Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

A bioinvasão de ambientes aquáticos provocada pela água de lastro das embarcações e suas consequências jurídicas

Exibindo página 5 de 7
Agenda 23/09/2015 às 15:33

6 ...... RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL PELOS DANOS DECORRENTES DO MAU GERENCIAMENTO DA ÁGUA DE LASTRO

6.1 ... ASPECTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL DOS SUJEITOS ENVOLVIDOS

Conforme se denotou ao longo deste estudo, a descarga irregular da água de lastro nos ecossistemas aquáticos é considerada uma forma de poluição. Portanto, as normas que regulam este tipo de poluição incidem, mutatis mutandis, sobre a bioinvasão provocada pela água de lastro. Comentam-se em seguida aspectos da responsabilidade civil.

A responsabilidade é considerada um fenômeno complexo, porquanto constitui um dever jurídico sucessivo decorrente do descumprimento de uma obrigação originária, que, no caso, se constitui na obrigação de não contaminar o ambiente aquático pelos organismos alienígenas presentes na água de lastro das embarcações.

No âmbito civil, esse dever jurídico é a obrigação de indenizar, a qual, conforme ensina Cavalieri Filho (2014), tem a finalidade de ressarcir integralmente – consoante o princípio da reparação integral[66] – os bens ou interesses jurídicos por atos lesivos, ilícitos, praticados por alguém, ou até lícitos em excepcionais hipóteses legais – como nos casos do art. 188, II, combinado com os arts. 929 e 930, 1.285, 1289, 1293, 1385, § 3º, do Código Civil (CC).

Cavalieri Filho (2014), refutando doutrina tradicional de Orlando Gomes e Alvino Lima, que consideram estar a responsabilidade subjetiva ligada ao ato ilícito e a objetiva ao ato lícito, também seguida por Gonçalves (2012), acentua que o ato ilícito é o fato gerador da responsabilidade civil, apresentando dois aspectos relevantes. Sob o aspecto objetivo, o ato ilícito revela a antijuricidade da conduta ou a desconformidade entre esta e a ordem jurídica, o que implica em uma violação objetiva de um dever jurídico. Sob o enfoque subjetivo, a ilicitude alcança sua inteireza quando a conduta oposta ao valor que a norma visa a atingir deriva ainda da vontade do agente.

Em razão disso, é que se pode considerar o duplo sentido do ato ilícito. No sentido estrito, o ato ilícito é composto, além da conduta ilícita, dos requisitos de culpa – ou dolo –, nexo causal e dano, encerrando os próprios pressupostos da responsabilidade civil subjetiva, resultantes da interpretação do art. 186 [67]do CC (BRASIL, 2002). Já no sentido amplo, o ato ilícito compreende a “mera contrariedade entre a conduta e a ordem jurídica, decorrente de violação de dever jurídico preexistente”, sendo este dever ora de incolumidade ou de segurança, não albergando o elemento volitivo, a culpa (CAVALIERI FILHO, 2014, p. 24). Como se pode ver, para a caracterização da responsabilidade civil objetiva, a culpa não figura entre seus pressupostos.

Esta ampliação do conceito do ato ilícito foi necessária para configurar o fato gerador da responsabilidade objetiva, pois a sociedade atual, baseada no consumo de massa de produtos e serviços, na utilização intensa das matérias-primas retiradas e depois descartadas do e no meio ambiente e no uso universalizado das tecnologias, tendo como contrapartida a multiplicidade das lesões e a dificuldade de sua comprovação, não comporta mais a irresponsabilidade civil do causador do ato lesivo pela inexistência ou pela não demonstração da culpa.

Além disso, buscou-se justificação teórica para a responsabilidade objetiva na teoria do risco da atividade, adotada pelo art. 927, parágrafo único[68], in fine, do CC, que se resume no fato de que “todo prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem o causou, independentemente de [...] culpa.” Ademais, risco é perigo e quem “exerce uma atividade perigosa deve assumir os riscos e reparar o dano dela decorrente.” (CAVALIERI FILHO, 2014, p. 181).

