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A recente decisão da Suprema Corte americana sobre a lei de seguro obrigatório de saúde do governo Obama

30/06/2012 às 13:23
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Deve-se tratar esse novo seguro de saúde obrigatório como uma forma de tributação e não como uma decorrência do poder do Congresso de regular comércio.

Resumo: Análise da decisão da Suprema Corte americana que declarou constitucional quase que a totalidade da “Lei de Proteção do Paciente e Cuidado Acessível” (Patient Protection and Affordable Care Act).


No dia 28 de junho de 2012, em uma decisão surpreendente, por uma maioria apertada (5 a 4), a Suprema Corte americana afirmou a constitucionalidade de praticamente toda a “Lei de Proteção do Paciente e Cuidado Acessível” (Patient Protection and Affordable Care Act).[1] O principal desiderato da lei é levar um seguro de saúde a um preço acessível à faixa menos favorecida da população americana. Estima-se que entre 30 e 40 milhões de americanos não tenham qualquer cobertura desse tipo.[2] Por outro lado, tratamentos médicos são notoriamente caros nos Estados Unidos.

Desde o governo Clinton, busca-se criar algum tipo de sistema de saúde capaz de abarcar toda a população, inclusive a mais carente. No caso da lei aprovada no governo Barack Obama, obriga-se a maior parte da população a contratar um seguro. Com isso, todos, inclusive os sadios, devem filiar-se a um sistema e contribuir para a sua manutenção. Com isso, pretende-se diminuir os custos e permitir que pessoas carentes estejam protegidas de eventuais contingências.

No Brasil, desde há muito, tem-se um sistema assim, pautado pela solidariedade e pela repartição dos riscos e dos custos inerentes a um sistema abrangente de seguridade social. O atual Sistema Único de Saúde (SUS) é uma prova disso. Na Alemanha, que foi pioneira nesse quesito, já na época de Bismarck, no final do século XIX, também há uma ampla rede social (soziales Netz), que inclui não apenas invejáveis sistemas de previdência e assistência social[3], caracterizadas pela quase universal obrigatoriedade da contribuição e da divisão dos encargos, como, igualmente, um sistema de saúde fundado nessas mesmas bases. Fala-se, comumente, naquele país, que essa rede social (soziales Netz) cuida de todos, literalmente, desde o berço até o caixão (von der Wiege bis zur Bahre), a saber, desde o nascimento até as despesas funerais, se assim necessário for.[4]

Embora de modo um pouco distinto, também em países como o Canadá e o Reino Unido, há sistemas de saúde universais e gratuitos.

O Chief Justice Roberts, em uma guinada pouco previsível, juntou-se à parte liberal e redigiu a opinião da Corte (opinion of the Court). Vale lembrar que Roberts foi indicado, em 2005, por George W. Bush à presidência.

Durante meses, especulou-se sobre o eventual resultado do julgamento. Nas arguições orais, o Solicitor General, cargo que, guardadas as devidas proporções, é análogo ao de Advogado Geral da União, no Brasil, foi duramente questionado pelos membros mais conservadores do Tribunal. Ao defender a lei do governo Obama, ele teve dificuldades de apresentar argumentos plausíveis e convincentes.

O próprio Roberts chegou a dizer, naquela ocasião, que, se o governo federal americano podia obrigar os cidadãos a adquirir um seguro de saúde obrigatório, então ele poderia forçá-los a comprar qualquer coisa. Ele questionou, por exemplo, se se poderia aceitar que o governo federal obrigasse todos os americanos a comprar celulares, sob o pretexto de que isso aumentaria a segurança dos aparelhos. Para ele, seria difícil conciliar a lei e o direito à propriedade, constitucionalmente garantido pela 5ª emenda da Constituição americana, que faz parte do Bill of Rights.[5]

Com efeito, deu-se como provável a filiação do Chief Justice à parte da Corte que demonstrava entender ser a lei inconstitucional. Contudo, Roberts surpreendeu ao adotar outro posicionamento.

Segundo ele, embora a constitucionalidade da lei não possa ser defendida com base na cláusula de comércio (commerce clause), ela pode ser derivada do poder do Congresso para tributar. A commerce clause, prevista no art. I, seção 8, cláusula 3, da Constituição americana, prescreve que  cabe ao Congresso legislar sobre comércio exterior, interestadual e aquele realizado com tribos indígenas.

