3. DOS REFLEXOS DA ADPF nº 130 NA LEI 6.015/73
Feitas as considerações do capítulo antecedente e demonstrando que o sistema registral brasileiro, desde o Decreto n° 4.857/1939 até a Lei n° 6.015/73, foram elaborados em período de cerceamento de liberdades públicas, podemos nos perguntar: qual reflexo poderá haver, na Lei de Registros Públicos, o julgamento de uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental que tratava da Lei de Imprensa?
A resposta passa pela análise dos dispositivos da Lei n° 5.250/67, também não recepcionados, já que todo o bloco legal não o foi, contidos no artigo 8º usque 11 - Capítulo II – Do Registro, que se passa a descrever, verbis:
CAPÍTULO II. DO REGISTRO. Art. 8º Estão sujeitos a registro no cartório competente do Registro Civil das Pessoas Jurídicas: I - os jornais e demais publicações periódicas; II - as oficinas, impressoras de quaisquer naturezas, pertencentes a pessoas naturais ou jurídicas; III - as empresas de radiodifusão que mantenham serviços de notícias, reportagens, comentários, debates e entrevistas; IV - as empresas que tenham por objeto o agenciamento de notícias. Art. 9º O pedido de registro conterá as informações e será instruído com os documentos seguintes: I - no caso de jornais ou outras publicações periódicas: a) título do jornal ou periódico, sede da redação, administração e oficinas impressoras, esclarecendo, quanto a estas, se são próprias ou de terceiros, e indicando, neste caso, os respectivos proprietários; b) nome, idade, residência e prova de nacionalidade do diretor ou redator-chefe; c) nome, idade, residência e prova de nacionalidade do proprietário; d) se propriedade de pessoa jurídica, exemplar do respectivo estatuto ou contrato social e nome, idade, residência e prova da nacionalidade dos diretores, gerentes e sócios da pessoa jurídica proprietária; II - no caso de oficinas impressoras: a) nome, nacionalidade, idade e residência do gerente e do proprietário, se pessoa natural; b) sede da administração, lugar, rua e número onde funcionam as oficinas e denominação destas; c) exemplar do contrato ou estatuto social, se pertencentes a pessoa jurídica. III - no caso de empresas de radiodifusão: a) designação da emissora, sede da sua administração e local das instalações do estúdio; b) nome, idade, residência e prova de nacionalidade do diretor ou redator-chefe responsável pelos serviços de notícias, reportagens, comentários, debates e entrevistas. IV - no caso de empresas noticiosas: a) nome, nacionalidade, idade e residência do gerente e do proprietário, se pessoa natural; b) sede da administração; c) exemplar do contrato ou estatuto social, se pessoa jurídica. Parágrafo único. As alterações em qualquer dessas declarações ou documentos deverão ser averbadas no registro no prazo de 8 (oito) dias. Art. 10. A falta de registro das declarações exigidas no artigo anterior, ou de averbação da alteração, será punida com multa que terá o valor de meio a dois salários-mínimos da região. § 1º A sentença que impuser a multa fixará prazo, não inferior a 20 dias, para registro ou alteração das declarações. § 2º A multa será liminarmente aplicada pela autoridade judiciária cobrada por processo executivo, mediante ação do Ministério Público, depois que, marcado pelo juiz, não for cumprido o despacho. § 3º Se o registro ou alteração não for efetivado no prazo referido no § 1º deste artigo, o juiz poderá impor nova multa, agravando-a de 50% (cinqüenta por cento) toda vez que seja ultrapassada de dez dias o prazo assinalado na sentença. Art. 11. Considera-se clandestino o jornal ou outra publicação periódica não registrado nos termos do art. 9º, ou de cujo registro não constem o nome e qualificação do diretor ou redator e do proprietário.
Fazendo uma análise comparativa com a o conteúdo do artigo 122 usque 126 da Lei n° 6.015/73, ou seja, também anterior à Constituição Federal de 1.988, podemos observar a similaridade, para não dizer identidade de comandos. Veja-se, verbis.