O dever jurídico violado na responsabilidade objetiva, em regra – fala-se em regra, porque também há as hipóteses legais previstas na primeira parte do art. 927, parágrafo único, do CC (BRASIL, 2002) –, é o dever de segurança, ou direito subjetivo à segurança, e quanto maior o risco, maior será este dever, que a lei estabelece implícita ou explicitamente. Na lição de Binenbojm:

E, no contexto da sociedade de risco contemporânea, a tutela da segurança tem de abarcar também salvaguardas contra os efeitos das novas tecnologias, muitas vezes ainda imprevisíveis para a ciência de hoje, visando não só a proteção dos vivos, como também das futuras gerações. Surgem daí novos princípios jurídicos, como o da precaução, de extrema relevância no campo do direito ambiental e do biodireito. (2008, p. 179).

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Na esfera ambiental, há dissenso acerca de qual teoria do risco aplicar: se a teoria do risco integral ou a do risco criado pela atividade pública ou privada. Quanto à primeira, assinala Ibrahin:

A teoria do risco integral não admite a previsão de excludentes do dever de indenizar, a ocorrência de caso fortuito e/ou força maior, ação de terceiros ou mesmo cláusula de não indenizar. Desse modo, para responsabilizar o agente degradador do meio ambiente, basta a demonstração do dano e do nexo de causalidade. (2012, p. 122).

A tendência atual é de aceitação dessa teoria (FERRAZ apud MANCUSO, 2007), (CAVALIERI FILHO, 2014) e (MAZZILLI, 1994; FREITAS, 2000; PORTO, 1998 apud IBRAHIN, 2012). Para a teoria do risco da atividade, que é defendida por autores como Mukai (2004) e Machado (2007), o responsável é aquele que, pela sua atividade ou profissão, expõe terceiros ou o meio ambiente ao risco de sofrer um dano. Outros autores entendem que a responsabilidade ambiental é objetiva, deixando para o caso concreto o enquadramento da teoria aplicável. Nesta linha, afirma Antunes (2010, p. 218) que “as diferentes hipóteses deverão ser examinadas de forma casuística, visto que enorme gama de possibilidades impede, ipso facto, a construção abstrata de uma teoria geral aplicável.”

A jurisprudência do STJ pacificou o entendimento de que a responsabilidade civil objetiva pelo dano ambiental está fundamentada na teoria do risco integral, conforme julgado analisado adiante, neste subitem, no REsp 1.114.398/PR.

Apesar disso, fica patente o entendimento de que a teoria de responsabilidade civil objetiva adotada pela Autoridade Marítima na elaboração da NORMAM 20, nos seus itens 2.2.3, c e d [69], e 3.1[70], foi a do risco da atividade, uma vez que admite excludentes de responsabilização para o comandante da embarcação em caso de eventuais danos provocados pela água de lastro não trocada devido a esforços excessivos do navio, falha em equipamentos – casos fortuitos – ou condições meteorológicas adversas – de força maior. Ora, em tais ocasiões, o comandante realmente não deve fazer a troca da água de lastro, mas, tendo em vista a natureza do bem jurídico a ser protegido, o meio ambiente, há de haver previsão para a reparação em face da teoria objetiva da responsabilidade civil. Da mesma forma, algumas isenções e exceções, conforme analisadas no subitem 4.2 deste trabalho, poderiam ser evitadas.

O nexo causal diz respeito à “relação de causa e efeito entre a ação ou omissão do agente e o dano verificado. [...] Se houve o dano, mas sua causa não está relacionada com o comportamento do agente, inexiste a relação de causalidade e também a obrigação de indenizar.” (GONÇALVES, 2012, p. 20). Tratando-se de meio ambiente, Milaré (2009, p. 960) defende que o nexo causal exista mesmo por meio de presunções, bastando “que se demonstre a existência do dano para cujo desenlace o risco da atividade influenciou decisivamente.” Além disso, não se exige que o ato tenha sido causa exclusiva do dano, mas que tenha a conexão causal.

No que se refere ao dano, não existe a obrigação de indenizar, se este pressuposto não restar configurado. Para tanto, faz-se necessária a lesão a um bem ou interesse juridicamente tutelado, qualquer que seja a sua natureza, quer patrimonial ou moral, seja individual ou coletiva (CAVALIERI FILHO, 2014).

Em matéria ambiental, Milaré (2009, p. 866) afirma, para fins didáticos, que "dano ambiental é a lesão aos recursos ambientais, com consequente degradação – alteração adversa ou in pejus – do equilíbrio ecológico e da qualidade de vida."

Sob o enfoque da PNMA, art. 3º, V, os recursos ambientais, em seu sentido estrito, compreendem os seus elementos naturais, quais sejam a atmosfera, as águas interiores – superficiais e subterrâneas –, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, a biosfera, a fauna e a flora (BRASIL, 1981).

