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Economia solidária: formas jurídicas e licitações públicas

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03/12/2011 às 14:33
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4 Licitação para selecionar os parceiros da economia solidária

Fora os convênios e termos de parceria, os empreendimentos de economia solidária podem também, como regra, contratar com a Administração Pública, e para tanto, a submissão a processos de licitação é, como visto, a regra.

As licitações iniciam-se sempre em uma fase interna, preparatória, que pode gerar dois resultados: uma situação de dispensa ou inexigibilidade que vai redundar em uma contratação direta; ou, afastados os requisitos da não-obrigatoriedade de sua realização, a realização de uma fase externa (que inicia com a publicação do instrumento convocatório) para se chegar, ao final, à contratação.

Há, nas licitações, possibilidades dos empreendimentos solidários participarem de modo diferente dos demais empreendimentos de mercado? Vejamos as hipóteses de não-obrigatoriedade de licitação que podem resultar na contratação direta de empreendimentos de Economia Solidária, bem como as disposições a respeito de cooperativas de trabalho e de micro e pequenas empresas.


4.1 Dispensa de licitação

A dispensa é uma exceção à regra do dever de licitar, configurando norma geral (só a União pode criar outras possibilidades). Ela se refere a situações que, embora possível, em tese, a competição entre interessados, o legislador entendeu que não seria vantajoso ou conveniente para a Administração Pública20. Assim é importante destacar, que se trata de uma lista exaustiva (art. 17 e 24), cuja dispensa ocorrerá frente à avaliação do caso concreto, mediante hipótese prevista em lei.

O art. 26 da Lei de Licitações exige que as situações de dispensa e inexigibilidade sejam necessariamente justificadas, e sua autorização seja publicada na imprensa oficial como condição para a eficácia dos atos.

A dispensa ou inexigibilidade de licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou a não observação das formalidades a elas pertinentes é crime, punível com pena de detenção, de 3 a 5 anos, e multa (art. 89, Lei 8666/1993).

O que se apresenta a seguir é um recorte das situações de dispensa de licitação que interessam aos empreendimentos de economia solidária.

As dispensas previstas no art. 17 referem-se à alienação de bens públicos, e as hipóteses de doação de bens imóveis e permuta de bens móveis valem apenas para a União, cabendo aos Estados e Municípios dispor a respeito de seus bens.21

Pelo art. 24, a dispensa pode ocorrer em função da contratação de pequeno valor (art. 24, I-II), entendida como aquelas de até 10%22 do valor da licitação na modalidade convite (art. 23, a)23, valor este a ser apurado durante todo o exercício orçamentário anual (caso contrário, constitui-se em fracionamento de licitação, o que é ilícito).24

Outras situações de dispensa do art. 24 ocorrem em função da pessoa a ser contratada pela Administração Pública, e percebe-se, então, que a economia solidária é contemplada em algumas hipóteses:

- incisos XIII25: para contratar com associações e cooperativas sociais de presos em recuperação, além de fundações de apoio das universidades;

- inciso XX26: com associação de deficientes físicos para prestação de serviços ou fornecimento de mão de obra;

- inciso XXIV: “para a celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão”.27

- inciso XXV: “na contratação realizada por Instituição Científica e Tecnológica - ICT ou por agência de fomento para a transferência de tecnologia e para o licenciamento de direito de uso ou de exploração de criação protegida”.

- inciso XXVII: para serviços relacionados à coleta seletiva e reciclagem de materiais, com associações ou cooperativas “formadas exclusivamente por pessoas físicas de baixa renda reconhecidas pelo poder público como catadores de materiais recicláveis”;

- inciso XX – “na contratação de instituição ou organização, pública ou privada, com ou sem fins lucrativos, para a prestação de serviços de assistência técnica e extensão rural no âmbito do Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural na Agricultura Familiar e na Reforma Agrária”.

Cabe ainda apontar uma outra hipótese de dispensa prevista em diploma legal diverso das leis de licitações e que foi uma vitória do movimento de economia solidária: a aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, na razão de, no mínimo, 30% (trinta por cento) do total dos recursos financeiros do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) repassados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) (Lei 11947/2009, art. 14).

Caso o caso concreto não se enquadre em nenhuma hipótese de dispensa (ou inexigibilidade), a licitação vai para a fase externa, pública, onde ocorre realmente a competição entre os interessados.

Atualmente a modalidade de pregão é a que deve ser obrigatoriamente usada para a aquisição de bens e serviços comuns, preferencialmente na sua forma eletrônica (art. 4º, Decreto 5450/2005).


