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Poder de plantão

Agenda 19/03/2016 às 12:38

O sistema de prisão acaba se mantendo e se reafirmando, como um ser vivo que conspira e se adapta aos tempos, mesmo que nunca tenha atingido as finalidades desejadas em um estado igualitário de direitos.

Esse texto pretende ser polêmico, por isso resolvi abordar um tema complexo, trazendo uma ideia para ser polemizada, discutida e, se for errada, criticada e rejeitada.

Pretendo falar sobre o porquê do sistema de prisão, embora sempre tão criticado, acabar sempre se mantendo, se reafirmando, como um ser vivo que conspira e se adapta aos tempos, isso sem nunca ter atingido as finalidades desejadas em um estado igualitário de direitos.

Segundo o dicionário a palavra sistema deriva de um termo que existia em latim (systema), e também no grego (sústema), significando um conjunto composto de várias partes; um conjunto de elementos interconectados formando um todo organizado. Significa também: combinar, ajustar, formar um conjunto. Designa um órgão ou um organismo, não um Ser, embora muitas vezes um sistema pareça ter vida própria.

Conforme o dicionário;

Sistema: (Priberam, 2008 a 2013)

  • 1. Conjunto de princípios verdadeiros ou falsos reunidos de modo que formem um corpo de doutrina.

  • 2. Combinação de partes reunidas para concorrerem para um resultado, ou de modo a formarem um conjunto.

  • 3. Modo de organização (ex.: sistema capitalista).

  • 4. Modo de governo, de administração, de rotação (ex.: os diferentes sistemas eleitorais).

  • 5. Conjunto de meios e processos empregados para alcançar determinado fim.

  • 6. Conjunto de métodos ou processos. Didáticos.

  • 7. Método, modo, forma.

  • 8. [Anatomia] Conjunto de órgãos compostos pelos mesmos tecidos e destinados a funções análogas (ex.: sistema digestivo, sistema respiratório)

Para falar sobre o sistema de prisão nada melhor que começar pelos plantões judiciários.

Interessante observar que para se atuar em plantões, de um modo geral (nos quartéis, nos hospitais, nas prisões, etc.), entende-se como justo o recebimento de diárias e ajudas de custo, pois referentes ao trabalho anormal, em horário fora do expediente.

Assim, todos os que servem em plantões, do mais alto posto ao mais baixo, devem receber a devida recompensa pelo trabalho prestado fora do horário.

Afinal eles estão ali a serviço de um sistema, no caso do plantão judiciário: do sistema de prisão. Ou seja, trabalhando e recebendo recompensas exclusivamente para prender ou para soltar os corpos dos acusados da prática de algum crime, segregando ou libertando, também, a alma do “paciente”.

Interessante que não há questionamentos sobre a necessidade de um serviço judicial fora de hora, pois os adeptos do discurso Humanista o entendem como necessário para salvaguarda contra arbitrariedades e injustiças. Já os adeptos do discurso da Lei e Ordem o entendem necessário para a segurança da comunidade. Alguns até afirmam que esse serviço é necessário porque o crime não estabelece hora certa para acontecer.

Assim, tanto os que o querem para efetuar prisões, como os que o querem para soltar os injustamente presos, acham o plantão judiciário um serviço necessário e indispensável. E, talvez por isso, que ele seja recompensador.

A imprensa, por sua vez, designa repórteres para trabalharem nesses locais, jornalistas que atuam também de plantão, a serviço do chamado sistema de prisão.

Advogados criminalistas, não raras vezes, também precisam atuar nos plantões, sendo interessante pontuar que aqueles que costumeiramente ali operam acabam recebendo a pecha de “advogados porta de cadeia”, o que (estranhamente) não ocorre com promotores de justiça que façam o mesmo - no lado oposto.

A exigência de uma decisão rápida e imediata demarca, nesses plantões, mais drasticamente, a existência de uma autêntica disputa de poder entre a acusação e a defesa, entre o acusado e a vítima, entre o discurso da Lei e Ordem e o dosHumanistas – sendo o Juiz – a autoridade que distribuirá esse poder, sob a fiscalização dos demais participantes (pessoas que de alguma forma estão envolvidas nos casos, inclusive a mídia).