Em uma visão aplicável aos danos provocados pela bioinvasão via água de lastro, englobando as situações apresentadas no Capítulo 3 deste estudo, a PNMA delimita, em seu art. 3º, II, III, c e e, a noção de degradação da qualidade ambiental – denotando a modificação adversa das características do meio-ambiente – e de poluição – definindo-a como degradação da qualidade ambiental decorrente de atividades que direta ou indiretamente afetem desfavoravelmente a biota ou lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos (BRASIL, 1981).

Ressalta-se que o dano causado ao meio ambiente, considerado em sua concepção coletiva ou difusa, ou na esfera patrimonial ou moral, tem como características comuns a indivisibilidade e o alcance transindividual. Deve ser reclamado por meio de ação civil pública, ação popular, mandado de segurança coletivo ou outro meio processual adequado, manipulados pelo Ministério Público. Além disso, tem eventual indenização destinada a um Fundo, cujos recursos serão alocados à reconstituição dos bens lesados (MILARÉ, 2009).

Por outro lado, o dano ambiental individual, de natureza patrimonial ou moral, atinge bens ou interesses pessoais por intermédio do dano ao meio ambiente, sendo, por conseguinte, também chamado de dano reflexo ou em ricochete. As ações privadas interpostas também se fundamentam na responsabilidade objetiva.

A responsabilização civil do poluidor pelo dano provocado ao meio ambiente encontra-se conformada no art. 225, § 3º, da CF, nos arts. 3º, IV, e 14, § 1º, da PNMA e, de maneira mais específica, no art. 21[71] da Lei do Óleo, podendo ser aplicado subsidiariamente o parágrafo único do art. 927 do CC, que corresponde a uma cláusula geral da responsabilidade objetiva. Esta inflexão objetiva da responsabilidade civil ambiental foi inaugurada no Brasil na década de 1980, como consequência dos supramencionados dispositivos da PNMA, recepcionados e corroborados pelos preceitos constitucionais do art. 225, ao trazer em seu bojo alguns princípios básicos da proteção ao meio ambiente, qual o do poluidor-pagador, antes visitado.

Nessa linha, traz-se à apreciação o REsp 1.114.398/PR[72], aplicável por extensão à bioinvasão pela água de lastro. Refere-se à condenação por danos morais e materiais em favor de pescadores da baía de Paranaguá, causados por poluição ambiental em consequência de vazamento de nafta, decorrente de colisão de navio no Porto de Paranaguá. A decisão foi fundamentada na responsabilidade civil objetiva da empresa proprietária do navio-tanque e no princípio do poluidor-pagador, ante a incidência da teoria do risco integral, pela qual foram afastadas, demonstrado o nexo de causalidade, quaisquer excludentes de responsabilização. (BRASIL, 2012b).

De maneira análoga, o deslastreamento da água de lastro das embarcações em local inadequado pode acarretar danos ambientais pela invasão invisível de organismos não nativos àquele local. Tais danos, dadas as sutilezas do momento de sua ocorrência e as dificuldades de sua constatação de forma imediata, devem ser evitados por todos os agentes envolvidos na execução, controle e fiscalização dos sistemas de gerenciamento de água de lastro, por meio do cumprimento da legislação pertinente e seus princípios, especialmente os da precaução, da prevenção e da boa-fé.

Nesse sentido, assinala Ibrahin que:

O conjunto de normas que disciplinam o deslastre da água dos navios implica na necessidade de responsabilizar o proprietário do navio, o armador ou operador, o comandante[73], a pessoa física ou jurídica de direito público ou privado, que legalmente represente o porto organizado, a instalação portuária, a plataforma e suas instalações de apoio e o proprietário da carga, os quais, por suas ações ou omissões, ocasionem danos ao meio ambiente. (2012, p. 124).

Todos esses agentes são, portanto, responsáveis objetiva e solidariamente pelos danos ocasionados pelas descargas de água de lastro. Ademais disso, se as embarcações envolvidas pertencerem a mais de uma pessoa física ou jurídica de direito público ou privado, estas pessoas ou empresas respondem solidariamente, pois

uma das maiores dificuldades que se pode ter em ações relativas ao meio ambiente é exatamente determinar de quem partiu efetivamente a emissão que provocou o dano ambiental [...]. Não seria razoável que, por não se poder estabelecer com precisão a qual delas cabe a responsabilização isolada, se permitisse que o meio ambiente restasse indene. (ATHIAS, 1993 apud MILARÉ, 2009, p. 965).

