4- Os argumentos em defesa da solução judicial de controvérsias cuja natureza é política
4.1- Definindo a ideia de democracia
Não obstante seja tentador apontar que a atuação de um órgão técnico como controlador e fiscalizador do Parlamento e do Executivo seja uma ofensa à soberania do povo, é imperiosa uma pormenorização do conceito de democracia e, por conseguinte, do conteúdo possível e desejável da soberania popular em nossos tempos. Sob o risco de se afirmar desnecessária tautologia, assenta-se que não é possível conceber democracias sem condições de democracia.
Ora, se assim é, deve-se pontuar que o governo do demos não pode significar o governo de uma vontade única de toda uma coletividade jurídica. É cediço que, em sociedades plurais, complexas, estratificadas e diversificadas como as de nossos tempos, reduzir a vontade do povo a um só enunciado é uma impossibilidade fática e lógica que pode ocultar, freqüentemente, a autoritária e nada democrática opinião do governante. Assim, antes de tudo se percebe que os desígnios do Executivo e do Legislativo não são ou devem ser, sempre, correspondentes ao exato desejo de todos aqueles que compõem o povo. A isto se chamaria totalitarismo, conceito sabidamente alheio ao ideário democrático.
Do mesmo modo, não é possível conceber a democracia, como parecem sugerir as objeções apontadas na seção anterior, como o governo ilimitado das maiorias. Como aponta SARTORI:
À primeira vista pode parecer que a solução de traduzir “povo” como o direito de uma maioria ao controle absoluto representa uma solução óbvia. Mas não é assim. Estabelecer o direito absoluto da maioria de impor sua vontade sobre a minoria, ou minorias, equivale a estabelecer um controle funcional que funciona, a longo prazo, contra o próprio princípio que celebra. Se o primeiro vencedor de uma disputa democrática adquire um poder ilimitado (absoluto), então o primeiro vencedor pode estabelecer-se com um vencedor permanente. (SARTORI, 1994:45)
Tal constatação logra demonstrar os equívocos referentes à concepção apresentada no tópico 3.1 desta exposição. Ora, algum controle ou limite sobre os interesses e preferências das maiorias é não apenas compatível, mas indispensável à democracia e à soberania popular. Daí resulta o mérito da argumentação tecida por KELSEN, segundo a qual o legislativo, cuja composição é colegiada, deve ser o titular precípuo da incumbência de controlar e exigir respostas dos demais poderes. Também esta lógica, entretanto, apresenta falhas, uma vez que, recorrentemente, as decisões do Parlamento se submetem ao critério da maioria, além do fato de que, não raramente, grupos e interesses sociais não encontram qualquer representação congressual justamente em face de seu caráter intensamente minoritário. É dizer: tanto na composição de seus quadros, como em seus processos decisórios internos, o critério da maioria ainda é o decisivo nos parlamentos, de maneira que aos setores minoritários resta, apenas, o Judiciário, cujas decisões devem se orientar pelo critério da qualidade jurídico-normativa dos argumentos, para além do número de cidadãos que lhes esposam.
Os elementos acima expostos demonstram que, se é impreciso falar em democracia sem algum controle das maiorias pelas minorias, não é possível, por decorrência lógica, prescindir-se de algum controle judicial dos atos do Legislativo e do Executivo. Uma democracia que não preserve os direitos das minorias e que não permita às pessoas humanas o exercício de suas liberdades fundamentais se torna um regime auto-contraditório, porquanto incorre contra o respeito igual devido a cada cidadão e contra o pluralismo de ideias que o fundamenta, legitima e empresta sentido.
Quanto à co-originalidade entre os direitos fundamentais (cujo zelo é tarefa inarredável do Judiciário) e a soberania popular, a obra de Jürgen Habermas muito tem a esclarecer, revelando que, inobstante paradoxais, tais princípios não se contradizem, mas pressupõem-se reciprocamente (cf. HABERMAS, 2003).
Somos uma comunidade de indivíduos impregnados de ímpar dignidade e infindável valor em si.[7] Assim, para que possamos interagir no espaço público e intercambiarmos razões e argumentos, precisamos, primeiramente, nos reconhecermos como seres de autonomia e razão. Tal reconhecimento, juridicamente, se expressa segundo a linguagem dos direitos, ou seja, consoante garantias e deveres estabelecidos com vistas à atribuição do máximo de autonomia e liberdade para cada ser racional e autônomo de que se constitui a sociedade. A legitimação do poder, assim, diz respeito ao reconhecimento e atribuição de direitos aos indivíduos, não apenas como condições de possibilidade de que atuem publicamente, mas como reconhecimento do valor de cada pessoa racional (cf. HABERMAS, 2003).
