1.Introdução
A 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no dia 27/04/2010, confirmou a legalidade da adoção de duas crianças por um casal de mulheres. Elas ganharam em 1º e 2º graus, mas recurso do Ministério Público gaúcho levou a questão ao STJ, que decidiu manter a decisão do Tribunal de Justiça (TJ-RS). Os Ministros argumentaram que a solução é a melhor para as crianças, já que lhes dá uma família apta a acolhê-las e educá-las, conforme o laudo da assistente social ouvida no processo.
A lide ainda não acabou, pois o Ministério Público recorreu ao STF do acórdão prolatado pelo TJ-RS, alegando que a decisão violaria o art. 226, § 3º, da Constituição da República (Folha de S. Paulo, 28/04/2010, C1). Essa norma reconhece "a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar". Ela impediria, na leitura do Ministério Público, a adoção de crianças por casais homossexuais, já que esses não constituiriam família, segundo a Constituição.
O caso concreto tem a seguinte peculiaridade. As crianças já haviam sido adotadas por uma das companheiras e o que se pleiteava era que a outra também pudesse constar do registro como mãe. Visava-se uma "extensão" da adoção. Mesmo assim, a decisão foi paradigmática por se tratar da primeira, em tribunais superiores, a reconhecer que casais homoafetivos podem adotar crianças.
Como as questões infraconstitucionais já estão superadas, pretende-se aqui anotar, brevemente, as razões pelas quais a Constituição da República sustenta a pretensão das recorridas. Para isso, mostra-se que a Lei Maior estabelece que o interesse da criança é sempre prioritário e, neste caso, ele se concretiza pela adoção (item 2). Após, nota-se que o constituinte, ao reconhecer a comunidade monoparental como família, prescindiu da existência necessária de um homem e de uma mulher na família (item 3). Por último, argumenta-se que o art. 226, § 3º, da Constituição, não proíbe o reconhecimento de uniões homoafetivas como família, pois, como direito humano, estabelece um mínimo, que é o reconhecimento da união estável heterossexual, não impedindo a juridicização de outras situações familiares (item 4).
2. Prevalência do interesse da criança
Quando se decide sobre adoção, ou sobre qualquer causa que envolva crianças, é o interesse delas que a Justiça deve visar. O art. 227, caput, da Constituição, estatui com clareza:
"Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão."
Dispõe no mesmo sentido o art. 3º, 1, da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 20/11/1989 e ratificada pelo Brasil em 20/09/1990:
"Em todas as medidas relativas às crianças, tomadas por instituições de bem estar social públicas ou privadas, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão consideração primordial os interesses superiores da criança."
Se o juiz entende que o casal é capaz de garantir à criança os seus direitos constitucionais, deve deferir a adoção, sendo irrelevante o fato de a dupla ser hétero ou homossexual. Relevante é cumprir o que o constituinte quis para cada criança do Brasil. E não há dúvida de que uma criança com dois pais está mais protegida do que apenas com um: se um perde o emprego, fica doente ou até mesmo falece, a criança não fica órfã, já que tem mais um. Evidentemente, esta maior proteção independe do fato de os pais serem do mesmo sexo ou de sexos distintos.
Há o contra-argumento de que a criação por dois homens, ou duas mulheres, seria prejudicial ao desenvolvimento sadio da criança, seja pela ausência de uma figura masculina e outra feminina, seja pelo preconceito que ela viria a sofrer. Nesse sentido, a adoção não priorizaria os interesses da criança; ao contrário, ser-lhe-ia prejudicial.
Mesmo sem conhecimentos técnicos sobre o assunto, não tenho dúvida (pois isso é senso comum) de que o ideal para uma criança é ser criada por um casal afetuoso, presente, vocacionado, rigoroso, disponível, zeloso, altruísta etc. Mas também não tenho dúvida de que todos esses predicados são impossíveis de serem aferidos quando da adoção, mesmo porque o comportamento dos adotantes pode mudar ao longo do tempo.
A diferença sexual entre os pais não garante que tenham esses atributos. E a semelhança sexual não exclui que eles possam tê-los. De qualquer forma, é mais plausível que a criança tenha tudo isso na companhia de um casal – hétero ou homossexual – do que em um orfanato.
Quanto ao preconceito, o temor de que a criança o sofra não pode impedir a sensível melhoria em sua condição de vida que a adoção representa. O preconceito é futuro e incerto. A melhoria é atual e certa. Desistir de algo bom, atual e certo, pelo temor de algo mau, futuro e incerto é irracional e, certamente, contraria os interesses da criança.