E, embora isto não seja consenso entre os estudiosos, parece claro que todas estas pessoas que são recompensadas por seu trabalho fora de hora (do Juiz Criminal ao Repórter de Plantão), são protagonistas das chamadas forças geratriz e de inérciaindicadas por (Foucault, 2003) como causas da existência do famigerado sistema prisional, pois ao trabalharem para esse sistema estão a reafirmá-lo.

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A cada prisão que o magistrado determina, a cada alvará de soltura que manda expedir, ele reacende essa disputa sistêmica, incentivando e recriando os meandros do poder punitivo prisional, que todos os outros estão (cada um a seu modo) também a desfrutar.

Interessante pontuar aqui, que em um evento do Tribunal de Justiça de São Paulo, em 06/Fevereiro/2015, o ministro Ricardo Lewandowski - Presidente do STF Brasileiro - atacou o excesso de prisões no Brasil e a ideia de que quanto mais gente for presa, mais segurança a sociedade terá:

Na busca por diminuir o coeficiente, São Paulo lançou, na sexta-feira, o projeto da audiência de custódia. A ideia é que a cada prisão em flagrante — maioria das provisórias — abra-se o período de 24 horas para que o preso seja apresentado a um juiz, que decidirá se ele deverá ficar preso enquanto seu caso é apurado, ou não. O juiz poderá optar por outros meios de restrição de liberdade, como a prisão domiciliar ou o controle por tornozeleira eletrônica.

Presidente também do Conselho Nacional de Justiça, o ministro Ricardo Lewandowski disse que pretende levar o projeto, que será implantado em duas delegacias na capital paulista, para o Brasil inteiro. O ministro lembrou, no entanto, que apenas apresentar o preso ao juiz não muda necessariamente a situação carcerária do país, pois é preciso mudar a “cultura do encarceramento”, que também passa pela magistratura. O presidente do STF lembra que o excesso de prisões não se deve só aos delegados ou membros do Ministério Público: “temos nossa parcela de responsabilidade, com as decisões dos juízes de execução”. (Consultor Jurídico, 2015)

Nesse evento, Desembargadores repetiram que o Brasil prende muito e prende mal. E Lewandowski apontou números que comprovam isso: 600.000 presos, sendo 40% deles - provisórios. Isso equivale a 240.000 presos que não foram, ainda, julgados, mas que já estão cumprindo as futuras (possíveis?) penas.

Talvez, como vários destes presos, nós também estejamos a precisar de habeas corpus contra o poder desse esfomeado sistema.

O próprio nascimento da ideia de audiências de custódia, defendida por Lewandowski, já traduz a necessidade de um maior trabalho para o sistema prisional, reafirmando a tal força geratriz do sistema, aqui não pela inércia, e sim pela própria ação dos protagonistas.

Habeas é subjuntivo de habeoeshabuihabitumhabere (significando: ter, manter, possuir, tomar posse, etc.) e corporis, corpus (vem de corpo). Plácido e Silva dizia que este instituto teve origem no Interdictum de libero homine exibiendo, do direito romano, pelo qual todo cidadão podia reclamar a exibição daquele que tivesse sido preso ilegalmente (Silva, 1998, p. 877).

Mas a maioria dos doutrinadores e historiadores dizem que o instituto teve origem no Reino de João Sem Terra, tendo sido inserido na sua Magna Carta, por pressão do clero, de condes e barões.

Conta-se que as pessoas eram levadas aos subterrâneos da Torre de Londres, presas por qualquer motivo, até por simples má vontade. Pelo instituto, todo cidadão poderia ir até a Torre e perguntar: - “habeas corpus? ”. O carcereiro, então, era obrigado a exibir o corpo, vivo ou morto, sendo que no último caso devia esclarecer os motivos da morte.

No Brasil o instituto foi inserido em 1832 no Código de Processo Criminal, art. 340, e posteriormente em todas as Constituições, até a atual, que o prevê no artigo 5º, LXVIII[1]. O instituto é regulado pelos artigos 647 a 667 do Código de Processo Penal Brasileiro.

Em Portugal é também previsto na Constituição art. 31 e no Código de Processo Penal em seus artigos 220 e seguintes.

