6 A POSIÇÃO DO STF SOBRE A LEI DE ANISTIA – ADPF 153
Destaca-se neste sentido um choque de decisões. De um lado a Suprema Corte brasileira que ao julgar, em 30.04.2010, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 153, arguida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), declarou a validade da Lei de Anistia. E de outro, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que ao julgar o Caso Gomes Lund e outros versus Brasil, posteriormente, em 24.11.2010, declarou a invalidade da mesma Lei, em razão da incompatibilidade das disposições nela contidas com o disposto na Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é parte.
Com efeito, em outubro de 2008, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, interpôs, perante o STF, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental pedindo para que fosse interpretado o parágrafo único do art. 1° da Lei de Anistia (Lei 6.683/79) conforme a Constituição Federal de 1988, de modo a declarar, a luz de seus preceitos fundamentais, que a anistia concedida pela mencionada lei aos crimes políticos ou conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes de Estado (civis ou militares) em nome da ditadura, contra opositores políticos.
No pedido, a OAB, invocou os preceitos fundamentais constitucionais da isonomia (art. 5°, caput), direito à verdade (art. 5°, XXXIII) e os princípios republicano, democrático (art. 1°, §único) e da dignidade da pessoa humana (art. 1°, III). Em suma, a procedência da ação afastaria um dos principais argumentos, utilizados ao longo dos anos a favor da impunidade dos agentes de repressão durante o regime militar, o de que teriam sido anistiados.
Após o ajuizamento e distribuição da arguição, para o relator, Ministro Eros Grau, foram prestadas informações, tendo a Advocacia-geral da União requerido o não conhecimento da arguição, em preliminar, e no mérito defendido a sua improcedência. Contrariamente, o Ministério da Justiça, a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e a Subchefia de Assuntos Jurídicos da Casa Civil manifestaram-se pela procedência da arguição.
Na sessão de julgamento, ocorrida em 28.04.2010, no mérito, sete ministros declararam improcedente a arguição (Min. Eros Grau – relator, Carmen Lúcia, Ellen Gracie, Marco Aurélio, Cezar Peluso, Celso de Mello e Gilmar Mendes) e dois votaram pela procedência (Min. Ricardo Lewandowiski e Carlos Britto).
Em seu voto, o ministro relator afirmou que a Lei de Anistia brasileira se deu por solução consensual das partes (em plena ditadura) e que, por isso, não era aplicável a jurisprudência internacional. O ministro sustentou ainda que, a anistia concedida no Brasil não é unilateral, mas, recíproca (bilateral) já que beneficiou tanto os opositores do regime militar quanto os agentes da repressão. Não se consagrou então, segundo ele, a chamada anistia em branco, que busca, unicamente, suprimir a responsabilidade dos agentes de Estado.
Para melhor esclarecer, destacam-se alguns trechos do voto (BRASIL, 2010):
Reconheço que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em diversos julgamentos – como aqueles proferidos, p. ex., nos casos contra o Peru (“Barrios Altos”, em 2001, e “Loayza Tamayo”, em 1998) e contra o Chile (“Almonacid Arellano e outros”, em 2006) -, proclamou a absoluta incompatibilidade, com os princípios consagrados na Convenção Americana de Direitos Humanos, das leis nacionais que concederam anistia, unicamente, a agentes estatais, as denominadas “leis de auto anistia”.
[...]
É preciso ressaltar, no entanto, como já referido, que a lei de anistia brasileira, exatamente por seu caráter bilateral, não pode ser qualificada como uma lei de auto anistia, o que torna inconsistente, para os fins deste julgamento, a invocação dos mencionados precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
[...]
Com efeito, a Lei nº 6.683/79 – que traduz exemplo expressivo de anistia de “mão dupla” (ou de “dupla via”), pois se estendeu tanto aos opositores do regime militar quanto aos agentes da repressão – não consagrou a denominada anistia em branco, que busca, unicamente, suprimir a responsabilidade dos agentes do Estado e que constituiu instrumento utilizado, em seu próprio favor, por ditaduras militares latino-americanas.
[...]