De outro modo, como somos pessoas racionais e autônomas, não podemos nos submeter a leis e decisões de cujo processo implementador não somos parte, diretamente ou por meio de representantes. Assim, a democracia, assim entendida como corolário da soberania popular, é condição indispensável da validade de normas sociais, uma vez que não seria razoável o estabelecimento de ditames que não conte com seus livres e iguais destinatários como agentes de sua elaboração.
Antes de opostas, destarte, democracia e soberania popular se pressupõem mutuamente, na exata medida em que autonomia pública e autonomia privada se complementam. Ora, só existo como sujeito (autonomia privada), quando reconhecido pelo outro e por ele auxiliado, ao passo que só atuo na esfera pública quando reconhecido e respeitado na condição de sujeito. Desse modo, o limite das decisões democráticas seriam os direitos fundamentais (objetos por excelência da jurisdição constitucional), pois não é sensato supor que processos decisórios incorram contra sua própria condição de possibilidade (cf. HABERMAS, 2003).
Assim, para se retomar os exemplos formulados no início deste trabalho, tem-se que, em respeito ao princípio democrático, deve haver um órgão que assegure a proteção das condições de democracia (direitos fundamentais em perspectiva procedimentalista), de maneira a impedir, por exemplo, que a maioria no Parlamento decida expulsar, apenas com lastro em sua vantagem numérica, representantes de posições minoritárias. Portanto, a cassação de um parlamentar só pode se dar se respaldada em critérios diferentes do desejo da maioria da população ou de seus representantes. O controle do respeito aos direitos fundamentais em tais procedimentos está, em nosso País, a cargo do Judiciário.
No mesmo diapasão, a observância aos requisitos de relevância e urgência, pelo Executivo, quando da expedição do excepcional instrumento das medidas provisórias, deve ser controlada pelo Judiciário, justamente para que se preserve o princípio democrático, a afetar ao Legislativo, em detrimento do Judiciário, a produção de normas jurídicas.
Para além da mútua pressuposição entre direitos humanos e democracia, deve-se considerar, em favor do amplo exercício de accountability horizontal do Judiciário em relação ao Executivo e ao Legislativo, a ideia de que a judicialização da política não implica, necessariamente, uma individualização das questões públicas, ou uma privatização da política, como propôs Boaventura de Sousa Santos. A seguir, aborda-se esse ponto.
4.2– A Judicialização da Política: outro conceito, outras conclusões
O direito brasileiro conta, desde 1988, com instrumentos processuais de promoção e garantia dos direitos fundamentais consignados na Constituição da República, cujo potencial em termos de utilização pela sociedade permitem falar em um fenômeno de judicialização da política. Transcendendo a concepção de que um processo judicial se presta apenas a garantir uma pretensão individual de alguém, normalmente de natureza contratual, o Estado brasileiro contempla a possibilidade de proposição de ações orientadas para a garantia de direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos. Assim é que, diferentemente do que ocorre no direito estadunidense, por exemplo, é possível que uma ONG proponha uma ação referente a uma questão ambiental (direito difuso) sem que demonstre algum dano moral ou patrimonial individualmente sofrido por seus associados.
Vê-se que o conceito de judicialização da política aqui apresentado destoa plenamente da ideia de que tal expressão dá conta de uma precarização do espaço político, o qual restaria colonizado na lógica individualista e privatista tradicionalmente associada aos tribunais.
Com efeito, trata-se do oposto. É o Poder Judiciário que se democratiza e se abre para uma sociedade repleta de novas demandas, de modo que se desfaz de seu perfil privatista para conceber sujeitos processuais coletivos. Como afirma CITTADINO, “o protagonismo recente dos tribunais constitucionais e cortes supremas... inaugura um tipo inédito de espaço público, desvinculado das clássicas instituições político-representativas” (CITTADINO, 2002:17).
Um Judiciário aberto à sociedade civil organizada; limitado por normas jurídicas constitucionais promulgadas em respeito ao princípio da soberania popular; e que só age mediante provocação e segundo procedimentos cuja condição de validade principal é a contraditoriedade; não pode ser entendido como obstáculo à democracia, mas como seu componente indispensável. Tem-se, então, que judicialização da política não implica uma politização da justiça, como queria Boaventura de Sousa Santos e, tampouco, sugere algo como um governo de juízes. Não há dúvidas, todavia, de que a prestação jurisdicional não é uma função ilimitada do Poder Público, de modo que mesmo a mais veemente defesa da judicialização da política encerra, em seus pressupostos jurídico-políticos, a imposição de limites ao controle jurisdicional dos atos do Executivo e do Legislativo. Adiante, abordam-se tais limites.
4.3- Limites da accountability horizontal exercida pelo Poder Judiciário
Admitindo-se o controle jurisdicional dos atos do Parlamento e da Administração Pública como compatível com a democracia, resta definir com maior clareza os limites de tal mecanismo.