CAPÍTULO III. Do Registro de Jornais, Oficinas Impressoras, Empresas de Radiodifusão e Agências de Notícias. Art. 122. No registro civil das pessoas jurídicas serão matriculados: I - os jornais e demais publicações periódicas; II - as oficinas impressoras de quaisquer natureza, pertencentes a pessoas naturais ou jurídicas; III - as empresas de radiodifusão que mantenham serviços de notícias, reportagens, comentários, debates e entrevistas; IV - as empresas que tenham por objeto o agenciamento de notícias. Art. 123. O pedido de matrícula conterá as informações e será instruído com os documentos seguintes: I - no caso de jornais ou outras publicações periódicas: a) título do jornal ou periódico, sede da redação, administração e oficinas impressoras, esclarecendo, quanto a estas, se são próprias ou de terceiros, e indicando, neste caso, os respectivos proprietários; b) nome, idade, residência e prova da nacionalidade do diretor ou redator-chefe; c) nome, idade, residência e prova da nacionalidade do proprietário; d) se propriedade de pessoa jurídica, exemplar do respectivo estatuto ou contrato social e nome, idade, residência e prova de nacionalidade dos diretores, gerentes e sócios da pessoa jurídica proprietária. II - nos casos de oficinas impressoras: a) nome, nacionalidade, idade e residência do gerente e do proprietário, se pessoa natural; b) sede da administração, lugar, rua e número onde funcionam as oficinas e denominação destas; c) exemplar do contrato ou estatuto social, se pertencentes a pessoa jurídica. III - no caso de empresas de radiodifusão: a) designação da emissora, sede de sua administração e local das instalações do estúdio; b) nome, idade, residência e prova de nacionalidade do diretor ou redator-chefe responsável pelos serviços de notícias, reportagens, comentários, debates e entrevistas. IV- no caso de empresas noticiosas: a) nome, nacionalidade, idade e residência do gerente e do proprietário, se pessoa natural; b) sede da administração; c) exemplar do contrato ou estatuto social, se pessoa jurídica. § 1º As alterações em qualquer dessas declarações ou documentos deverão ser averbadas na matrícula, no prazo de oito dias. § 2º A cada declaração a ser averbada deverá corresponder um requerimento. Art. 124. A falta de matrícula das declarações, exigidas no artigo anterior, ou da averbação da alteração, será punida com multa que terá o valor de meio a dois salários mínimos da região. § 1º A sentença que impuser a multa fixará prazo, não inferior a vinte dias, para matrícula ou alteração das declarações. § 2º A multa será aplicada pela autoridade judiciária em representação feita pelo oficial, e cobrada por processo executivo, mediante ação do órgão competente. § 3º Se a matrícula ou alteração não for efetivada no prazo referido no § 1º deste artigo, o Juiz poderá impor nova multa, agravando-a de 50% (cinqüenta por cento) toda vez que seja ultrapassado de dez dias o prazo assinalado na sentença. Art. 125. Considera-se clandestino o jornal, ou outra publicação periódica, não matriculado nos termos do artigo 122 ou de cuja matrícula não constem os nomes e as qualificações do diretor ou redator e do proprietário. Art. 126. O processo de matrícula será o mesmo do registro prescrito no artigo 121.
Pelo que se depreende a olho nu, pode-se arriscar até em dizer que a Lei n° 6.015/73 acabou por reproduzir as disposições normativas da Lei n° 5.250/67, apenas alterando a terminologia "registro" para "matrícula", que, na realidade, não divergem para fins do caso em questão. Conforme antes explicitado, a terminologia utilizada na Lei de 1.973 acabou por encampar a de seu antecessor, Decreto n° 4.857/1939, que dispunha do vocábulo matrícula, fazendo a distinção do registro constitutivo.
Assim, no íntimo da vontade legislativa, as leis de 1.967 e de 1.973 nada divergiram. Permaneceu o vocábulo matrícula para separar o registro da pessoa jurídica, para fins de obtenção de personalidade jurídica, da matrícula propriamente dita, que objetivava o controle governamental do meio noticioso.
Dizemos isto uma vez que o objetivo legal em determinar o registro da Lei de 1.967, ou matrícula da Lei de 1.939 e 1.973, de jornais, periódicos, oficinas impressoras, empresas de radiodifusão e agência de notícias, era o controle da imprensa, censura prévia, com o fim de se saber onde eram produzidos e impressos os jornais que poderiam articular contra o governo ditatorial, quem era seu redator-chefe, proprietário, onde se localizavam, etc. Da mesma forma com as empresas de rádio e agências de notícias.
No cenário jurídico atual, pelo regime democrático, a imprensa é livre, assim como também o é toda liberdade de pensamento. Não se necessita de controle deste tipo. O próprio jornal, periódico, oficinas impressoras, agências de radiodifusão e de notícias possuem seu registro, seja na Junta Comercial, ou mesmo no RCPJ, caso não seja sociedade empresária, onde todos os dados necessários estarão arquivados por ocasião de sua constituição em pessoa jurídica, com o devido efeito da publicidade e segurança jurídica. Nisto reside a transparência necessária.
É o que encontramos nas disposições do art. 45, do CC, verbis: “Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo” e art. 46, do mesmo códex, verbis: “O registro declarará: I - a denominação, os fins, a sede, o tempo de duração e o fundo social, quando houver; II - o nome e a individualização dos fundadores ou instituidores, e dos diretores; III - o modo por que se administra e representa, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente; IV - se o ato constitutivo é reformável no tocante à administração, e de que modo; V - se os membros respondem, ou não, subsidiariamente, pelas obrigações sociais; VI - as condições de extinção da pessoa jurídica e o destino do seu patrimônio, nesse caso”.
Flavio Tartuce, ao tratar do art. 45, do CC, nos ensina: “Esse artigo, na verdade, ressalta a tese de que o Código Civil adota a teoria da realidade técnica, uma vez que a pessoa jurídica, para existir, depende de ato de constituição de seus membros, o que representa um exercício da autonomia privada”. (2011, p. 119)
Em sentido contrário à ideia supramencionada, estão as considerações de Walter Ceneviva.
