada e, portanto, a fortiori, ao esbulho judicial que porventura seja praticado através da penhora ou de outro ato de apreensão.
O que se recomenda, assim, é, data vênia, que os embargos de terceiro, em casos tais, não sejam só por isso liminarmente recusados, mas devidamente processados, decididos como de direito, às instâncias locais incumbindo conhecer e apreciar as alegações e provas deduzidas em juízo”.
Portanto, consoante recomendação final da decisão supra, cabe à instância ordinária sopesar as provas quanto à data do negócio de compra e venda, aquilatando-as e cotejando-as com a ação executiva manejada pelo credor que disputa o mesmo bem.
Assim, conclui-se que o presente estudo, mais situado no terreno probatório, harmoniza-se inteiramente com a Súmula 84 do STJ. Ao compromissário comprador, tenha registrado o contrato ou não, confere-se o direito de ação - autônomo e abstrato[9] - de provocar a atividade jurisdicional, direito este que independe da efetiva existência do direito material invocado (a proteção possessória do imóvel). Cumpre-lhe, pois, na ação de embargos de terceiro, à luz de provas e contraprovas, disputar com o credor penhorante a primazia sobre o bem.
5. CRÍTICA À NEGOCIAÇÃO IMOBILIÁRIA EM ABSOLUTA CLANDESTINIDADE. DENOTAÇÃO DE MÁ-FÉ
Embora a ausência de registro do contrato no Registro de Imóveis não denote por si só má-fé dos contraentes, tanto que ao compromissário comprador não se nega o direito aos embargos de terceiro (Súmula 84 do STJ), por certo que nos dias de hoje um negócio jurídico sério não pode permanecer em total clandestinidade.
Com efeito, beira a temeridade negociar um imóvel mediante contrato particular sem o menor resquício de publicidade. De fato, se levado em conta que o direito real de propriedade apenas é transmitido com o registro do título translativo no Registro de Imóveis (art. 1.245, Código Civil), nada justifica uma negociação imobiliária sem qualquer traço de publicidade, a exemplo do reconhecimento de firma das partes. Por que se admitir tamanha clandestinidade se a aquisição da propriedade requer máxima publicidade?
Necessário, pois, à luz do sistema processual vigente, endereçar sensata crítica ao fetichismo que por vezes pretendem emprestar ao contrato particular de compra e venda sem registro, concebendo-o suficiente, por si só, para preterir legítima pretensão creditória sobre o mesmo imóvel.
Assim, transparece pouca credibilidade um contrato de compra e venda de imóvel que, além de não registrado, não ostenta sequer o reconhecimento de firma das partes. Decisivamente um negócio sério, cujos efeitos deverão ser sentidos apenas entre as partes envolvidas[10], não se compraz com tamanha falta de zelo.
Embora a boa-fé do compromissário comprador também mereça tutela do Direito, tal proteção não pode ser levada às últimas consequências a ponto de se proteger pretensa posse estribada em singelíssimo contrato particular isolado, sem outra evidência de que a imissão na posse, pelo adquirente, de fato ocorreu na data aposta no instrumento particular (compensação de cheque, à época do contrato, dado em pagamento pelo imóvel; contas de luz e carnês de IPTU expedidos em nome do adquirente e anteriores à execução judicial movida contra o devedor alienante; ata de assembleia de condomínio com participação do adquirente antes daquela execução etc.).
Nesse contexto importa não descurar que o Direito, igualmente, não tutela a torpeza. Enfim, não se pode considerar de boa-fé quem deliberadamente opta por um negócio realizado em absoluta clandestinidade.
Outrossim, importante não olvidar que todos podem se prevenir contra a celebração de negócios lesivos a terceiros. A saber, vivemos numa sociedade ágil e receptiva a novos meios de comunicação. Nota-se evidente maximização da informação, o que contribui para que distâncias sejam encurtadas e tempos abreviados[11]. Esse progresso tecnológico inaugurou novo paradigma sociocultural, próprio de uma sociedade mais bem informada e consciente.
Por corolário descabe render exagerado prestígio à pretensa boa-fé de adquirentes de imóveis quando o negócio sucedeu-se mediante contratos clandestinos (de gaveta), circunstância que além de denotar temeridade, explicita o propósito de se fraudar a execução do credor.
Portanto, concessa venia, merece reservas o posicionamento jurisprudencial que indiscriminadamente prestigia compromisso particular de compra e venda de imóvel despido de mínima publicidade, ignorando as regras processuais de valoração da prova documental que enfim passa-se a analisar.