Como anteriormente ressaltado, não se registrou, no caso brasileiro, uma autoconcedida anistia, pois foram completamente diversas as circunstâncias históricas e políticas que presidiram, no Brasil, com o concurso efetivo e a participação ativa da sociedade civil e da Oposição militante, a discussão, a elaboração e a edição da Lei de Anistia, em contexto inteiramente distinto daquele vigente na Argentina, no Chile e no Uruguai, dentre outros regimes ditatoriais.
Contudo, como se poderia conceber um “acordo bilateral” em plena Ditadura? Este tem se mostrado o ponto mais fraco da argumentação do STF em relação à ADPF 153.
No mesmo voto, o relator afirmou que nos casos das Supremas Cortes do Chile e da Argentina, que declaram a inaplicabilidade das respectivas leis de anistia aos agentes de repressão política, foram os poderes legislativos de ambos os países que combateram a anistia anteriormente concedida, e não o judiciário como se esperava na citada arguição.
Quanto ao costume internacional de punição a crimes de lesa humanidade (e sua imprescritibilidade), houve uma transcrição jurídica da opinião de Nilo Batista, o qual sustenta que não é cabível costume internacional penal.
O julgamento, portanto, em nada inovou em relação à Lei de Anistia que foi declarada válida em seu inteiro teor. Porém, como já citado anteriormente, este julgamento ocorreu em momento anterior à prolação da sentença pela Corte Interamericana, de modo que a decisão da Corte Internacional ainda precisa passar pelo crivo do STF, que deverá realizar o chamado controle de convencionalidade entre o disposto na Lei de Anistia e o disposto na Convenção Americana de Direitos Humanos (1969). Analisar-se-á o exercício desse controle no tópico seguinte.
7 COMO SOLUCIONAR O CHOQUE APARENTE ENTRE A DECISÃO DO STF E A DECISÃO DA CORTE SAN JOSÉ?
Antes de responder ao questionamento supramencionado, é preciso atentar-se a seguinte premissa: não há conflito insolúvel entre as decisões do STF e da Corte de San José, com bem nos ensina André de Carvalho Ramos (2011, p. 216), “uma vez que ambos os tribunais têm a grave incumbência de proteger os direitos humanos. Eventuais conflitos são apenas conflitos aparentes, fruto do pluralismo normativo que assola o mundo de hoje, aptos a serem solucionados pela via hermenêutica”.
Em resposta ao questionamento: para resolver esses conflitos, há dois instrumentos. O primeiro deles é preventivo e consiste no apelo ao “Diálogo das Cortes” e a fertilização cruzada entre os tribunais. Com essa postura, é possível antever, em um futuro palpável, o uso pela Suprema Corte Brasileira das posições dos diversos órgãos internacionais de direitos humanos aos quais o Brasil já se sujeitou. Por óbvio, vale lembrar que, não é possível obrigar os juízos nacionais ao “Diálogo das Cortes”, isso porque a independência do Estado Democrático de Direito se esvairia.
Em havendo ineficácia do primeiro, o segundo instrumento a ser utilizado, conforme propõe André de Carvalho Ramos (2011, p. 217) seria a chamada teoria do duplo controle ou crivo de direitos humanos “que reconhece a atuação em separado do controle de constitucionalidade – exercido pelo STF e juízos nacionais –, do controle de convencionalidade – exercido pela Corte San José e outros órgãos de direitos humanos no plano internacional”. Os direitos humanos no Brasil, então, passam a possuir uma dupla garantia: o controle de constitucionalidade, no âmbito nacional, e o controle de convencionalidade, em âmbito internacional.
Esse duplo controle parte da verificação de uma real separação de atuações, na qual inexistira efetivo conflito entre as decisões, porque cada Tribunal age em sua esfera “particular”, isto é, distinta e com fundamentos diversos.
No caso da ADPF 153, houve o controle de constitucionalidade, exercido pelo STF. No Caso Gomes Lund e outros versus Brasil, houve o controle de convencionalidade, exercido pela Corte Interamericana. A anistia aos agentes da guerrilha, para subsistir, deveria ter sobrevivido intacta aos dois controles, mas só resistiu a um (com votos contrários, frise-se), o controle de constitucionalidade.
