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Anistia, Araguaia, CIDH e Comissão da Verdade

19/04/2012 às 15:31
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Nada obstante a aparência de atuação humanitária, a edição da Lei nº 12.528/2011 não decorreu da voluntariedade do Estado brasileiro. Trata-se de uma determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

A Lei 12.528/2011 foi publicada sob o discurso republicano e democrático. Tal diploma normativo determinou a criação da Comissão Nacional da Verdade, a ser constituída com o propósito de investigar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988.

Nada obstante a aparência de atuação humanitária, a edição da Lei 12.528/2011 não decorreu da voluntariedade do Estado Brasileiro. Trata-se de uma determinação da Corte Interamericana de Direito Humanos - CIDH que, no julgamento do CASO GOMES LUND E OUTROS (“GUERRILHA DO ARAGUAIA”) VS. BRASIL, condenou o Brasil a investigar os crimes praticados durante o período de ditadura (mortes, desaparecimentos, tortura, entre outros). A sentença da CIDH é de 24.11.10 e foi publicada em 14.12.10. O dispositivo da condenação contempla as seguintes providências:

“8. Esta Sentença constitui per se uma forma de reparação.

9. O Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 256 e 257 da presente Sentença.

10. O Estado deve realizar todos os esforços para determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas e, se for o caso, identificar e entregar os restos mortais a seus familiares, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 261 a 263 da presente Sentencia.

11. O Estado deve oferecer o tratamento médico e psicológico ou psiquiátrico que as vítimas requeiram e, se for o caso, pagar o montante estabelecido, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 267 a 269 da presente Sentença.

12. O Estado deve realizar as publicações ordenadas, em conformidade com o estabelecido no parágrafo 273 da presente Sentença.

13. O Estado deve realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional a respeito dos fatos do presente caso, em conformidade com o estabelecido no parágrafo 277 da presente Sentença.

14. O Estado deve continuar com as ações desenvolvidas em matéria de capacitação e implementar, em um prazo razoável, um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos, dirigido a todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas, em conformidade com o estabelecido no parágrafo 283 da presente Sentença.

15. O Estado deve adotar, em um prazo razoável, as medidas que sejam necessárias para tipificar o delito de desaparecimento forçado de pessoas em conformidade com os parâmetros interamericanos, nos termos do estabelecido no parágrafo 287 da presente Sentença. Enquanto cumpre com esta medida, o Estado deve adotar todas aquelas ações que garantam o efetivo julgamento, e se for o caso, a punição em relação aos fatos constitutivos de desaparecimento forçado através dos mecanismos existentes no direito interno.

16. O Estado deve continuar desenvolvendo as iniciativas de busca, sistematização e publicação de toda a informação sobre a Guerrilha do Araguaia, assim como da informação relativa a violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar, garantindo o acesso à mesma nos termos do parágrafo 292 da presente Sentença.

17. O Estado deve pagar as quantias fixadas nos parágrafos 304, 311 e 318 da presente Sentença, a título de indenização por dano material, por dano imaterial e por restituição de custas e gastos, nos termos dos parágrafos 302 a 305, 309 a 312 e 316 a 324 desta decisão.

18. O Estado deve realizar uma convocatória, em, ao menos, um jornal de circulação nacional e um da região onde ocorreram os fatos do presente caso, ou mediante outra modalidade adequada, para que, por um período de 24 meses, contado a partir da notificação da Sentença, os familiares das pessoas indicadas no parágrafo 119 da presente Sentença aportem prova suficiente que permita ao Estado identificá-los e, conforme o caso, considerá-los vítimas nos termos da Lei No. 9.140/95 e desta Sentença, nos termos do parágrafo 120 e 252 da mesma.

19. O Estado deve permitir que, por um prazo de seis meses, contado a partir da notificação da presente Sentença, os familiares dos senhores Francisco Manoel Chaves, Pedro Matias de Oliveira (“Pedro Carretel”), Hélio Luiz Navarro de Magalhães e Pedro Alexandrino de Oliveira Filho, possam apresentar-lhe, se assim desejarem, suas solicitações de indenização utilizando os critérios e mecanismos estabelecidos no direito interno pela Lei No. 9.140/95, conforme os termos do parágrafo 303 da presente Sentença.

20. Os familiares ou seus representantes legais apresentem ao Tribunal, em um prazo de seis meses, contado a partir da notificação da presente Sentença, documentação que comprove que a data de falecimento das pessoas indicadas nos parágrafos 181, 213, 225 e 244 é posterior a 10 de dezembro de 1998.

21. A Corte supervisará o cumprimento integral desta Sentença, no exercício de suas atribuições e em cumprimento de seus deveres, em conformidade ao estabelecido na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, e dará por concluído o presente caso uma vez que o Estado tenha dado cabal cumprimento ao disposto na mesma. Dentro do prazo de um ano, a partir de sua notificação, o Estado deverá apresentar ao Tribunal um informe sobre as medidas adotadas para o seu cumprimento.”

O não cumprimento da decisão proferida pela CIDH ensejará a aplicação de sanções internacionais ao Estado Brasileiro. Vale dizer, a edição da Lei 12.528/2011 e a criação da Comissão da Verdade são instrumentos aptos à investigação e ao esclarecimento das diversas obscuridades ocorridas durante o regime de exceção. Caberá, neste contexto, ao órgão a ser constituído, o efetivo exame e, especialmente, a explicação clara e objetiva do desaparecimento de centenas de pessoas e das diversas violações de direitos humanos praticados pelo Estado Brasileiro.