6. DA FORÇA PROBANTE DO COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA SEM REGISTRO
Carece de maior reflexão o peso probatório a ser dispensado a contratos particulares isolados, não registrados e desacompanhados de mínima nota de publicidade, a exemplo de reconhecimento de firma das partes ou extração de cópia autenticada do instrumento.
Para se incursionar no tema, contudo, necessário conhecer a forma e o meio de prova do negócio jurídico de compra e venda.
Dispensa-se a forma solene. A saber, razões de ordem prática impõem forma livre ao compromisso de compra e venda (art. 107, Código Civil)[12], cuja aparente insegurança é contrabalançada pela exigência de registro do contrato no Cartório de Imóveis como condição para se atribuir direito real ao compromissário comprador[13]. Prova disso são os sucessivos diplomas legislativos que contemplaram essa espécie contratual, a começar pelo Decreto-lei 58/37 (art. 11), Lei 649/49, Lei 6.776/79 (art. 26) e o artigo 1.417 do atual Código Civil que, sem exceção, admitiram sua celebração por instrumento particular. Portanto, a escritura pública apenas é exigida posteriormente para transmissão da propriedade (art. 108, Código Civil)[14].
Quando se averigua a prova da compra e venda celebrada por instrumento particular, em especial a sua repercussão na esfera jurídica de terceiro, convém trazer a lume regra de ouro estabelecida no artigo 221 do Código Civil, in verbis:
Art. 221. O instrumento particular, feito e assinado, ou somente assinado por quem esteja na livre disposição e administração de seus bens, prova as obrigações convencionais de qualquer valor; mas os seus efeitos, bem como os da cessão, não se operam, a respeito de terceiros, antes de registrado no registro público. (destacou-se)
Da norma em apreço deflui desnecessário o reconhecimento de firma para tornar válido o contrato entre as partes[15]. No entanto, terceiros permanecem imunes aos seus efeitos, inclusive quando o negócio envolva cessão de direitos, se o instrumento não for levado a registro público. Em suma, somente atinge terceiros aquele contrato ao qual se conferiu a necessária publicidade. Sobre o assunto assim pontificou Roberto Senise Lisboa[16]:
“O registro público é meio de se dar publicidade aos atos a ele submetidos, cuja efetividade passa a atingir não só as partes, mas também a terceiros. Assim, para que o instrumento particular tenha efeitos erga omnes, e não meramente inter partes, mister sua inscrição no registro público.”
Contudo, cediço que a Súmula 84 do Colendo STJ, arraigada em questões sociológicas, faz vista grossa da norma em apreço, assim como dos artigos 129, § 9.º e 167, I, 9, ambos da Lei 6.015/73[17] (Lei de Registros Públicos), aplicáveis, respectivamente, ao registro de títulos e documentos em geral e de imóveis.
O Superior Tribunal de Justiça preferiu conferir interpretação finalística à Lei de Registros Públicos[18]: com o escopo de alcançar justiça social preteriu a exigência do registro público, condição legal para eficácia do negócio jurídico perante terceiros (artigo 221 do Código Civil). Por isso autorizou o manejo dos embargos de terceiro embora inexistente registro público do contrato.
Porém, em que pese a opção pretoriana pela desnecessidade do registro público, nem por isso, no palco do debate judicial, o instrumento particular sempre e sempre servirá de prova inconteste quanto a data da compra e venda. Se oposto a terceiro que não participou de sua formação, caso do credor penhorante, a datação do instrumento particular deverá obedecer a uma das balizas ministradas pelo legislador no artigo 370 do Código de Processo Civil, in verbis:
Art. 370. A data do documento particular, quando a seu respeito surgir dúvida ou impugnação entre os litigantes, provar-se-á por todos os meios de direito. Mas, em relação a terceiros, considerar-se-á datado o documento particular:
I - no dia em que foi registrado;
II - desde a morte de algum dos signatários;
III - a partir da impossibilidade física, que sobreveio a qualquer dos signatários;
IV - da sua apresentação em repartição pública ou em juízo;
V - do ato ou fato que estabeleça, de modo certo, a anterioridade da formação do documento. (destacou-se)
Entre os signatários do documento, surgindo dúvida quanto à data, é dado prová-la por todos os meios admitidos em direito. Porém, perante terceiro que não participou da sua formação, presume-se datado o documento a partir de quando verificada uma das hipóteses acima.