Matrículas e registro são, na LRP, espécies de assentamento em livro público, para fins de identificação aberta ao acesso de todos os interessados. O ato de matricular corresponde a indicar espécie determinada de bem ou direito incluído nessa categoria. O procedimento para os dois tipos de assento é o mesmo (art. 126), mas se distinguem quanto aos fins. O art. 122 revogou o art. 8° da Lei 5.250, reformando por inteiro a matrícula. Trata-se de assentamento que preserva impressos e periódicos da clandestinidade e de uma forma suplementar de cadastramento e controle, além da mantida em órgãos específicos, como por exemplo, os subordinados à Secretaria Nacional das Comunicações, sobre as emissoras. (2008, p. 280).
Continua explicitando:
Controle apesar da imprensa livre – “Nos regimes democráticos, a criação de empresa e a publicação de um periódico é livre, obedecidas as exigências normais de registro, comuns a qualquer outra firma ou empresa”. Mesmo nos sistemas democráticos de governo admite-se o registro, apesar de destinado a estabelecer forma suplementar de controle da atividade na comunicação social. A exigência é constitucional, na medida em que não tolha a liberdade de informação e de manifestação do pensamento. Em meu livro Direito constitucional brasileiro (Saraiva, 2003,p.64), tendo em conta a inciso XIV do art. 5°, da CF (“é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”), escrevi que o acesso à informação a respeito os atos e fatos da administração pública corresponde a um dos aspectos do que se convencionou chamar de transparência governamental, como direito do povo de saber as razões pelas quais as decisões são adotadas pelos governantes, pelos legisladores e mesmo pelo Judiciário, aos quais o dispositivo se refere. Não Há, porém, direito à informação pública sobre a vida privada das pessoas em geral. (...) Com todos os seus defeitos e qualidades, jornais e emissoras, de televisão ou de rádio, periódicos em geral, são veículos vivos e atuantes para expressar as tensões sociais, ensejando caminho para manifestação significativa a boa parte dos setores de que se compõe a nacionalidade. A manifestação deve ser livre, punidos os seus abusos, sob o pálio de legislação bem elaborada, a posteriori, e pelo Judiciário.
Ainda, conclui:
A matrícula de jornais, oficinas impressoras, empresas de radiodifusão e agências de notícias não se confunde com o registro das pessoas jurídicas a que pertencem, exercentes dessa atividade. O registro é lançado ou no Registro Civil de Pessoas Jurídicas ou no Serviço de Registro de Empresas Mercantis (Junta Comercial). As regras pertinentes aos assentamentos empresariais e a legislação correspondente são apartadas deste capítulo, alheias que são à matrícula, em relação à qual – e para publicações periódicas e jornais – há pena de clandestinidade (art. 125).
Porém, apesar do entendimento esposado pelo insigne doutrinador, data venia, ousamos divergir. Em princípio, não houve revogação do art. 8° da Lei n° 5.250/67 pelo art. 122 da Lei n° 6.015/73. Conforme depreendemos do comando do art. 115, parágrafo único, da Lei n° 6.015/73, verbis: “No registro civil de pessoas jurídicas serão inscritos: I - os contratos, os atos constitutivos, o estatuto ou compromissos das sociedades civis, religiosas, pias, morais, científicas ou literárias, bem como o das fundações e das associações de utilidade pública; II - as sociedades civis que revestirem as formas estabelecidas nas leis comerciais, salvo as anônimas. Parágrafo único. No mesmo cartório será feito o registro dos jornais, periódicos, oficinas impressoras, empresas de radiodifusão e agências de notícias a que se refere o artigo 8º da Lei n. 5.250, de 9 de fevereiro de 1967”. (g.n.)
Se a própria Lei de Registros Públicos fez ressalva da aplicação do art. 8° da Lei n° 5.250/67, não poderia tê-lo revogado. O instituto da revogação traz a ideia de incompatibilidade de texto normativo. No presente caso vemos confluência.
Em segundo, confirmando o propósito aqui esposado, o mesmo parágrafo único do art. 115, da lei 6.015/73 indica o “registro” do meio de veiculação de informação, como consequência do que constou do art. 8°, da Lei n° 5.250/67. Porém, em péssima e confusa redação, a vontade legislativa seria matrícula, como constou no art. 122 em sequência, cujo objetivo era o controle e censura prévios da imprensa.
Assim, não recepcionado que foi o bloco legal constituído pela Lei n° 5.250/67, por simetria de razão e de direito, também devemos considerar não recepcionado o capítulo III da Lei n° 6.015/73, artigo 122 usque 126, o que torna despicienda a matrícula, ou registro mencionado na Lei de 1.967, da imprensa no Livro B do RCPJ, tornando-se devido, apenas, seu registro para fins de aquisição de personalidade jurídica, de cunho constitutivo, seja na Junta Comercial ou Livro A do RCPJ.