Vários Estados da América do Sul já esclareceram fatos praticados em regimes ditatoriais. Chegou a vez do Brasil. A questão, entretanto, enfrenta obstáculos. Os militares relutam, incansavelmente. Dizem que o passado não pode ser reconstruído e, mais, já foram anistiados. É verdade (em parte), pois o Supremo Tribunal Federal reconheceu a compatibilidade da Lei da Anistia (Lei 6.683/79) ao texto da Constituição, em decisão assim ementada:

LEI N. 6.683/79, A CHAMADA "LEI DE ANISTIA". ARTIGO 5º, CAPUT, III E XXXIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL; PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E PRINCÍPIO REPUBLICANO: NÃO VIOLAÇÃO. CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICAS. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E TIRANIA DOS VALORES. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E DISTINÇÃO ENTRE TEXTO NORMATIVO E NORMA JURÍDICA. [...] INTERPRETAÇÃO E REVISÃO DA LEI DA ANISTIA. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 26, DE 27 DE NOVEMBRO DE 1985, PODER CONSTITUINTE E "AUTO-ANISTIA". INTEGRAÇÃO DA ANISTIA DA LEI DE 1979 NA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. ACESSO A DOCUMENTOS HISTÓRICOS COMO FORMA DE EXERCÍCIO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VERDADE. [...] A chamada Lei da anistia veicula uma decisão política assumida naquele momento --- o momento da transição conciliada de 1979. A Lei n. 6.683. é uma lei-medida, não uma regra para o futuro, dotada de abstração e generalidade. Há de ser interpretada a partir da realidade no momento em que foi conquistada. [...] A Constituição não afeta leis-medida que a tenham precedido. 7. No Estado democrático de direito o Poder Judiciário não está autorizado a alterar, a dar outra redação, diversa da nele contemplada, a texto normativo. Pode, a partir dele, produzir distintas normas. Mas nem mesmo o Supremo Tribunal Federal está autorizado a rescrever leis de anistia. 8. Revisão de lei de anistia, se mudanças do tempo e da sociedade a impuserem, haverá --- ou não --- de ser feita pelo Poder Legislativo, não pelo Poder Judiciário. 9. A anistia da lei de 1979 foi reafirmada, no texto da EC 26/85, pelo Poder Constituinte da Constituição de 1988. [...] A uma por que foi mera lei-medida, dotada de efeitos concretos, já exauridos; é lei apenas em sentido formal, não o sendo, contudo, em sentido material. [...]

(ADPF 153 / DF, Relator Min. EROS GRAU, j. 29/04/2010, Tribunal Pleno, DJe-145 06-08-2010)

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Contudo, após a decisão do STF a CIDH entendeu diversamente, razão pela qual o Brasil tem o dever de cumprimento, também, da decisão da Corte Internacional, na perspectiva do Estado Constitucional Cooperativo (Peter Häberle), do Transconstitucionalismo (Marcelo Neves) ou do Estado Constitucional Multicêntrico. Ou ainda, porque a Lei da Anistia, a despeito da sua constitucionalidade, contraria as Convenções de Direitos Humanos ratificadas pelo Brasil (e, portanto, é uma Lei Inconvencional).

Espera-se, assim, que o Brasil esclareça os fatos de forma convincente e faça funcionar a Comissão da Verdade, cujos objetivos estão claramente definidos no artigo 3º da Lei 12.528/11:

Art. 3º São objetivos da Comissão Nacional da Verdade:

I - esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos mencionados no caput do art. 1o;

II - promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior;

III - identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos mencionadas no caput do art. 1o e suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade;

IV - encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos, nos termos do art. 1o da Lei no 9.140, de 4 de dezembro de 1995;

V - colaborar com todas as instâncias do poder público para apuração de violação de direitos humanos;

VI - recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e

VII - promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações.

É preciso, ainda, que os membros da Comissão – 7 (sete) pessoas, cuja indicação caberá à Presidenta da República, “dentre brasileiros, de reconhecida idoneidade e conduta ética, identificados com a defesa da democracia e da institucionalidade constitucional, bem como com o respeito aos direitos humanos”1, sejam compromissados com o trabalho e possuam condições técnicas de desempenhá-lo. Deve-se afastar o critério político na nomeação, prestigiando o aspecto meritocrático.

O prazo para funcionamento da Comissão Nacional da Verdade é de 2 (dois) anos, contados da sua instalação. Espera-se que logo se iniciem os trabalhos. A sociedade aguarda, em prol do fortalecimento do Estado Constitucional Democrático.

Em relação à punição criminal dos envolvidos na prática de crimes de homicídio – pois há centenas de pessoas desaparecidas há mais de trinta anos – existem dois posicionamentos.

O primeiro não admite a deflagração de ação penal, pois a Lei 9.140/95 reconheceu como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2/09/1961 a 15/08/1979. Assim, a questão já estaria solucionada pelo sistema jurídico.

O segundo entendimento é diverso e admite a persecução penal, já que a função da Lei 9.140/95 foi apenas de resguardar os interesses dos familiares, especialmente para fins sucessórios, permitindo a lavratura do assento de óbito e o recebimento de eventual indenização.

A questão, é verdade, encontra-se longe de um ponto final. Novamente, o STF deverá ser chamado a apresentar posição. A CIDH também.


Notas

1 Artigo 2º da Lei 12.528/11.

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Sobre o autor
Clenio Jair Schulze

Juiz Federal. Mestre em Ciência Jurídica.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHULZE, Clenio Jair. Anistia, Araguaia, CIDH e Comissão da Verdade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3214, 19 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21551. Acesso em: 4 nov. 2024.

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