Antônio Carlos de Araújo Cintra ensina que essas presunções não são propriamente a data da celebração do negócio; mas sim o último limite temporal para a formação do documento. Por isso devem prevalecer perante terceiro, pois a ele mais benéfico. Ressalva o eminente processualista a possibilidade de se demonstrar, a quem interessar, que o documento, na verdade, foi sim elaborado em momento anterior ao resultante da aplicação da presunção, que sendo relativa admite prova em contrário[19].
Descartada a hipótese do inciso I, pois aqui se cogita justamente de instrumentos particulares sem registro público (contrato de gaveta), bem como aquelas presentes nos incisos II e III, estranhas à problemática deste estudo, as duas últimas (IV e V) são as mais hábeis a solver litígios instaurados em razão de imóveis negociados por compromisso particular de compra e venda sem registro.
Conforme assaz sublinhado, em sede de embargos de terceiro, no embate instaurado com o credor penhorante, nenhum valor deve merecer o instrumento particular sem registro e despido do menor resquício de publicidade, a exemplo de reconhecimento de firma dos signatários ou extração de cópia autenticada do respectivo documento.
É que esses atos, praticados por registrador e tabelião no exercício de função pública, agregam segurança jurídica ao negócio, tornando incontroverso que a compra e venda ocorreu em momento anterior à sua prática. Por isso amoldam-se às hipóteses dos incisos IV e V do art. 370.
Assim, desnecessária maior digressão para se concluir que o reconhecimento de firma dos signatários, seja no momento da lavratura do contrato, seja posteriormente (desde que antes do aparelhamento da execução responsável pela penhora do imóvel), bastaria para resguardar o compromissário comprador de ter o seu imóvel apreendido em ação movida em face do promitente vendedor, ainda titular do domínio segundo o artigo 1.245, § 1.º, do Código Civil: “Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel”.
Essa negligência do compromissário comprador deve ser encarada como forte indicativo de má-fé tendente a frustrar legítima pretensão creditória de terceiro. Tamanha ingenuidade, própria dos incautos que não possuem tirocínio para o mercado imobiliário, não merece o beneplácito do Direito. Caberá ao juiz, à luz das provas amealhadas aos autos, dar a melhor qualificação jurídica a um contrato de gaveta celebrado em absoluta clandestinidade.
Portanto, compromissos particulares de compra e venda de imóveis lavrados em absoluta clandestinidade trazem sim o colorido de negócios destinados a fraudar a execução, de modo que se reputa atendido o segundo requisito da Súmula 375 do Colendo Superior Tribunal de Justiça, a saber: “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.
E não aproveita ao compromissário comprador alegar, eventualmente, que inexistia registro de penhora na matrícula do imóvel ao tempo da compra e venda. Mesmo que inexistente aquele registro, o compromissário comprador não estará dispensado de provar a data da compra e venda por meio idôneo quando disputada a primazia sobre o imóvel com credor penhorante. Nesse caso não deverá prevalecer a datação presente em contrato de gaveta. Assim, instaurado o embate com o credor em embargos de terceiro, forçoso presumir datado o contrato quando da sua juntada aos autos (artigo 370, IV, CPC) se não verificada hipótese precedente que faça retrotrair aquela presunção.
Destarte, impossível concluir que o negócio ocorreu na data aposta no instrumento particular se este não alberga mínimo resquício de publicidade.
Enfim, o artigo 370, IV e V do CPC encerram verdadeiras presunções relativas de que o documento foi datado, em relação a terceiros, quando de sua apresentação em repartição pública ou em juízo. Por corolário, ausente selo público de autenticação ou reconhecimento de firma, impossível proteger a posse do compromissário comprador em prejuízo de credor que legitimamente penhorou o bem.
