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O Neoconstitucionalismo e sua influência sobre a ciência processual: algumas reflexões sobre o neoprocessualismo e o projeto do novo Código de Processo Civil

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Agenda 19/03/2015 às 15:20

6. O Neoprocessualismo.

6.1. Evolução do direito processual

A exata noção sobre o neoprocessualismo passa, sobretudo, pela compreensão não menos exata das diversas fases por que passou a ciência processual. Cada uma dessas fases expressa ideias mais ou menos consensuais, à época, mas que se tornaram anacrônicas à medida em que progrediram os estudos doutrinários e enriqueceu-se a experiência humana sobre o processo como instrumento muitas vezes necessário à consecução do direito material lesado.

O neoprocessualismo, já se pode adiantar, emerge da influência que o constitucionalismo contemporâneo – calcado na força normativa da Constituição e na ascensão de valores fundamentais que passam a ocupar o centro de todo o sistema normativo – exerceu e exerce sobre o processo civil. Trata-se de verdadeira constitucionalização da ciência processual, cuja instrumentalidade passa a ser interpretada à luz da axiologia constitucional.

A ciência processual pode ser subdividida em quatro fases, assim resumidas.

6.1.1 Sincretismo ou praxismo

Fase que se caracteriza pela ausência de autonomia entre o direito material e o direito processual. O processo era examinado apenas em seus aspectos práticos, sem maiores preocupações científicas. Existiam formas – não sistematizadas, que derivavam da experiência humana – para o exercício do direito, sob a condução pouco definida do juiz.

Para ADA GRINOVER:

“Até meados do século passado, o processo era considerado simples meio de exercício dos direitos (daí, direito adjetivo, expressão incompatível com a hoje reconhecida independência do direito processual). A ação era entendida como sendo o próprio direito subjetivo material que, uma vez lesado, adquiria forças para obter em juízo a reparação da lesão sofrida. Não se tinha consciência da autonomia da relação jurídica processual em face da relação jurídica de natureza substancial eventualmente ligando os sujeitos do processo. Nem se tinha noção do próprio direito processual como ramo autônomo do direito e, muito menos, elementos para a sua autonomia científica. Foi o longo período de sincretismo, que prevaleceu das origens até quando os alemães começaram a especular a natureza jurídica da ação no tempo moderno e acerca da própria natureza jurídica do processo”[39].

Nessa fase não havia uma verdadeira ciência do processo civil. Os conhecimentos eram puramente empíricos, sem qualquer referência a princípios, conceitos próprios ou método. O processo era vista apenas em sua realidade física exterior e perceptível aos sentidos, confundido com o mero procedimento. Tinha-se uma visão linear do ordenamento jurídico caracteriza pela confusão entre os planos material e processual.

A ação era o próprio direito material em movimento. Não se atentava para a existência da relação jurídica processual, distinta da relação de direito material. A jurisdição era vista como um sistema de tutela de direitos exercida com reduzida participação do juiz. A defesa baseava-se na concepção de simples acesso do réu ao processo, sem a noção de contraditório efetivo a cada ato processual.

A fase sincretista prevaleceu até meados do século XIX, quando foram desenvolvidos trabalhos a retratar a natureza jurídica da ação e do próprio processo.

6.1.2 Processualismo

Na segunda fase, chamada de processualismo, inicia-se o estudo do processo como direito autônomo, desvinculado do direito material. Por essa razão, alguns autores chamam esse período de fase autonomista. 

O processo passou por uma fase de formulação de institutos, categorias e conceitos, que lhe conferiram organicidade, convertendo o que antes era apenas “procedimento” em “sistema”. A sistematização dessas ideias conduziu à primeira afirmação do direito processual como ciência, que passou a dedicar-se a categorias jurídicas específicas: jurisdição, ação, defesa e processo.

Destacaram-se, nesta etapa, grandes juristas como Giuseppe Chiovenda, Francesco Carnelutti, Piero Calamandrei e Enrico Tullio Liebman, na Itália; Adolf Wach, James Goldschmidt e Oskar Von Büllow, na Alemanha; e Alfredo Buzaid e Lopes da Costa, no Brasil, todos defensores da autonomia científica do processo.