4.2 Cooperativas de trabalho

A Lei 12349/2010 incluiu a vedação aos agentes públicos de “admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo, inclusive nos casos de sociedades cooperativas, [...] (Art. 3º,§ 1º, I, Lei 8666/1993).Até esta lei havia o entendimento majoritário que as sociedades cooperativas poderiam participar de licitações, mas apenas naquelas em seu objeto social for compatível com o objeto a ser contratado, e que este não exija relação de hierarquia e subordinação em relação ao tomador ou fornecedor do serviço em serviços terceirizados, próprias da relação de emprego e incompatível com a estrutura organizacional das cooperativas, como já decidiram o TCU (nos Acórdãos 307/2004 e 724/2006, por exemplo) e o STJ (no Recurso Especial – RE 1031610, relativo a uma contratação de cooperativa para prestação de serviços gerais). É claro que esta restrição buscava atingir aquelas falsas cooperativas de trabalho, que nada mais fazem que a intermediação de mão de obra, em geral, como terceirização ilícita (atividades não-acessórias da Administração Pública). A abrangência da mudança instituída pela Lei 12349/2010, se apenas para vedação para discriminações genéricas e generalizadas ou uma proibição total de discriminação, ainda é objeto de polêmica e certamente será objeto de discussões e questionamentos judiciais e administrativos.

No que se refere às demais situações que possibilitam que as cooperativas de trabalho participem de licitações, as propostas devem vir acrescidas de 15% sobre o valor da mão de obra, em função da contribuição previdenciária a ser recolhida pelo tomador do serviço (art. 201, III, Decreto 3048/1999).


4.3 Benefícios da Lei de Micro e Pequenas Empresas – LC 123/2006

Como já foi visto, a LC 123/2006 se refere mais diretamente às micro e pequenas empresas, mas permite que ela seja aplicada também a sociedades simples com porte equivalente.28 E apesar de haver uma vedação expressa à extensão dos benefícios ali previstos às cooperativas, com exceção das de consumo (art. 3º, §4º, VI), as regras relativas a licitações e aquisições públicas constantes nesta lei não passam de uma pequena parte dela (art. 42-49), e para este ponto os dispositivos ali previstos foram estendidos às cooperativas (com receita bruta equivalente às micro e pequenas empresas) com base em outra lei (Lei 11488/2009, art. 34).

As vantagens ali previstas podem ser categorizadas em 3 tipos:

- relativas à habilitação – exigência da comprovação da regularidade fiscal apenas para efeitos de assinatura do contrato, assegurando-se prazo para sua regularização no caso de vencer o certame (art. 42-43)29;

- relativas ao desempate na licitação – preferência às sociedades submetidas à LC 123/2006, com a instituição de margem de preferência (5% para pregão, 10% para as demais modalidades) para que elas possam apresentar a melhor proposta (art. 44-45)30;

- relativas à modelagem da licitação – com 3 benefícios possíveis: promoção de licitações de até R$ 80000,00 destinadas exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte; exigência de subcontratação dessas sociedades até 30% do total licitado; ou estabelecimento de cota de até 25% do objeto, em certames para a aquisição de bens e serviços de natureza divisível31. Estes tratamentos diferenciados não podem ultrapassar 25% do total licitado em cada ano civil, além de outras limitações que buscam assegurar a prevalência do interesse público.32


5 As licitações para os parceiros da economia solidária contratarem terceiros

Tanto os contratos como os convênios ou termos de parceria firmados com a Administração Pública envolvem, normalmente, a transferência de recurso público para a outra parte. Como os contratos buscam remunerar o contratado pelo produto ou serviço oferecido, não há que se falar em ingerência estatal sobre a destinação desses recursos repassados para o contratado.

As dúvidas aparecem quando as entidades privadas sem fins lucrativos, em especial as de economia solidária, recebem recursos advindos dos convênios e termos de parceria. O tema não é pacífico, nem uniforme deve ser sua resposta.

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A favor da exigência de licitação para estas situações, o Decreto 5504/2005 estipula

Os instrumentos de formalização, renovação ou aditamento de convênios, instrumentos congêneres ou de consórcios públicos que envolvam repasse voluntário de recursos públicos da União deverão conter cláusula que determine que as obras, compras, serviços e alienações a serem realizadas por entes públicos ou privados, com os recursos ou bens repassados voluntariamente pela União, sejam contratadas mediante processo de licitação pública, de acordo com o estabelecido na legislação federal pertinente. (art. 1º, Decreto 5504/2005)

Logo em seguida informa que o pregão é obrigatório para bens e serviços comuns, preferencialmente na sua forma eletrônica.

