A ideia da concertação no direito administrativo não é nova, consolidou-se ao longo dos anos nas democracias avançadas e ganhou força no Brasil com a publicação da Lei 9.784/1999, que regula o processo administrativo no âmbito da administração pública federal.
Quando falamos em direito ambiental, identificamos a existência de instrumentos de concertação administrativa anteriores à lei do processo administrativo, especialmente o Termo de Compromisso Ambiental, que foi institucionalizado por meio da Lei 9605/1998, popularmente conhecida como Lei de Crimes Ambientais. Está na gênese deste ramo do direito o princípio da participação, a ideia de cidadania ativa e a vocação para o diálogo.
Concertar, como a própria palavra já diz, é uma busca por acordo, por uma combinação, pela harmonização de interesses com vistas a um fim determinado. Tal medida é relevante quando pensamos que, por força constitucional, o nosso país é um Estado Democrático de Direito.
Em face destes fatores, é de fundamental importância a compreensão dos princípios e dos limites que regem a “gestão ambiental concertativa”, dada a constância a relevância dos acordos administrativos construídos diariamente pelos gestores públicos para dar garantir a legalidade e a efetividade da política ambiental.
- Definindo Gestão Ambiental Concertativa
Antes de avançar na discussão sobre a gestão ambiental Concertativa é necessário frisar que sempre qualquer ação do estado deve ser amparada no princípio da legalidade e no regime constitucional. De nada valem acordos administrativos que não tenham por finalidade precípua, em última instância, o cumprimento da Lei e da Constituição. Como bem lembra Egon Bockmann Moreira, diversamente dos entes privados, “a administração pública concretiza a atividade qualificada pela tutela de interesses públicos indisponíveis, titularizados pela coletividade. Ao revés, o sujeito privado maneja, de regra, interesses particulares, por si só imediatamente titularizados e disponíveis” (MOREIRA, 2010, p. 28).
Por outro lado, é importante que tenhamos ciência de que a gestão da concertação terá sobre a mesa do administrador o conflito destes dois tipos de interesses, públicos e privados. Logo, é preciso construir uma ponte para a mediação dos conflitos que, em regra, é exercida pelos princípios da razoabilidade, da finalidade e da proporcionalidade.
Se o ato administrativo de concertação não se justificar de forma razoável, não buscar a finalidade legal-constitucional e não atender uma mediação entre meios e fins que vise resguardar, além do interesse dos particulares submetidos, a tutela dos interesses coletivos, estaremos sempre diante de um ato nulo, podendo, inclusive, ensejar enquadramento como ato de improbidade administrativa.
É por estas razões que existem limites à gestão concertativa. Esta deve ser utilizada, exclusivamente, para mediar conflitos de interesse e de forma a não resultar em prejuízos aos interesses públicos. O administrador deve respeitar, em todas as hipóteses, a finalidade pública estampada na norma que lhe outorga competência jurídica para a realização dos seus atos de gestão.
De acordo com Bernardo Strobel Guimarães, a administração pública atual trabalha num ambiente onde prevalece um permanente cenário de conflitos de interesses das mais diversas ordens, além disso, não pode mais assentar a sua atuação unicamente na garantia do acesso a demandas concretas e atuais do cidadão. Também deve se preocupar com questões futuras, onde incluídos a tutela ambiental.
Surge, pois, um alto grau de tensão entre os interesses existentes no tecido social, reclamando que a Administração os harmonize por meio das suas atuações. Tem-se, portanto, a necessidade de a Administração estruturar condições concretas do desenvolvimento social. Nesta ótica, a missão que se impõe transcende as ideias dos paradigmas anteriores, pois nem sequer se trata de prestar concretamente utilidades a serem fruídas pela sociedade, mas de garantir o desenvolvimento do todo social ferindo legitimidade dos diversos interesses que se colocam (GUIMARÃES, 2010, p. 86).
É exatamente por isso que se fala na emergência de um Estado “Pós-social” ou “Suprassocial”, no qual além das garantias voltadas à igualdade substancial e destinadas a proteger os cidadãos e cidadãs de infortúnios, também é necessário garantir a tutela de valores transindividuais, como a democracia, a participação política da sociedade e a conservação do meio ambiente.
No mesmo caminho, segue Humberto Ávila (2012), para quem, inspirado no pensamento do italiano Gianluigi Palombella, a existência de uma diversidade de interesses nos permite falar em “politeísmo de valores”, em virtude da impossibilidade de construções de noções conceituais absolutas, graças à multiplicidade de valores existentes no seio da sociedade.