Por seu turno, as teses defensivas de prescrição, legalidade penal estrita, entre outras, também deveriam ter obtido anuência de ambos os controles. Como as mencionadas teses defensivas não foram aceitas pelo controle de convencionalidade e dada à aceitação constitucional da internacionalização dos direitos humanos, não podem ser aplicadas internamente. Ou seja, não cabe alegar coisa julgada ou efeito vinculante para obstruir inquéritos policiais ou ações penais que estejam a aplicar a sentença interamericana, pois esses se ampararam na decisão da Corte IDH, que tem eficácia, independentemente, da decisão do STF.
A partir da aplicação dessa teoria será necessário se acostumar a exigir que todo ato interno se conforme não só com o teor da jurisprudência do STF, mas também com o teor da jurisprudência interamericana.
8 DAS AÇÕES DESEMPENHADAS PELO ESTADO BRASILEIRO PARA DAR CUMPRIMENTO A SENTENÇA DA CORTE IDH
Como já assinalado no tópico 5 deste artigo, desde a prolação da sentença, em 24.11.2010, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, pouco foi feito por parte do Estado brasileiro para dar cumprimento a decisão.
A OAB, inclusive, já condenou publicamente a recusa do Governo brasileiro em cumprir a decisão da Corte de Direitos Humanos. O representante da Ordem dos Advogados do Brasil, jurista Fábio Konder Comparato, na audiência pública, que debateu na Câmara dos deputados, foi enfático ao dizer que:
A recusa em cumprir sentença de tribunal internacional, cuja jurisdição foi oficialmente aceita de modo geral e tacitamente confirmada no processo pertinente, configura flagrante desrespeito ao princípio do Estado de Direito e coloca o nosso País em estado de aberta ruptura com a ordem jurídica internacional (OAB, 2015).
Ainda, segundo o entendimento da OAB, o Brasil aderiu voluntariamente à Convenção Americana, sendo que a jurisdição dessa Corte para decidir sobre violações aos Direitos Humanos é indiscutível e suas determinações são de cumprimento obrigatório, sem possibilidade de revalidação interna.
Feitas essas considerações, passa-se a análise das determinações feitas pela Corte, que já foram descritas anteriormente, consoante tópico cinco, e que já tiveram o cumprimento iniciado por parte do Estado brasileiro.
8.1 Da obrigação de conduzir a investigação dos crimes cometidos durante a Guerrilha
Como já dito oportunamente, o Brasil fora condenado a “conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja” (CORTE IDH, 2010, p. 114).
A decisão do “Caso Gomes Lund e outros versus Estado brasileiro”, impacta decisivamente em atribuições privativas do Ministério Público, como a propositura de ações penais contra os agentes da ditadura militar.
Vale dizer, o Ministério Público brasileiro é essencial na missão de implementar internamente as decisões internacionais de responsabilização do Estado por violação a direitos humanos. Tanto é que, em havendo inércia dos outros Poderes, caberá ao MP a tarefa de utilizar seus poderes conferidos constitucionalmente – entre eles o poder de requisição e investigação na área criminal – para obter a efetivação negada.
Buscando dar efetivo cumprimento a decisão da Corte Internacional, o Ministério Público Federal (MPF) tem desenvolvido a investigação dos crimes, em conjunto com a Polícia Federal (PF), de modo que em alguns casos, em que já foi possível identificar os responsáveis pelas violações de direitos humanos, o MPF ofereceu denúncia.
Nesse sentido, o caso do Major Asdrúbal – Lício Augusto Ribeiro Maciel, que é acusado pelos homicídios dos militantes: André Grabois, João Gualberto e Antônio Alfredo de Lima, além da ocultação de cadáveres das vítimas. Nos mesmos autos também fora denunciado, pela ocultação de cadáveres, Sebastião Curió Rodrigues de Moura – conhecido à época como Doutor Luchini.
Os assassinatos ocorreram em 13 de outubro de 1973 em São Domingos do Araguaia, no sudeste do Pará. O grupo de combate, responsável pelas execuções, era comandado por Lício Maciel. De acordo com a ação, os militares emboscaram os militantes enquanto eles estavam “levantando acampamento” em uma área rural. Ante a orientação de Lício Maciel, no dia seguinte aos assassinatos, um grupo de militares acompanhado por uma mateiro enterrou os corpos em valas abertas em outra propriedade rural de São Domingos do Araguaia. A emboscada, as mortes e as ocultações dos cadáveres, que estão descritas pelo MPF na denúncia, estão comprovadas por documentos e inúmeros depoimentos prestados, por várias testemunhas ao MPF e outras instituições.