A pergunta que fica é se a Constitucionalização do Habeas Corpus não estaria, a contrário senso, chancelando a necessidade da existência de um serviço de plantão, que, por outro lado e como já disse, outra coisa não faz, que atuar a serviço do sistema de prisão?

Uma tal atuação me lembra um acontecimento ocorrido numa noite fria do inverno paranaense. Eu estava trabalhando num desses plantões, quando, por volta das onze horas da noite, o funcionário me trouxe um habeas corpus que reclamava de uma prisão ilegal, de uma senhora, por “charlatanismo”. Alegava-se que ela havia sido presa em casa, por volta das oito horas da noite, quando estava realizando um culto de sua religião espírita.

Após ler a petição, imediatamente comecei a redigir a decisão de soltura, onde enfatizei a desnecessidade da prisão preventiva e a ilegalidade da ausência do competente auto de prisão em flagrante, determinando a imediata soltura daquela senhora, até porque, como delito de menor potencial ofensivo esse seria incompatível com a prisão.

Expedido o Alvará de Soltura, os advogados imediatamente o foram cumprir, mas logo voltaram dizendo que todos as delegacias existentes na cidade alegaram que aquela mulher não estava presa em suas dependências.

Os advogados insistiram que os familiares da senhora afirmavam que ela foi levada presa, numa viatura de uma determinada delegacia, mas que a haviam procurado lá, como nas demais e não a encontravam.

Contaram que a Delegacia suspeita enviaria um relatório, afirmando que aquela senhora não estava presa ali, nem em outro qualquer local da Comarca.

E, assim, os advogados estavam a me perguntar o que poderiam fazer em tal situação.

Mas antes de qualquer resposta – um deles atendeu ao telefone móvel, que trouxe a notícia de que a senhora já estava em sua casa. Ocasião então, que se despediram às pressas e se retiraram em seus automóveis importados, com ares de nunca mais voltar.

Posteriormente, o escrivão me trouxe o tal relatório, enviado pelo Delegado, onde se afirmava que aquela senhora nunca havia estado nas dependências daquela delegacia e que contra ela nada lá havia.

O escrivão me confidenciou que o Delegado havia lhe telefonado e dito que aquela senhora seria uma grande traficante e que seus agentes haviam elaborado toda uma investigação que culminaria num flagrante de venda de drogas, mas esta notícia “vazou” e que, quando os policiais lá chegaram, a senhora estava a rezar…

Disse que o Delegado teria ido a um casamento e não pode acompanhar a diligência, sendo que não teve tempo para formalizar o auto de prisão e, como os advogados estavam em cima, resolveu determinar que a mulher fosse entregue em sua residência – o que foi feito.

Eu fiquei sem saber o que fazer, pensei em abrir um procedimento administrativo, mas logo desisti, pois o escrivão me afirmou que aquele Delegado, em qualquer circunstância, confirmaria o que escreveu no tal Relatório e que ele (escrivão) só havia contado aquela história, para que eu entendesse o porquê da saída às pressas dos tais advogados em seus carrões.

Eu fiquei ali a ponderar se a história do Delegado seria mesmo verdadeira, ou apenas uma forma de justificar a má conduta dos seus subordinados.

Mas esse episódio bem salienta os meandros do poder de punir, que o Poder Judiciário (como um todo – do Juiz ao Funcionário da delegacia ou dos plantões) acaba usando, através até da simples ameaça de prisão, para disciplinar àqueles que são rotulados como indesejáveis ou perigosos.

O traficante se esconde atrás do véu do bandido que atenta contra a saúde pública, é aquele que ganha dinheiro com a fraqueza do viciado, atrapalhando sua recuperação.

No Brasil, onde o Estado tende a atuar de uma forma protecionista radical, infiltrando-se em tudo quanto consegue e a sociedade permite, o tráfico de entorpecentes é crime equiparado a hediondo.

Segregar um traficante, que se torna indesejável por vender drogas que são cultivadas em países vizinhos, e que, nestes países, trazem toda uma economia de poder, é também e com certeza, uma política de boa vizinhança, pois transfere e incentiva que o cultivo seja feito somente nestes locais vizinhos, ao mesmo tempo que traz uma necessidade, cada vez maior, de combate, pelo Brasil, a tal atividade quase hedionda, produzindo mais empregos para policiais, do nosso lado da fronteira.