Neste novo paradigma é que situamos a gestão ambiental concertativa, pois além de resguardar os interesses dos atuais operadores dos acordos administrativos, há uma inequívoca preocupação no sentido de que as decisões tomadas pelos gestores públicos não venham a afetar a conservação do patrimônio ambiental. Trata-se de um mecanismo de gestão aberto, que envolve o administrado na construção de um instrumento que lhe afeta diretamente, mas que poderá atingir terceiros, por isto a função mediadora da administração pública.
Outro aspecto importante da gestão ambiental concertativa é a criação de elevado grau de segurança jurídica na relação entre o estado, os particulares e a coletividade. No momento em que há uma profusão gigantesca de normas derivadas das atividades estatais de regulamentação e regulação (ÁVILA, 2012), a formatação de um acordo administrativo entre os interessados permite um mínimo de confiabilidade e calculabilidade das ações futuras, evitando a perpetuação dos conflitos de interesse que tendem a prejudicar a própria conservação do patrimônio ambiental.
Desta forma, podemos definir a priori a gestão ambiental concertativa como “a busca da construção de consensos entre a administração, particulares e a coletividade para garantir, conjuntamente, a regularidade ambiental da atividade econômica, a conservação do patrimônio ambiental, a compensação e a mitigação de danos e a segurança jurídico-administrativa entre os envolvidos”.
É relevante, ainda, notar o fato de que o principal instrumento utilizado neste tipo de atividade administrativa, o Termo de Compromisso Ambiental, possuir força de título executivo extrajudicial e, como os demais atos administrativos, auto-executoriedade no caso de descumprimento.
- Dos Princípios Aplicáveis à Gestão Ambiental Concertativa
É desnecessário afirmar que os atos de concertação administrativa estão sujeitos ao princípio da legalidade. Esta é uma questão lógica que vincula todos os atos executados pela administração pública nas suas mais básicas funções. Aplicam-se, também, por óbvio, os princípios da publicidade, da impessoalidade, da moralidade e da eficiência, todos inscritos no caput do art. 37 da Norma Fundamental.
Por seu turno, como destacado anteriormente, a concertação ambiental possui como base de mediação a razoabilidade, a finalidade e a proporcionalidade. São princípios basilares e fundamentais em cada um dos atos de concertação a serem firmados pela administração.
Certo é que muitos autores tratam tais princípios de forma combinada, notadamente a razoabilidade e a proporcionalidade, princípios que, muitas vezes, são considerados um só, ou um a parte do outro. Particularmente, prefiro uma separação didática entre estes, o que permite uma melhor compreensão dos referidos meios normativos.
Esta mesma diferenciação também é feita, dente outros, pelo desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Jessé Torres Pereira Júnior, ao afirmar que,
[...] A rigor, a razoabilidade, tal como a sua prima-irmã, a proporcionalidade (a escolha dos meios necessários e suficientes para atender aos fins, porém sem excesso de coerção, custos ou perdas), é uma técnica integrativa de interpretação jurídica, do que um princípio reitor de um sistema jurídico (PEREIRA JÚNIOR, 2009, p. 99).
No entanto, como leciona Humberto Ávila, os princípios como norma, ou normas-princípios, apresentam como uma das uma de suas características principais exatamente este caráter integrador, permitindo o exame da correlação entre “estado de coisas”, “efeitos e condutas”:
“[...] os princípios jurídicos são aquelas normas que estabelecem um estado ideal de coisas para cuja realização é necessária a adoção de comportamentos que provocam efeitos que contribuem para a sua promoção. Daí se afirmar que eles envolvem um fim (estado de coisas) e meios (condutas necessárias à sua promoção). Em uma simples ilustração, para garantir um estado de moralidade é preciso adotar condutas sérias, leais, motivas e contínuas. Em suma, para atingir um fim é necessário escolher comportamentos cujos efeitos contribuam para a sua promoção. Pode-se, por isso, asseverar que o modelo dos princípios pode ser simbolizado pela expressão “para, então é preciso” (ÁVILA, 2012, p. 119).
Assim, mais do que simples técnica de interpretação, tais princípios normatizam relações e lhes dão sustentação. Daí definirmos os princípios como “pontes de mediação”, como caminhados utilizados para atingir o ideal buscado pelo direito que é a proteção e conservação do meio ambiente nos atos administrativos de concertação.