Impõe-se observar, dessa forma, que a cláusula é um dos poderes enumerados do governo federal, os quais são numeri clausi. Como é sabido, no federalismo americano, o governo federal possui apenas os poderes enumerados constitucionalmente, de modo a reservar aos estados, residualmente, todas as demais atribuições e competências. Admitem-se, outrossim, por força da jurisprudência, alguns poderes implícitos (implied powers) ao governo federal, desde que corolários daqueles previamente enumerados. Dito de outra maneira: desde que necessários e fundamentais para a consecução efetiva dos fins explicitamente prescritos, é lícito ao governo federal americano exercer alguns outros poderes não expressamente previstos na Constituição. Para Roberts, não se afigura plausível defender a legitimidade da lei com base na commerce clause, já que a lei nada tem que ver com o poder do Congresso para regular o comércio interestadual. Segundo ele, a cláusula apenas permite ao Congresso regular uma forma de comércio interestadual já existente ou algo que interfira sobre um tipo de comércio que já exista.

Daí concluir-se que o Congresso não pode, ele próprio, criar um mercado, completamente novo e previamente inexistente, de seguros de saúde obrigatórios, sob a alegação de regular algo que ele mesmo fez surgir.[6]

Entretanto, é possível enxergar o seguro obrigatório e as respectivas penalidades como tributos. Roberts deixou claro que a lei, embora não trate da filiação ao seguro obrigatório como uma exação ou tributo, institui, de facto, non de iure, uma espécie tributária. Logo, deve-se tratar esse novo seguro de saúde obrigatório como uma forma de tributação e não como uma decorrência do poder de regular comércio interestadual. Cumpre esclarecer que o trecho mais controvertido da lei, o famoso individual mandate, que é, precisamente, a parte que faz com que todos devam contratar o seguro obrigatório, também foi tido como constitucional. Disse-se, por exemplo, que “(…) the mandate may be upheld as within Congress’s power to ‘lay and collect Taxes.’”[7]

O Chief Justice também citou trecho da decisão Hooper v. California, 155 U. S. 648, 657, na qual se lê que “(…) every reasonable construction must be resorted to, in order to save a statute from unconstitutionality”. A decisão limitou-se a declarar a inconstitucionalidade de alguns poucos dispositivos concernentes à distribuição, entre os estados americanos, dos onera de custeio do sistema, bem como a declarar inconstitucional a expansão compulsória do Medicaid, o programa conjunto entre governos federal e estaduais que oferecerá a maior parte dos serviços de saúde para pessoas de baixa renda. Sete Justices concordaram que o Congresso exorbitou sua competência ao determinar, na lei, que os estados deveriam participar da expansão do Medicaid, sob pena de perder outras transferências orçamentárias repassadas pelo governo federal.

Ad summam, pode-se dizer que a decisão possui pelo menos uma marcante reverberação política e outra jurídica. Politicamente, ela é uma vitória para o governo Obama. Dias antes da decisão sob apreço, a Casa Branca comemorou a decisão tomada em Arizona v. United States, 567 U.S. ___ (2012), quando se decidiu que o estado do Arizona não poderia criminalizar a entrada ilegal de imigrantes em seu território. Segundo a Corte, esse poder caberia apenas, se houver decisão legislativa nesse sentido, ao governo federal. O governo Obama litigou de maneira insistente a fim de ver a lei do Arizona declarada inconstitucional. Presumidamente, para agradar ao eleitorado latino, ante a proximidade das eleições presidenciais de 2012.

Da mesma forma, a Casa Branca empenhou-se sobremaneira por obter uma decisão favorável ao Patient Protection and Affordable Care Act. Dessarte, trata-se de mais uma batalha ganha pela administração Obama.

Juridicamente, é possível concluir que a decisão representa um importante marco, isto é, um divisor de águas (landmark decision), com respeito ao poder do Estado de implementar um programa abrangente e obrigatório de saúde. Por um lado, efetivam-se direitos sociais pertinentes à saúde, resguardando a população financeiramente desprovida. Nesse contexto, afirma-se o princípio da solidariedade e da distribuição equânime e coletiva dos riscos inerentes a um sistema compartilhado de saúde.