Conforme preceitua Kesselring (2007, p. 31), a solidariedade significa que “o autor de ação judicial pode ajuizar demanda contra um só poluidor, contra todos ou contra alguns. O (s) escolhido (s) deverá (ão) responder pelos danos causados e apenas posteriormente cobrar dos demais a parte que lhes cabe.” Neste caso, estar-se diante do direito de regresso, havendo de se considerar a responsabilidade subjetiva, mediante prova dos aludidos pressupostos, incluindo a culpa, para permitir que se discuta a parcela cabível a cada um. A responsabilidade solidária encontra abrigo no art. 942, caput[74], do CC de 2002 (BRASIL, 2002), e o § 3º, do art. 225 da CF corrobora este entendimento (BRASIL, 1988).

Deve-se ressaltar que esse último dispositivo tornou clara a diferença entre as responsabilidades civil, administrativa e penal, de maneira que, conforme Machado (2007, p. 363), “a irresponsabilidade administrativa ou penal não acarreta a irresponsabilidade civil.” 

6.2 ... ASPECTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL DO ESTADO PELA OMISSÃO RELATIVA AO GERENCIAMENTO DA ÁGUA DE LASTRO.

Tendo em vista o caráter indisponível do Direito Ambiental, positivado como direito fundamental de terceira dimensão pela Constituição de 1988 em seu art. 225, conforme já discutido alhures, bem como a sua regência pelos princípios da precaução, da prevenção e do poluidor-pagador, para que seja garantido um meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações, não é mais possível compatibilizar a omissão ou a leniência do Estado com a tutela efetiva do meio ambiente. Ademais, as atividades econômicas só podem ser consideradas legítimas quando há a preservação ambiental, de acordo com o art. 170, VI, da CF.

Assim sendo, é a teoria objetiva da responsabilidade civil do Estado que se coaduna com tais preceitos da Constituição, que recepcionou os dispositivos preconizados no art. 14, § 1º, e art. 3º, IV, da PNMA, mesmo para as condutas omissivas.

Contudo, ainda remanesce na doutrina a visão de que a omissão do Estado relativa aos serviços públicos que a ele cabe prestar, inclusive ligados à proteção ambiental, não enseja responsabilidade objetiva. Esta ponderação é capitaneada por Mello (2007), ao defender que a responsabilidade por omissão decorre sempre de ato ilícito e, sendo assim, resultaria necessariamente em responsabilidade subjetiva, pois não há conduta ilícita do Estado que não seja por culpa ou dolo. Este entendimento, que também é acompanhado por Ibrahin (2012), não prospera na atualidade, conforme já verificado no subitem 6.1 deste Capítulo, uma vez que o ato ilícito não é visto mais apenas em seu sentido estrito. O ilícito também é verificado em seu sentido amplo, que prescinde da culpa.

De fato, de acordo com Milaré (2009, p. 966), “não é só como poluidor que o ente público se expõe ao controle do Judiciário [...], mas também quando se omite no dever constitucional de proteger o meio ambiente (falta de fiscalização, inobservância das regras informadoras dos processos de licenciamento [...]).” Posição que é acompanhada por autores como Machado, Ferraz, Nery Junior, Mazzilli e Mancuso (apud MILARÉ, 2009), Cavalieri Filho (2014) e Viscardi (2013).

Esse posicionamento foi pacificado pelo STJ, no REsp nº 1.071.741/SP[75], ratificando a responsabilidade civil objetiva e solidária do Estado pelos danos provocados por terceiros, mesmo em sua contribuição indireta por meio da falta de controle e de fiscalização. Todavia, no que se refere à execução, a responsabilidade do Estado foi decidida como subsidiária, como devedor reserva (BRASIL, 2010).

Destarte, por consequência, essa mesma responsabilidade deve ser aplicada ao Estado, em suas três esferas federativas, em decorrência dos danos ambientais ocasionados por atos omissivos das atividades de vistoria, inspeção, controle e fiscalização do gerenciamento da água de lastro das embarcações e dos portos organizados.

Sobre o autor
Marcos Ticiano Alves de Sousa

Licenciado em Matemática e Especialista em Engenharia de Sistemas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA, Marcos Ticiano Alves Sousa. A bioinvasão de ambientes aquáticos provocada pela água de lastro das embarcações e suas consequências jurídicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4466, 23 set. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42998. Acesso em: 23 dez. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!