A atividade de controle exercida pelo estado é irrenunciável. Todavia, nas palavras de Juarez Freitas (1997), a sua intervenção deve ser exercida no âmbito do “mínimo essencial” para o bom funcionamento das relações humanas. Este mínimo, ao contrário do que pensam os neoliberais, não é a prestação mínima de serviços públicos, mas o exercício mínimo de coerção jurídica visando atingir as finalidades precípuas do estado que são tutela dos direitos fundamentais (o que inclui a conservação do meio ambiente ecologicamente saudável para as presentes e futuras gerações) e da democracia, evitando-se, assim, os excessos que caracterizam o abuso de poder.
Por isto, quando a administração se utiliza dos instrumentos de concertação, deve agir para garantir a essencialidade do bem que visa preservar. Deve atuar com bom senso, dentro das prescrições valorativas previstas e que estruturam o nosso ordenamento jurídico. Para este “bom senso”, damos o nome de razoabilidade:
A razoabilidade tem lastro em análise axiológica, para descobrir se a relação entre a finalidade normativa e a conduta administrativa é racionalmente clara. Determina a exclusão de condutas imprudentes, bizarras e contrárias ao bom senso. Ou seja, não é possível cogitar que a lei autorizaria o agente público a adotar comportamentos desconformes a uma compreensão sensata no caso concreto (MOREIRA, 2010, p. 97).
Há uma pequena diferenciação entre razoabilidade e proporcionalidade, daí afirmar-se que ambas possuem a mesma origem. A razoabilidade é fundada numa relação axiológica, entre o que se pretende e os atos executados, de forma a evitar comportamentos que se tornam estranhos em um ambiente racional, como aplicar uma multa gigantesca em um empreendimento com baixíssima capacidade econômica. Já a proporcionalidade é a mediação entre meios e fins, como a não interdição continuada de um empreendimento que aceita funcionar dentro de determinados limites impostos pelo órgão de controle ambiental.
Nunca podemos esquecer que reza em favor do administrado o princípio da boa-fé, e que esta deve ser presumida, ao contrário da má-fé que carece de comprovação.
O princípio da proporcionalidade é muito adequado ao enfrentamento da colisão de direitos, de forma que um direito não possa suprimir a existência de outro. Nas palavras do gaúcho Juarez Freitas,
O administrador público, dito de outra maneira, está obrigado a sacrificar o mínimo para preservar o máximo de direitos. Esta parece ser uma fórmula suficientemente esclarecedora acerca do princípio. Por todo o exposto, fácil perceber que o princípio da proporcionalidade apresenta-se especialmente relevante por forçar a conceituação do poder de polícia administrativa, de forma a estabelecer firmes parâmetros ao seu exercício (FREITAS, 1997, p. 57).
Aqui retornamos ao papel da gestão concertativa, que é exatamente esta harmonização de conflitos entre interesses e direitos conflitantes, além de garantir a tutela de direitos fundamentais que, no universo da política ambiental, possuem ênfase na proteção e na conservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado.
O princípio da finalidade, como o próprio nome já diz, é aquele que esclarece os objetivos do ato administrativo que deve sempre estar em conformidade com o comando jurídico-normativo. Não existe ato administrativo válido cujas finalidades não sejam claras, razoáveis e adequadamente motivadas. Aliás, uma característica chave do ato administrativa é que o mesmo está sempre motivado, seja pela decisão da autoridade competente, seja com base no parecer ou na nota técnica da unidade de fiscalização ou licenciamento ambiental, seja nos “considerandos” presentes em muitos atos administrativos.
Quando falamos em gestão ambiental Concertativa, a finalidade primaz de todos os atos de concertação é a busca do equilíbrio ambiental. Mas existem finalidades específicas que se apresentam expressas nas cláusulas nos instrumentos jurídicos-administrativos e que também devem ser respeitadas. São elementos de conformação que, quando não observados, podem ensejar o reconhecimento de improbidade administrativa caso venham a ser descumpridos ou a sua execução não esteja razoavelmente motivada.
Cito exemplo: no atual sistema de concertação ambiental é possível a conversão de multas ou compensações pecuniárias na instrumentalização ou execução de serviços ambientais, como o fortalecimento das atividades de controle e educação ambiental através da aquisição de equipamentos, materiais, serviços, dentre outros. Tais instrumentos devem ser utilizados pela administração no âmbito da sua política ambiental. Quando há desvirtuamento do uso de um bem adquirido com esta finalidade, estamos inequivocamente em situação de desvio, o que pode representar a aplicação das penalidades civis, penais e administrativas legalmente estabelecidas.