Primeiramente, resta claro que ao Judiciário não é dado atuar contrariamente ou além dos limites estabelecidos pelas normas jurídicas que os cidadãos, diretamente ou por intermédio de representantes eleitos, se estipulam. Se tais normas, nos países de tradição romano-germânica, ostentam, na contemporaneidade, princípios cujo grau de indeterminação é exacerbado, tal não implica a arbitrária possibilidade de que qualquer decisão seja adotada. Daí decorre uma crucial limitação do accountability horizontal praticado pelos juízes: as decisões proferidas em processos podem ter conteúdos ou conseqüências políticas, podem incorrer contra os interesses das maiorias e podem desagradar ou sancionar representantes eleitos; mas, sempre, devem estar devidamente justificadas e fundamentadas em conformidade com normas jurídicas positivas.
A necessidade de justificação amparada na normas que os cidadãos se colocam impede qualquer possibilidade de arbítrio ou tecnocracia de origem judicial. Ademais, é sempre válido ressaltar que princípios jurídicos indeterminados não são indetermináveis, de maneira que sempre haverá um limite, posto pelo povo, além do qual o magistrado não pode ir. Este limite é a norma jurídica, tal como interpretada e aplicada após processos cujo termo são decisões devidamente justificadas.[8]
Finalmente, ultrapassando-se as ilusões fundacionistas de que há fundamentos eternos e últimos para decisões jurídicas e políticas, de modo que a simples justificação (discursiva, argumentativa) de decisões judiciais em face da norma jurídica não seria garantia da verdade (correspondência inequívoca) da relação entre fato e norma estabelecida em um acórdão ou sentença, anui-se integralmente com a seguinte formulação pragmatista de RORTY: “penso que o tópico verdade não se pode tornar relevante para a política democrática, e que os filósofos dedicados a essa política deveriam prender-se ao tópico 'justificação'” (RORTY, 2005:107). Em suma: diante de conceitos jurídicos indeterminados, os tribunais sempre buscarão, em processos definidos pelo contraditório e pela suficiente exposição jurídico-argumentativa de ambas as partes, justificar ao máxima suas decisões, de tal modo que apresentarão o melhor entendimento em referência ao direito positivo promulgado pelos representantes do povo eleitos democraticamente. Tal entendimento não precisa ser eterno e absoluto (i.e., verdade), mas deve ser o mais adequado e fundamentado possível (i.e., justificação).
5- Conclusões parciais
O estudo da extensão da competência do Poder Judiciário para controlar a validade jurídica de atos pretensamente políticos advindos do Executivo e Legislativo é de extrema relevância e complexidade, além de auxiliar na compreensão de inúmeras controvérsias ora em pauta na agenda jurídica nacional. Trata-se de problema cujo desenlace enseja mais detida análise interdisciplinar, de modo a se contemplarem as variáveis axiológicas, normativas e fáticas concernentes à questão. Destarte, este sucinto texto se limitou a levantar o problema e apresentar as seguintes conclusões provisórias:
a) A tripartição de poderes implica, nos Estados Constitucionais Democráticos, mais do que a divisão das funções do Estado, a possibilidade de controles recíprocos (freios e contrapesos) entre Executivo, Legislativo e Judiciário;
b) A democracia demanda, sob pena de se inviabilizar, proteção e garantia de direitos e de cidadania às minorias, mesmo aquelas com ínfima ou nenhuma representação eleita. Tal tarefa, nos Estados Constitucionais Democráticos, recai precipuamente sobre o Poder Judiciário;
c) Para que a vontade popular prevaleça e a democracia se realize, determinadas condições (distributivas, ambientais, políticas, culturais e cognitivas) devem ser atendidas. A garantia de tais condições, definidas como direitos fundamentais, depende, em larga medida, do Poder Judiciário;
d) O paradigma do Estado Democrático de Direito contempla direitos coletivos e difusos e prevê, portanto, processos judiciais com maior apelo coletivo e político, de modo que se pode falar em um novo ativismo, um novo espaço público e novas práticas políticas que justificam o diagnóstico de um incremento democrático chamado judicialização da política, repleto de riscos, tensões e possibilidades;
e) O Poder Judiciário pode adotar decisões de cunho político ou que afetem o Executivo e o Legislativo. O limite, entretanto, é a justificação das decisões em consonância com as normas jurídicas elaboradas pelo povo ou seus representantes. A atuação do Judiciário, portanto, tem sua origem e esgotamento na vontade popular;
f) A indeterminação de conceitos jurídicos não implica arbítrio ou autoritarismo judiciais, uma vez que as sentenças, acórdãos e despachos devem ser justificados, o que, em uma perspectiva pós-fundacionista, é tão suficiente como o que em outros tempos se entendia como a certeza decorrente da absoluta correspondência entre fato e hipótese de incidência normativa.