Para o Parquet Federal, trata-se de homicídios qualificados, por terem sido praticados em razão de emboscada e por motivo torpe. Segundo o MPF, há, ainda, agravantes das penas, já que os crimes foram cometidos com abuso de autoridade e violação a deveres inerentes aos cargos militares.
Além de denunciar os assassinatos, em outra ação, o MPF denunciou Lício Maciel à Justiça, pelo sequestro (desaparecimento forçado) de Divino Ferreira de Sousa, o Nunes, capturado e ilegalmente detido pelo Exército, em 13 de outubro de 1973.
A ação deu amparo à abertura de processo judicial em agosto de 2012 (autos n.° 0006232-77.2012.4.01.3901) na Justiça Federal de Marabá/PA. Em novembro do ano seguinte o acusado entrou com recurso no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília/DF, com pedido de cancelamento do processo. O pedido foi aceito, em dezembro de 2014, com base no entendimento do STF externado no julgamento da ADPF 153. O MPF em contra partida, recorreu da decisão. Agora, o MPF busca levar o caso ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal.
É nítido, portanto, que o Ministério Público Federal tem buscado, incessantemente, dar cumprimento à decisão da Corte Interamericana, mesmo que sem o necessário sucesso, haja vista o impasse ainda não solucionado, travado entre a decisão da Suprema Corte Brasileira e a sentença da Corte Internacional. Contudo, já foi dito no tópico sete deste artigo que é perfeitamente possível solucionar este conflito, sendo certo que, o cumprimento da decisão internacional é medida que se impõe.
8.2 Da tipificação do crime de desaparecimento forçado de pessoas
Ao Poder Legislativo incumbe a tipificação do crime de desaparecimento forçado de pessoas, ainda não previsto na legislação penal brasileira.
Em razão disso, o plenário do senado, no dia 27/08/2013, aprovou o substitutivo do senador Pedro Taques (PDT-MT) ao projeto de lei do Senador Vital do Rêgo (PMDB-PB) que tipifica o crime de desaparecimento forçado de pessoas, com penas que podem chegar a 40 anos de reclusão. O projeto se encontra em análise na Câmara dos Deputados.
A redação aprovada pelo plenário do senado acrescenta o art. 149-A ao Código Penal, para tipificar o crime de desaparecimento forçado de pessoas. O projeto de Lei define desaparecimento forçado de pessoas como: qualquer ação de apreender, deter, sequestrar, arrebatar, manter em cárcere privado, impedir a livre circulação ou de qualquer outro modo privar alguém de sua liberdade, em nome de organização política, ou de grupo armado ou paramilitar, do Estado, suas instituições e agentes ou com a autorização, apoio ou aquiescência de qualquer destes; ocultando ou negando a privação de liberdade ou deixando de prestar informação sobre a condição, sorte ou paradeiro da pessoa a quem deva ser informado ou tenha o direito de sabê-lo.
Pelo texto da Lei, a pena de reclusão para o crime deverá ser de 6 a 12 anos, mais multa. Se houver emprego de tortura ou de outro meio insidioso ou cruel, ou se do fato resultar aborto ou lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, o crime passa a ser definido como desaparecimento forçado qualificado, com pena de 12 a 24 anos de prisão. Se resultar em morte, a reclusão mínima será de 20 anos, podendo chegar a 40 anos. O tempo de prisão pode ser aumentado de um terço até a metade se o desaparecimento durar mais de 30 dias, se o agente for funcionário público ou a vítima for criança ou adolescente, idosa, portadora de necessidades especiais, gestante ou tiver diminuída, por qualquer causa, sua capacidade de resistência.
O desaparecimento forçado de pessoas também será incluído no rol dos crimes hediondos (Lei 8.072/1990). Ainda de acordo com o substitutivo de Pedro Taques, o exaurimento dos delitos previstos não ocorre enquanto a pessoa não for libertada ou não for esclarecida sua sorte, condição e paradeiro, ainda que ela já tenha falecido como ocorre no crime de sequestro. Trata-se, então, de crime permanente.