Assim, tanto os combatentes do lado estatal brasileiro, como os que vivem do cultivo e venda destas drogas, do lado vizinho e do lado à sombra no Brasil, acabam tendo neste embate um ganho (mesmo que secundário), seja de dinheiro (por suas atividades) seja o do próprio combate entre si (pelo prazer de uma vitória ou outra), o que os coloca, todos, no mesmo lado – o de que o sistema deve ser assim e não precisa mudar.

O Delegado e sua história de um flagrante vazado, o escrivão fofoqueiro, os funcionários todos e até eu e aqueles advogados, por termos participado desse processo cuja história escrita se diferenciou totalmente da história falada, cada qual justificando a seu modo os atos que resultaram naquela ilegal prisão, também acabamos todos reafirmando a necessidade do serviço de plantão e, por tabela, do nosso sistema como um todo.

E quando todos estão ao lado do sistema, mesmo que com ideias divergentes, este sistema se reafirma e mais se mantém.

É importante frisar que a resistência às modificações pode ocorrer sem nenhuma intenção maldosa, pois muitos dos que se beneficiam (mesmo que secundariamente) deste sistema de poder, acabam gerando as forças geratriz e de inércia, que Foucault enuncia como causa da manutenção do famigerado sistema prisional (apesar de toda a crítica que existe contra tal sistema), ao, reiteradamente, persistirem em suas atividades e posições, até porque as entendem como as mais certas e corretas.

É assim que age o Delegado que representa pela prisão temporária de um “traficante perigoso”, que está “prestes a fugir”.

É assim que age o Promotor de Justiça que concorda com essa prisão, referendando-a.

É assim que age o Juiz de plantão ao decretar tal prisão.

É assim que age o advogado criminalista, que requer o habeas corpus em benefício do preso, alegando ausência de provas de que estivesse “prestes a fugir” – ou mesmo de que fosse um “traficante perigoso”.

É assim que age o Desembargador que concede o Habeas Corpus, porque entende que além da ausência de tais provas, a Prisão Temporária seria inconstitucional. E, assim por diante.

Um bom exemplo de que essa roda viva não para nunca de girar, é que sempre que reclamamos que o sistema prisional é inoperante e que produz uma delinquência profissional; que os presos que deviam ser readaptados a sociedade, ressocializados enfim, acabam por sair da prisão muito piores do que quando lá entraram, outra coisa não fazemos que reafirmar que o sistema deveria atingir suas finalidades, isto porque acreditamos que tais finalidades são úteis.

Ocorre que ao reafirmarmos a utilidade destas finalidades, na ausência de substitutivos viáveis ao sistema criticado, acabamos nos colocando do mesmo lado que o sistema que criticamos.

E, como já disse e aqui repito, quando estamos todos ao lado do sistema, mesmo que com ideias divergentes, este se reafirma e mais se mantém...


Referências:

Consultor Jurídico. (07 de fevereiro de 2015). PRISÕES EM EXCESSO. Vasconcelos, Marcos de. Obtido em 10 de fevereiro de 2015, de http://www.conjur.com.br/2015-fev-07/presidente-stf-ataca-política-encarceramento-brasil

Foucault, M. (2003). Vigiar e Punir. Lisboa: Edições 70 Ltda.

Priberam, D. (2008 a 2013). Priberam. Obtido em 22 de abril de 2015, de Dicionário Priberam da Lingua Portuguesa:, http://www.priberam.pt/dlpo/sistema

Silva, P. E. (1998). Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense.


 NOTA

[1] O artigo 5º, LXVIII[1], possui a seguinte redação: “Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”

Sobre o autor
Francisco L Macedo Jr.

Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Mestre das Relações Sociais da Universidade Federal do Paraná. Doutorando em Direito na Universidade Nova de Lisboa - Portugal. Alguém que através de casos ocorridos na vida de magistrado tenta escrever sobre o direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACEDO JR., Francisco L. Poder de plantão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4644, 19 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/38461. Acesso em: 22 dez. 2024.

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