Sobre o artigo 370 do Código de Processo Civil, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero[20] lecionam que:
“2. Dúvida. A dúvida quanto à data de determinado documento pode ser dirimida, entre os litigantes, por qualquer meio de prova admitido em direito. Com relação a terceiros, contudo, considerar-se-á datado o documento particular em conformidade com aquilo que preceitua os incisos I a V do artigo em comento. Vale dizer: em face de terceiros, há presunção relativa de que o documento particular foi datado naqueles momentos lá indicados. Nesse sentido, já se decidiu que nega vigência ao art. 370, IV, CPC, ‘a decisão que transfere ao terceiro impugnante a prova de que a data de documento, apresentado em juízo, é falsa, pois diante da presunção legal, cabe a quem o exige em juízo provar a sua veracidade” (STJ, 3.ª Turma, REsp 6.425/PR, rel. Min. Dias Trindade, j. em 10.12.1990, DJ 18.01.1991, p. 1.039). Por óbvio, a prova de que o documento não foi datado naquelas ocasiões mencionadas no art. 370, CPC, também pode ser feita por qualquer meio de prova admitido em direito.” (destacou-se)
Embora escassos, colhe-se recentes julgados rendendo apreço ao artigo 370 do Código de Processo Civil. Vale conferir:
“EMBARGOS DE TERCEIRO - Penhora – Imóvel objeto de compromisso de compra e venda sem reconhecimento da firma dos participantes da relação obrigacional - Registro posterior - Irrelevante a falta de registro, produzindo, em relação a terceiros, todos os efeitos de direito, a partir da data em que apresentado à repartição pública ou em juízo (CPC, art. 370, IV)
EMBARGOS DE TERCEIRO - Fraude à execução - Caracterização Transferido a terceiro o imóvel após a penhora, considera-se feita em fraude à execução (CPC, art. 593, II), sendo ineficaz a alienação em face do exeqüente, jungindo o bem imóvel à execução como ainda no patrimônio do devedor - Recurso improvido” (TJSP, APELAÇÃO N° 991.09.074544-3, rel. Des. Pedro Ablas, 14.ª Câmara de Direito Privado, Comarca de Serrana, Data do Julgamento: 26/05/2010, Data do Registro: 22/06/2010)
“PROCESSO CIVIL - EMBARGOS DE TERCEIRO - INSTRUMENTO PARTICULAR SEM REGISTRO NEM MÍNIMA PUBLICIDADE - AUSENTE POSSE DA EMBARGANTE AO TEMPO DA CONSTRIÇÃO - IMPROCEDÊNCIA AOS EMBARGOS
(...)
4. Consoante as provas conduzidas ao feito, em tese centralmente a decorrerem do vivo interesse que cada litigante deva ostentar em prol de sua postura na relação material subjacente, do exame dos contratos apresentados, não se extrai qualquer publicidade, por mínimo, a validar a pretensão dos pactuantes. 5. Embora a Súmula 84 do E. STJ admita a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro, a mesma não dispensa a elementar publicidade a este ponto, que se supriria, por exemplo, quando menos, com o reconhecimento de firma em Cartório dos pactuantes, à época da avença realizada, não sendo demonstrado que efetivamente a argüida posse/propriedade se deu consoante os contornos do contrato supra citado. 6. Do contrário, margem imensa se consagraria para a edição de documentos de duvidosa licitude, criados post factum e com propósito agressivo ao próprio ordenamento, ao próprio sistema. (...) 11. Provimento à apelação. Improcedência aos embargos. (TRF 3.ª Região, Apelação Cível – 200360000114753 (1227469), Rel. Juiz Silva Neto, Segunda Turma, DJF3 CJ2: 28/05/2009, p. 431)
Os citados arestos bem enfrentaram a questão do contrato particular despido de publicidade (reconhecimento de firma, p. ex.). Ambos consagraram o entendimento de que não se pode opor a terceiro a data presente em contrato particular se este não ostenta qualquer resquício de publicidade, pois, como bem pontuou o eminente Juiz Federal Silva Neto, “do contrário, margem imensa se consagraria para a edição de documentos de duvidosa licitude, criados post factum e com propósito agressivo ao próprio ordenamento, ao próprio sistema.”
Na mesma linha interpretativa segue aresto do Colendo Superior Tribunal de Justiça:
Direito e Processual Civil. Casal. Partilha de Bem. Aquisição pelo marido em duas etapas. CC, art. 269 e 271. Comunhão em relação à primeira metade. CPC, art. 370-IV. Documento particular. Valoração da prova. Equívoco. Exclusão da outra metade. Sub-rogação reconhecida pelas instâncias ordinárias. Matéria fática. Desempate. Provimento parcial por maioria nos dois capítulos.
I – Em relação a terceiros, considera-se datado o documento particular, dentre outras hipóteses, da sua apresentação em juízo (CPC, Art. 370-IV).
II – As instâncias ordinárias são soberanas na apreciação da prova, salvo quando ocorrente má valoração.
III – Há errônea valoração da prova quando se infringe princípio ou regra jurídica no campo probatório.
(Resp 28027/SP – 1992/0025400-4, Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, Data do Julgamento: 11/10/1993, DJ 27/03/1995, p. 7163)
Para rematar colaciona-se magnífico voto[21] vencido do eminente Desembargador J. B. Franco de Godoi do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, que enfrentou com maestria a incidência do artigo 370, V do Código de Processo Civil no compromisso de compra e venda sem registro.