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Sobre esta fase autonomista, defende a professora ADA GRINOVER:

“A segunda fase foi autonomista, ou conceitual, marcada pelas grandes construções científicas do direito processual. Foi durante esse período de praticamente um século que tiveram lugar as grandes teorias processuais, especialmente sobre a natureza jurídica da ação e do processo, as condições daquela e os pressupostos processuais, erigindo-se definitivamente uma ciência processual. A afirmação da autonomia científica do direito processual foi uma grande preocupação desse período, em que as grandes estruturas do sistema foram traçadas e os conceitos largamente discutidos e amadurecidos”[40].

6.1.3 Instrumentalismo

A terceira fase, também conhecida como de teleologia do processo, coincide com a tentativa de aproximação entre o direito material e o processual.

Os processualistas, desta fase, entendem necessário direcionar o processo para resultados substancialmente justos, superando o exagerado tecnicismo reinante até então.

O instrumentalismo processual instaura uma fase eminentemente crítica, capaz de olhar o processo a partir de uma perspectiva externa e prática e, com isso, identificar seus gargalos de eficiência, que impedem ou dificultam a prestação jurisdicional. “O processualista moderno sabe que, pelo aspecto técnico-dogmático, a sua ciência já atingiu níveis muito expressivos de desenvolvimento, mas o sistema continua falho na sua missão de produzir justiça entre os membros da sociedade. É preciso agora deslocar o ponto-de-vista e passar a ver o processo a partir de um ângulo externo, isto é, examiná-lo nos seus resultados práticos. Como tem sido dito, já não basta encarar o sistema do ponto-de-vista dos produtores do serviço processual (juízes, advogados, promotores de justiça): é preciso levar em conta o modo como os seus resultados chegam aos consumidores desse serviço, ou seja, à população destinatária”[41].

É uma fase em que se busca afirmar a efetividade do processo e a eficiência da prestação jurisdicional.

No Brasil, algumas reformas processuais assentaram-se, em grande medida, nesta visão instrumentalista do processo, que busca a efetividade e eficiência da prestação jurisdicional. Nesse contexto é que foram introduzidas em nosso ordenamento jurídico a antecipação de tutela (art. 273), a tutela inibitória (art. 461 e 84 do CDC), a execução específica das obrigações de fazer e de não fazer, a simplificação do processo de execução, a audiência prévia de conciliação e saneamento, as alterações na sistemática recursal (Leis 9.139/96 e 9.756/98), dentre tantas outras, tudo com o objetivo de tornar mais célere e eficiente a prestação jurisdicional na concretização do ideal de justiça.

6.1.4 Neoprocessualismo

O Neoprocessualismo nada mais é do que o reflexo do constitucionalismo contemporâneo sobre a ciência processual.

O ideário neoconstitucional inspirou, ainda que com certo atraso, os processualistas, que passaram a defender a releitura da ciência processual (em sua trilogia jurisdição/ação/processo) sob a ótica da Constituição, a fim de implementar um “modelo constitucional de processo”.      

É a fase de constitucionalização do direito processual, de intensa normatização “axiológica” do processo, o que impõe ao intérprete uma releitura dos velhos institutos processuais à luz dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais, centro de todo o ordenamento jurídico.

Nesta fase, confere-se especial relevo aos direitos fundamentais, como valores supremos protegidos no e pelo processo. E para não distanciar o processo da concretização dos direitos fundamentais exige-se do juiz uma postura mais ativa, e mesmo cooperativa, na condução do processo, sobretudo na investigação dos fatos.

O Neoprocessualismo tem por características básicas, dentre outras: (a) a forte influência do direito constitucional sobre o processo; (b) a efetividade dos princípios constitucionais processuais independentemente de previsão legal expressa; (c) a democratização do processo; (d) a visão publicista da relação processual; (e) a visão do processo como meio de efetivação dos direitos fundamentais; (f) a ascensão dos princípios da colaboração e da cooperação das partes e do juízo; e (g) o incremento dos poderes instrutórios do juiz na busca pela verdade real (que afirma os direitos fundamentais)[42].

Busca-se valorar a ética na aplicação do direito processual. Afirmam-se os marcos ideológicos do sistema processual, tornando-se consenso que o processo não é mero instrumento técnico a serviço da ordem jurídica, mas um poderoso instrumento ético destinado a servir à sociedade e ao Estado[43].

O processo, segundo a ótica neoprocessual, deve ser adequado à tutela efetiva dos direitos fundamentais, visto como o centro de todo o ordenamento jurídico.