Volta-se a objetar esse contra-argumento no item seguinte. Mas, por ora, o objetivo é apenas deixar claro que a adoção de criança por um casal homoafetivo, considerado apto pelo juízo e pela assistência social, atende ao desejo da Constituição, pois contribui para que os direitos da infância sejam resguardados.
3. Sede constitucional das famílias monoparentais
O art. 226, § 4º, da Lei Máxima, legitima a chamada família monoparental e fornece dois argumentos a favor da decisão do STJ:
"§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes."
A primeira razão é um argumento a fortiori para a possibilidade de famílias formadas por casais homossexuais. Se um ascendente forma uma família com seus descendentes, por que dois ascendentes (ainda que do mesmo sexo) não a formariam com os seus? Uma mãe e um filho são uma família. Duas mães e um filho, com mais razão, também o são. Em Direito, o que abunda não prejudica e esse caso não é exceção.
O segundo ponto é o seguinte: a norma estatui que pode haver família sem a figura masculina e a figura feminina. Retoma-se aqui a objeção iniciada no item anterior. Se o constituinte julgasse que a única família possível é aquela formada por pai, mãe e filhos, não teria considerado família a monoparental. Por consequência, o constituinte aceita que a criança viva sem o pai ou sem a mãe. E aceita, portanto, que apenas uma pessoa adote a criança, na esteira do que o nosso Código Civil permite desde o início do século XX. Mesmo com todo o preconceito que a criança pode sofrer por ter apenas pai, ou apenas mãe, ou com todo o sofrimento que pode experimentar por não comemorar dia das mães ou não ter a quem presentear no dia dos pais. Porque, para o constituinte, é melhor o ser humano ter alguma família (mesmo que seja atípica) do que não ter nenhuma.
A legitimação da família monoparental pelo constituinte mostra que a Lei Maior protege a família distinta do modelo tradicional, exatamente por entender que ela, qualquer que seja sua forma, é a "base da sociedade" (art. 226, caput) e que favorece o pleno desenvolvimento humano. É coerente com a vontade constitucional, portanto, proteger novas formações familiares, como a capitaneada por um casal homoafetivo.
4. Direitos humanos como mínimo, e não como máximo
O recorrente alega, conforme se extrai do noticiário, que a adoção de criança por casal homossexual feriria o art. 226, § 3º, da Constituição:
"§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento."
Tal norma, ao reconhecer a união estável, conteria uma proibição implícita: o relacionamento afetivo estável entre duas pessoas do mesmo sexo não poderia ser considerado família. Seria inconstitucional proteger uma "união estável homoafetiva" ou "parceria civil homoafetiva", pois o conceito de família escolhido pelo constituinte não abrangeria essa modalidade. Como consequência de não constituírem uma entidade familiar, os casais homossexuais não poderiam adotar, conjuntamente, uma criança.
Creio que a interpretação não é a melhor, não apenas pelo que já foi exposto nos dois itens anteriores, mas também por outras duas razões: uma gramatical e outra que chamarei de contextual.
Primeiro, a gramatical. O texto não dispõe que apenas a união estável entre homem e mulher é entidade familiar. Não há tal expressão restritiva. A norma que se extrai do artigo é que o Estado é obrigado a reconhecer efeitos jurídicos à união estável entre homem e mulher. Mas não impede o Estado (por meio de qualquer de seus três poderes) de reconhecer outras associações familiares, como a homoafetiva. A interpretação do recorrente enxerga proibição onde só existe uma obrigação e seu direito correlato. E, numa ordem jurídica calcada na liberdade e na legalidade, não se presumem proibições.
Passa-se agora à contextual. A finalidade da norma é assegurar o direito fundamental de o homem e a mulher que vivem juntos terem sua união estável reconhecida pelo Estado. Portanto, estamos no campo dos direitos humanos, que se espraiam na Constituição muito além do art. 5º. Para não haver dúvida de que os direitos que concernem à proteção da família inserem-se nesta seara, basta lembrar que:
a)a "proteção à maternidade e à infância" é um direito social (art. 6º);
b)o art. 7º, XII, XVIII, XIX, XXV, também estabelece, no âmbito dos direitos sociais, normas protetivas da família;
c)o direito a um casamento livre e à consequente fundação de uma família é consagrado no art. 16, da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).