Resta, então, aguardar a aprovação do projeto de Lei por parte da Câmara dos Deputados, e a posterior sanção por parte da presidência da república, para que a determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos seja cumprida pelo Governo brasileiro.
8.3 Da instituição da Comissão da Verdade e divulgação dos fatos ocorridos durante a Guerrilha
Dentre os encargos do poder legislativo, em decorrência da sentença encontra-se, também, a aprovação de um projeto de lei que institua a Comissão da Verdade, seguindo os preceitos de transparência, publicidade e efetividade, estabelecidos pela Corte. A Presidente da República Dilma Rousseff, representante maior do poder executivo do Estado brasileiro, em cumprimento ao que determinou a Corte na sentença do “Caso Guerrilha do Araguaia”, em 18 de novembro de 2011 sancionou a Lei 12.528/11 que institui a Comissão Nacional da Verdade (CNV). A Comissão foi oficialmente instalada, posteriormente, em 16 de maio de 2012. Essa comissão foi composta por 7 (sete) membros nomeados pela Presidente da República, auxiliados por assessores, consultores e pesquisadores.
Destarte, é importante esclarecer o que vem a ser a chamada Comissão da Verdade, que nas palavras de Marlon Alberto Weichert (2011, p. 231) “é o mecanismo oficial de apuração de graves violações aos direitos humanos, normalmente aplicados em países emergentes de períodos de exceção ou de guerras civis”.
No caso brasileiro, a CNV concentrou seus esforços na análise e esclarecimento das graves violações de direitos humanos praticadas durante a ditadura brasileira (1964-1985). Em apertada síntese, a CNV ouviu vítimas e testemunhas, bem assim convocou agentes da repressão para prestar esclarecimentos. Realizou mais de 100 eventos, na forma de audiências públicas e assembleias de apresentação dos relatórios preliminares de pesquisa. Produziu diligências em unidades militares, ocasião em que estiveram presentes ex-presos políticos e familiares de mortos e desaparecidos. Formou um núcleo pericial para elucidar as circunstâncias das graves violações de Direitos Humanos, o qual elaborou laudos periciais, relatórios de diligências técnicas e produziu croquis relativos a unidades militares. Colaborou com as várias instâncias do poder público para a apuração de violação de Direitos Humanos, além de ter enviado aos órgãos públicos competentes dados que pudessem auxiliar na identificação de restos mortais de desaparecidos. Também identificou os locais, estruturas, instituições e circunstâncias relacionadas à prática de violações de Direitos Humanos.
A CNV, em 10 de dezembro de 2014, entregou seu relatório final à Presidente Dilma Rousseff, no qual concluiu que: a conduta de detenções ilegais e arbitrárias, tortura, violência sexual, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres, resultou de uma política estatal, de alcance generalizado contra a população civil, caracterizando crimes contra a humanidade.
A Comissão identificou 434 casos de mortes e desaparecimentos de responsabilidade do Estado brasileiro durante o período de 1946-1988. No capítulo referente à autoria de graves violações de direitos humanos, enumerou 377 agentes públicos envolvidos em diversos planos de participação: responsabilidade político-institucional; responsabilidade pelo controle e gestão de estrutura e procedimentos; e responsabilidade pela autoria direta de condutas que concretizaram as graves violações.
Dentre as 29 medidas e políticas públicas recomendadas pela CNV para prevenir violações de direitos humanos, assegurar a sua não repetição e promover o aprofundamento do Estado Democrático de Direito no Brasil, merecem destaque: o reconhecimento, pelas Forças Armadas, de sua responsabilidade institucional pela ocorrência de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar (o que, inclusive, foi determinado na sentença internacional) e a determinação, pelos órgãos competentes, da responsabilidade jurídica - criminal, civil e administrativa - dos agentes públicos que deram causa às graves violações, afastando-se, em relação a esses agentes, a aplicação dos dispositivos concessivos de anistia inscritos na Lei n. 6.683/1979.
Vê-se, portanto, que a CNV se filiou ao mesmo posicionamento exteriorizado pela Corte Interamericana no “Caso Gomes Lund”, quando reconheceu a inaplicabilidade da Lei de Anistia aos agentes públicos que foram, reconhecidamente, responsáveis pelas graves violações de direitos humanos ocorridas naquele episódio fatídico.