6.1.5 O formalismo-valorativo

Para CARLOS ALBERTO ÁLVARO DE OLIVEIRA[44] e DANIEL MITIDIERO[45], a ciência processual avançou para uma quarta fase metodológica, evoluiu do instrumentalismo para o formalismo-valorativo, em que há o estreitamento das relações entre processo e Constituição. Segundo os autores, não há mais lugar para formalismos vazios, utilização de expedientes burocráticos, prática de artimanhas processuais pelas partes. O processo precisa ser interpretado com os óculos da Constituição, já que o processo existe para implementar os direitos fundamentais, razão pela qual não pode deixar de atender às garantias indispensáveis a um processo ética e socialmente justo.

O formalismo-valorativo propõe uma releitura da instrumentalidade do processo, que serve, ou deveria servir, a uma finalidade externa, não podendo ser concebido com um fim em si mesmo. O formalismo excessivo deve ser combatido sempre que se desvirtuar da sua finalidade essencial, de servir como instrumento para a realização da justiça, desde que respeitados os direitos fundamentais das partes e na ausência de prejuízo[46].

O formalismo-valorativo é uma corrente derivativa do Neoprocessualismo que busca combater o excesso de formalismo na ciência processual.

Para essa corrente, a rigidez excessiva e o recurso abusivo à instrumentalidade do processo não condizem com os valores constitucionais que iluminam a ciência processual.

Essa corrente defende que o formalismo no processo não é um fim em si mesmo, mas deve ser examinado à luz dos princípios éticos e dos direitos fundamentais que norteiam, por imposição constitucional, o processo.

Muitos exemplos explicitam o formalismo-valorativo como: a adoção do rito ordinário, em uma causa que deveria tramitar pelo rito sumário; a superação do prazo da ação rescisória, quando se tratar de vício transrescisório; a decisão que busca “salvar” o processo de ser extinto sem resolução de mérito, depois de realizada a instrução probatória; a decisão que admite denunciação da lide, mesmo em hipótese de garantia imprópria; a visualização da existência de interesse de agir, mesmo quando o autor ajuíza ação de conhecimento, muito embora disponha de título executivo extrajudicial; as raríssimas decisões do STJ que permitem à parte a regularização da representação processual após a interposição do recurso[47].

O formalismo-valorativo está amparado nos conceitos de lealdade e boa-fé, que se aplicam, indistintamente, a todos os sujeitos da relação processual, inclusive ao juiz, que deve se abster da prática de atos que impliquem violação desses bens jurídicos. E haverá violação à boa-fé objetiva e à lealdade processual quando não houver esforço efetivo do órgão jurisdicional para salvar o instrumento de vícios formais[48].

Há um caso emblemático, decidido pelo STJ com base no formalismo-valorativo, ainda que sem citá-lo expressamente. Nos autos do Recurso Especial 901.556/SP[49], a Corte Especial, sob a relatoria da Min. Nancy Andrigui, concluiu que deve ser aceito o recurso interposto via fax, sem as cópias dos documentos que o instruem, posteriormente apresentadas com os originais, já que não há previsão na Lei n° 9.800/99 de transmissão via fax de documentos, mas apenas das razões que amparam o recurso. Assim se decidiu, pois: (a) não houve prejuízo para a defesa do recorrido, que só será intimado para contrarrazoar após a juntada dos originais aos autos; (b) o recurso remetido via fax deverá indicar o rol dos documentos que o acompanham, sendo vedado ao recorrente fazer qualquer alteração ao juntar os originais; (c) evita-se um congestionamento no trabalho da secretaria dos gabinetes nos fóruns e tribunais, que terão de disponibilizar um funcionário para montar os autos do recurso, especialmente quando o recurso vier acompanhado de muitos documentos; (d) evita-se discussão de disparidade de documentos enviados, com documentos recebidos; (e) evita-se o congestionamento nos próprios aparelhos de fax disponíveis para recepção do protocolo; (f) é vedado ao intérprete da lei editada para facilitar o acesso ao Judiciário fixar restrições, criar obstáculos, eleger modos que dificultem sua aplicação.

As razões que inspiraram a decisão têm conteúdo formal-valorativo, uma das vertentes do Neoprocessualismo.