Notas

[1] National Federation of Independent Business v. Sebelius, 567 U.S. ___ (2012).

[2] MADDOW, Rachel. Supreme Court upholds Obama health care law seeking to cover 30 million uninsured. Washington Post, Washington, D.C., 28 jun. 12.

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[3] Na Alemanha, por exemplo, o equivalente à licença maternidade chama-se “licença de criação” (Erziehungsurlaub). Tanto a mãe, como o pai, podem obtê-la. Ela dura até 3 anos, podendo a mãe, por exemplo, voltar a trabalhar antes desse prazo, se quiser. Também é possível que pai e mãe revezem, de modo que o pai permaneça, por exemplo, um ano afastado e a mãe, posteriormente, dois anos. Várias combinações são possíveis (MUCKEL, Stefan; OGOREK, Markus. Sozialrecht. 4.Auf. München: C.H. Beck, 2011. p. 489). Já o “auxílio desemprego” é devido enquanto o segurado estiver desempregado. Com as novas reformas implementadas pelo programa Hartz-IV, ganha-se o “auxílio desemprego I” durante um prazo e, posteriormente, se se continua sem emprego, passa-se a receber o “auxílio desemprego II”, de valor menor. Em parte, a ideia é incentivar a busca por um novo posto de trabalho e facilitar o custeio do sistema. Enquanto se continua, involuntariamente, desempregado, faz-se jus ao seguro desemprego (WALTERMANN, Raimund. Sozialrecht. 9.Auf. München: C.F. Müller, 2011. p. 231). Reconhece-se, com isso, que um mínimo material é indispensável a todo ser humano, para a mantença de uma vida minimamente digna (cf. a decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão, Bundesverfassungsgericht, sobre o Hartz IV: BVerfG, 1 BvL 1/09).

[4] cf. PATTAR, Andreas Kurt. “Grundsicherung für Arbeitssuchende.” In: KLINGER, Roland; KUNKEL, Peter-Christian; PATTAR, Andreas Kurt; PETERS, Ri’in Karen. Existenzsicherungsrecht: SGB XII mit SGB II und AsylbLG. 3.Auf. Baden-Baden: Nomos, 2012. pp. 144ss; PETERS, Ri’in Karen. “Hilfe zum Lebensunterhalt.” In: KLINGER, Roland; KUNKEL, Peter-Christian; PATTAR, Andreas Kurt; PETERS, Ri’in Karen. Existenzsicherungsrecht: SGB XII mit SGB II und AsylbLG. 3.Auf. Baden-Baden: Nomos, 2012. p. 292

[5] cf. as transcrições e o áudio das arguições orais (oral arguments). Disponível em: <http://www.supremecourt.gov/oral_arguments/argument_audio_detail.aspx?argument=11-393> Acesso em 28 jun. 12.

[6] Sobre a jurisprudência da Corte no que tange à commerce clause, cf., dentre outras, United States v. Wrightwood Dairy Co., 315 U.S. 110 (1942); United States v. Darby, 312 U.S. 100 (1941); Wickard v. Filburn, 317 U.S. 111 (1942); Heart of Atlanta Motel v. United States, 379 U.S. 241 (1964). Mais recentemente, durante período Rehnquist, cf. United States v. Alfonso Lopez, Jr., 514 U.S. 549 (1995) e United States v. Morrison, 529 U.S. 598 (2000).

[7] National Federation of Independent Business v. Sebelius, 567 U.S. ___ (2012).

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Sobre o autor
João Costa Neto

Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) (2012), sob a orientação do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, do Supremo Tribunal Federal. Mestrando em Direito Romano pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco/Universidade de São Paulo (USP) (2012). Bacharel (2010) e Licenciado (2011) em Filosofia pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB) (2011). Foi, durante um ano, aluno especial do Mestrado em Filosofia da Universidade de Brasília (UnB). Student Member da Society for the Promotion of Roman Studies (Fundada em 1910) e da Society for the Promotion of Hellenic Studies (Fundada em 1879). É advogado em Brasília.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA NETO, João. A recente decisão da Suprema Corte americana sobre a lei de seguro obrigatório de saúde do governo Obama. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3286, 30 jun. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22133. Acesso em: 21 nov. 2024.

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