Além da previsão normativa, o ex-ministro do TCU, Ubiratan Aguiar, entende que o simples fato de ser uma entidade privada que está executando os serviços não disvirtua a natureza do recurso público que está sendo empregado, o que as impele a realizar, como regra, procedimentos licitatórios (AGUIAR, 2008).

Ele defende esta posição em voto vencido, no Acórdão 1777/2005 do TCU que afastou a exigência de licitação para OSCIP, com base no entendimento que elas ou outras entidades privadas sem fins lucrativos conveniadas, não integram a Administração Pública, e, portanto, não há previsão em lei (apenas em decreto) que as submeta aos ditames das leis de licitação (Lei 8666/1993 e Lei 10520/2002).

Na mesma linha, o Decreto 6107/2007 dispôs que

Para efeito do disposto no art. 116 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, a aquisição de produtos e a contratação de serviços com recursos da União transferidos a entidades privadas sem fins lucrativos deverão observar os princípios da impessoalidade, moralidade e economicidade, sendo necessária, no mínimo, a realização de cotação prévia de preços no mercado antes da celebração do contrato. (art. 11, Decreto 6107/2007)

Não é outro o entendimento do Governo Federal, ao emitir no SICONV uma nota de esclarecimento às entidades privadas sem fins lucrativos, em que se afirma categoricamente que

em razão do disposto no art. 11 do Decreto nº 6.170, de 2007, entende-se existir uma revogação tácita do art. 1º, § 1º do Decreto nº 5.504, de 2005, ou seja, inexiste necessidade das entidades privadas sem fins lucrativos realizarem pregão para selecionar os terceiros com quem irão contratar.

Conforme disposto no Decreto, além dos princípios da impessoalidade, moralidade e economicidade, as entidades privadas sem fins lucrativos deverão realizar, no mínimo, cotação prévia de preços no mercado (BRASIL, 200-)

Vale notar que a não-submissão destas entidades à licitação propriamente dita não as elide de realizar procedimentos simplificados que garantam a aplicação dos recursos públicos de modo transparente e econômico, em especial por meio da cotação prévia33.

Ademais, para OSCIP e organizações sociais (OS), as respectivas leis trazem a previsão da publicação de regulamentos próprios que autodisciplinem a aplicação de recursos públicos de acordo com os princípios da Administração Pública (art. 14, Lei 9790/1999; e art. 17, Lei 9637/1998).

Apesar das semelhanças de regulamentação com as OSCIP, no que tange a licitações, para as OS, no entanto, a situação que vem se configurando é diferente. Como elas absorvem atividade anteriormente exercida pelo poder público, de modo a prestá-la com a colaboração de bens, recursos e servidores públicos, está se assentando a tendência de exigir destas entidades a realização de licitação para aplicação desses recursos públicos, nos moldes do que já decidiu o TCU:

RECURSO DE RECONSIDERAÇÃO. ORGANIZAÇÃO SOCIAL. SUJEIÇÃO A NORMAS GERAIS DE LICITAÇÃO E DE ADMINISTRAÇÃO FINANCEIRA DO PODER PÚBLICO. OBRIGATORIEDADE DE UTILIZAÇÃO DE PREGÃO. NÃO PROVIMENTO.

1- As organizações sociais estão sujeitas às normas gerais de licitação e de administração financeira do poder público.

2 - As organizações sociais estão obrigadas a utilizar o pregão, preferencialmente na forma eletrônica, para aquisição de bens e serviços comuns realizadas com recursos federais transferidos voluntariamente. (TCU, Acórdão 601/2007)

Esta decisão está longe de ser definitiva, uma vez que a decisão do STF na ADI 1923 vai esclarecer melhor a natureza das OS e de seu vínculo com a Administração Pública.


6 Perspectivas para as licitações e a economia solidária

Apesar da legislação brasileira que envolve a economia solidária e as licitações apresentarem algumas possibilidades para esta parceria, não há dúvida que as aquisições públicas não são pensadas para este setor.

No momento atual, algumas cartas estão na mesa que podem não reverter, mas suavizar este cenário, abrindo mais alternativas para que os empreendimentos solidários possam comercializar com a Administração Pública.

Neste sentido, dois caminhos parecem ser os mais interessantes e efetivos: as margens de preferência instituídas pela Lei 12349/2010 na Lei 8666/1993; e o Anteprojeto de Lei da Economia Solidária.

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Sobre a autora
Aline Sueli de Salles Santos

Professora efetiva de Direito da Universidade Federal do Tocantins (UFT) e colaboradora do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), mestre em Direito pela Unisinos e doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). É especialista em Direito Administrativo pelo IDP e conselheira da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Aline Sueli Salles. Economia solidária: formas jurídicas e licitações públicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3076, 3 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20571. Acesso em: 26 abr. 2024.

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