Para se interpretar adequadamente o art. 226, § 3º, destarte, é preciso ter em mente o seu contexto: ele é um direito humano. E direitos humanos estabelecem sempre o mínimo devido à cada pessoa, pelo simples fato de pertencer à espécie humana. Eles firmam um piso de proteção, e não um teto.
Um exemplo clarifica esse ponto: o empregador pode pagar ao trabalhador demitido sem justa causa indenização superior à estipulada pela lei? Pode, porque a indenização legal representa o mínimo que o empregado deve receber, com o fito de lhe auxiliar nas despesas enquanto ele não encontra outra colocação. Se o empregador paga mais, certamente não viola o direito fundamental do trabalhador à indenização, estabelecido no art. 7º, I, da Lei Maior; ao contrário, realiza-o mais amplamente.
Da mesma forma, o resguardo jurídico às uniões homoafetivas não viola o art. 226, § 3º, uma vez que os dispositivo firma apenas o mínimo: a proteção do Estado às uniões estáveis heterossexuais. Este mínimo foi uma conquista da cidadania, que conseguiu colocar na Constituição um direito pelo qual muito se litigou nos tribunais, à época em que a união estável não era reconhecida nem mesmo por lei.
Mas o mínimo não impede a sua superação (pois ele não é o máximo). Entender tal texto como o máximo que a Constituição permite em termos de união estável e extrair dele uma proibição ao reconhecimento de uniões homoafetivas equivaleria a usar o direito humano contra seres humanos, o que seria um indiscutível contrassenso. Seria o mesmo que impedir o trabalhador de receber indenizações superiores ao mínimo legal. Desta forma, nada impede – e, na verdade, tudo recomenda – que o Judiciário aplique o art. 226, § 3º, por analogia, aos casais do mesmo sexo, reconhecendo-os como família e confirmando a possibilidade de adotarem filhos em comum.
Tudo recomenda, pois a Constituição consagra o princípio da igualdade (art. 5º, caput) e firma como objetivo fundamental da República promover o bem de todos, sem qualquer forma de discriminação (art. 3º, IV). Ora, não reconhecer as uniões homoafetivas como família, apenas pelo fato de serem duas pessoas do mesmo sexo, fere estes importantíssimos pilares do nosso ordenamento.
Nem se diga que os tribunais, ao realizarem tal interpretação, estariam legislando. A interpretação aqui proposta nada mais faz do que aplicar a Lei Maior. E ainda que se argumentasse inexistir lei que sustentasse a tese de família homoafetiva, tal razão não pode mais ser alegada desde a Lei Maria da Penha (nº 11.340/06), que, em seu art. 5º, parágrafo único, reconhece tal associação como familiar:
"Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
(...)
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual."
Pode-se alegar que a lei limitou o conceito de família nela contido ao seu âmbito, que é o da violência doméstica. Entretanto, já é um reconhecimento da entidade como familiar, por parte do legislador, que pode ser analogicamente estendido para âmbitos distintos. Mesmo porque é difícil dizer que duas pessoas do mesmo sexo formam uma família para fins de violência doméstica, mas não a formam para fins de adoção de uma criança. Ou é família sempre ou não é nunca.
Vê-se que o art. 226, § 3º, lido em seu contexto original – que é o dos direitos humanos – está longe de proibir a adoção de criança por casal homossexual. Articulada com o sistema constitucional, a norma, na verdade, permite e recomenda tal adoção.
5. Conclusão
A decisão do STJ tem fortes argumentos para ser mantida pelo mais alto tribunal brasileiro. Ela é a mais coerente com o princípio da igualdade, já que trata casais homossexuais de forma análoga aos heterossexuais, em atenção à abertura do constituinte às novas relações familiares, exemplificadas pela família monoparental. Ela é compatível com a melhor interpretação do art. 226, § 3º, que não restringe a proteção do Estado às uniões estáveis heterossexuais. Sobretudo, é a mais consentânea com o direito de a criança ter uma família, que poderá lhe dar o afeto necessário para seu desenvolvimento.
Não devemos usar o preconceito que as crianças adotadas por casais homoafetivos possam vir a sofrer para negar-lhes uma melhoria em suas vidas e deixá-las, literalmente, sem pai nem mãe. O preconceito, como fruto da ignorância, não dura para sempre: o STF tem a oportunidade de, exemplarmente, ajudar a desfazer mais um.