O desvio de finalidade é um dos vícios mais comumente observados na aolicação dos instrumentos de concertação ambiental. Seja por meio da sua utilização para fins proibidos pela Lei, seja pelo desvio de resultados. Lembro que em situações de crise sempre faltam recursos para a implementação de política públicas e na área ambiental isto não é diferente. Os instrumentos de concertação não podem ser utilizados para resolver as fragilidades financeiras do estado, embora possam contribuir para tanto como acessório. Sua finalidade principal é garantir a eficácia da política ambiental e proteção/defesa/conservação do meio ambiente saudável que é um bem público de uso comum.
Como se observa, os três princípios citados, tanto razoabilidade, como proporcionalidade e como finalidade, também funcionam como limitadores da concertação ambiental, além de garantir o cumprimento dos outros princípios, especialmente os da impessoalidade e da moralidade. A motivação expressa e transparente, a busca de soluções razoáveis, e a aplicação de medidas proporcionais impedem o abuso de poder e o uso desviado dos instrumentos para beneficiar terceiros, contribuindo para uma adequada aplicação dos instrumentos.
Desta forma, a lógica de uma política de concertação ambiental, em momento algum, deve ser desviada das suas finalidades jurídicas essenciais.
- Considerações Finais
O direito concertativo é uma decorrência do regime democrático e visa substituir o mero controle por uma política ambiental inclusiva, transparente e dialogada com compromissos de avanço. Neste sentido, contribui para a substituição da gestão burocrática por um modelo mais eficiente, voltado à efetivação da cidadania.
Todavia, esta concertação está submetida a limites claros, que são sempre regidos por princípios elementares, dos quais destacamos a razoabilidade, a proporcionalidade e a finalidade.
A razoabilidade visa evitar soluções absurdas para conflitos ambientais, ou soluções que sejam contrários ao direito ou à racionalidade. A proporcionalidade visa equacionar os conflitos ambientais com o menor sacrifício possível dos direitos fundamentais envolvidos, razão pela qual o ato administrativo deve ser limitado ao estritamente necessário. Já a finalidade é descreve o objetivo buscado pelo instrumento de concertação, motivo pelo qual sempre vem instruída pela motivação.
Muito embora a aplicação destes princípios seja imperativa, os mesmos nem sempre são respeitados no processo de formulação dos instrumentos ou na sua aplicação posterior. A validade de um instrumento de concertação administrativa não se extingue com a sua assinatura, mas com o seu cumprimento efetivo tanto pelo administrado quando pelo gestor público. Tais documentos possuem força de vinculação jurídica que somente pode ser superada por lei ulterior menos restritiva. Ou seja, seus efeitos não se interrompem com o tempo.
Quando trato deste tema, sempre destaco que existem dois inimigos para a gestão ambiental concertativa: o administrador sem iniciativa e o administrador afoito. O primeiro paralisa a administração, na medida em que um regime democrático exige do poder público a busca de soluções que atendam as demandas da população. O segundo, coloca em risco a segurança do interesse público, pois provoca desvios dos seus objetivos por desconhecimento da lei ou por má-fé.
Assim, se é bem verdade que a gestão ambiental concertativa é uma inovação jurídica que traz soluções para os conflitos ambientais e vantagens ao atendimento dos interesses públicos por ela tutelados, também é verdade que a má-administração dos remédios pode resultar em prejuízos (alguns irreparáveis) para a coletividade. É por isso que sempre é recomendável o diálogo, a transparência e a parcimônia, além da obrigatória observância dos princípios que fundam o trabalho da administração pública.
REFERÊNCIAS
ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica: entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2012.
FREITAS, Juarez. O Controle dos Atos Administrativos e os Princípios Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 1997.
GUIMARÃES, Bernardo Strobel. A Participação no Processo Administrativo. In: MEDAUAR, Odete; e SCHIRATO, Vitor Rhein. Atuais Rumos do Processo Administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 79-97.
MOREIRA, Egon Bockeman. Processo Administrativo: princípios constitucionais e a Lei 9.784/1999. São Paulo: Malheiros, 2010.
PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres. Controle Judicial da Administração Pública: da legalidade estrita à lógica do razoável. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2009.