6.2. O Neoprocessualismo e as teorias modernas do direito de ação

6.2.1 Direito de ação como direito à tutela jurisdicional efetiva, adequada e tempestiva

As teorias modernas, influenciadas, sobretudo, pela constitucionalização dos direitos e garantias de natureza processual, vale dizer, sua incorporação gradativa ao rol dos direitos fundamentais, defendem que o direito de ação não se conforma com “qualquer” tutela jurisdicional, mas somente com a prestação jurisdicional efetiva, adequada e tempestiva.

Tutela jurisdicional efetiva é a que permite, ao menos em tese, a realização prática do direito material com um mínimo de segurança jurídica, mediante a observância do devido processo legal.

Tutela jurisdicional adequada é aquela que se molda ao direito substantivo reclamado.

Tutela jurisdicional tempestiva é não só a que se realiza em tempo razoável (duração razoável do processo) como a que disponibiliza mecanismos para tutelar situações de urgência, impedindo o perecimento do direito material e salvaguardando a utilidade do próprio processo.

Para o professor CASSIO SCARPINELLA:

“Não há mais espaço para entender o ‘direito de ação’, ou, simplesmente, a ‘ação’ como a mera ruptura da inércia da jurisdição, quando o tema é inserido em seu devido contexto, do ‘modelo constitucional do direito processual civil’. Muito mais do que isto, é importante entendê-lo e associá-lo com o próprio agir, durante todo o processo, para a obtenção da tutela jurisdicional e de seus efeitos concretos no plano material. O ‘direito de ação’, nestas condições, deve ser entendido como o direito subjetivo público exercitável contra o Estado-juiz ao longo de todo o processo como forma de garantir àquele que o exerce a prestação da tutela jurisdicional de acordo com um processo ‘devido’, assim entendido o processo em que se assegurem todos os direitos assegurados pelos princípios constitucionais do processo civil”.[50]

As teorias modernas, portanto, focam o direito de ação a partir do meio (o processo) e do fim (a sentença), agregando a um e outro uma série de “qualidades” informadas pelos direitos e garantias processuais alçados a condição de direitos fundamentais.

Todos esses direitos e garantias processuais de ordem constitucional podem ser enfeixados em um princípio-síntese: o devido processo legal.

6.2.2 Direito de ação como direito à efetiva satisfação do direito material reclamado.

As teorias modernas sobre o direito de ação agregam, ainda, uma outra particularidade: a de que a tutela jurisdicional deve ser plena, ou seja, não deve se esgotar simplesmente no reconhecimento do direito a uma das partes pela decisão de mérito, ainda que esta sobrevenha tempestivamente em processo pautado em todos os princípios processuais constitucionais. Isso porque nem sempre o comando contido na sentença se realiza de imediato, de modo a cumprir o que determina o direito material reconhecido pelo juiz.

O direito de ação é, também, um direito à execução. Ou seja, direito de ver assegurado, na prática e concretamente, o bem da vida perseguido em juízo.

Assim, para as teorias modernas, além de efetiva, adequada e tempestiva, a tutela jurisdicional precisa ser plena (o que inclui a sua concreção).

Não é difícil perceber que estas teorias modernas foram concebidas à luz dos preceitos do Neoconstitucionalismo, sobretudo da força normativa da Constituição e da centralidade que os valores e direitos fundamentais passam a ocupar no sistema jurídico: a tutela jurisdicional precisa ser efetiva, adequada, tempestiva e concreta porque os direitos fundamentais assim o exigem. Em outras palavras, “o devido processo legal” a que alude a Constituição, não se contenta com qualquer tutela jurisdicional, mas impõe ao processo comprometimento com os valores fundamentais da ordem jurídica, exigindo-lhe um resultado não apenas justo, mas que igualmente respeite os direitos fundamentais das partes.

É nesse contexto – de afirmação dos direito fundamentais no plano do processo – que nasce o Neoprocessualismo, calcado em valores como: a efetividade da tutela jurisdicional (eficiência e duração razoável do processo); a boa-fé e lealdade das partes e do órgão jurisdicional; a mitigação dos formalismos inúteis; a relação processual baseada na ética, dentre outros.                     

Sobre o autor
Marcos Meira

Procurador do Estado de Pernambuco / MBA em Direito Tributário pela FGV / Mestrando em Processo Civil pela PUC-SP / Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEIRA, Marcos. O Neoconstitucionalismo e sua influência sobre a ciência processual: algumas reflexões sobre o neoprocessualismo e o projeto do novo Código de Processo Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4278, 19 mar. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36710. Acesso em: 5 nov. 2024.

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