Resumo: Constata-se, rotineiramente, através da imprensa que os tribunais superiores, especialmente o Supremo Tribunal Federal [STF], vêm decidindo – na busca por suprir a lacuna legislativa – fatos da vida que há muito já deveriam estar regrados em nosso ordenamento infraconstitucional. Situação que fundada, nas teorias clássicas norteadoras dos Estados modernos, em tese, não competiria ao Poder Judiciário. Assim, a busca pelo entendimento sobre que motivos têm levado à inércia legislativa e sobre qual o grau de interferência entre os poderes que é tolerado constitucionalmente, torna-se válida. Para tal, far-se-á uma abordagem sobre as teorias clássicas quanto à divisão de poderes, sobretudo, a de Montesquieu sendo analisada em contraponto à realidade nacional e às doutrinas modernas, gerando uma reflexão sobre as questões levantadas, quanto ao conflito de competência entre tais Poderes.
Palavras-chave: Divisão de poderes; Montesquieu; Prática legislativa e STF.
Sumário: Introdução; 1. Aspectos históricos da separação de poderes: Vertentes clássicas e princípios constitucionais contemporâneos; 2. A realidade brasileira: Uma análise da corporificação de uma mescla de poderes; 3. Questões cruciais da vida nacional: Sua resolução versus Conflitos de competências; Conclusão; Referências; Anexos.
“O povo é como o boi manso, Quando novilho atropela, Bufa, pula, se arrepela, Escarapelea e se zanga; Depois... vem lamber a canga E torna-se amigo dela.”[1]
Introdução:
Convivemos quotidianamente com a notícia de que os integrantes do legislativo nacional agem alheios aos propósitos públicos, atuando – supostamente –em não raras vezes, em benefício próprio. Nesse viés, frente ao apelo social e midiático, diversas e notórias são as decisões tomadas pelos tribunais superiores visando suprir a lacuna legislativa deixada por estes agentes públicos inertes.
Em conseqüência disto, algumas perguntas surgem e, a estas, se buscará responder ao longo deste trabalho, pois, a saber, consistem no seguinte: quais as competências, constitucionalmente, previstas e garantidas para cada um dos três poderes? Da mesma forma, qual o grau de liberdade que cada um destes órgãos têm para flexibilizar sua jurisdição e, se pode-se caracterizar como desvio de função esta prática? Até que ponto é conveniente o esforço para que o judiciário não se substitua ao legislativo?
Para tal, a busca pelos motivos que têm levado o poder Legislativo a se manter inerte ou que proporcionam a morosidade no desempenho das atividades que lhes competem, ou deveriam competir é incentivada. Assim como, o entendimento dos motivos que fazem o poder Judiciário tomar a sua vez na realização destas.
Neste anseio, o estudo proposto a ser apresentado por este trabalho versará sobre a freqüente prática legislativa desempenhada pelos tribunais superiores da República Federativa do Brasil. Para tal, o enfoque dar-se-á no exame das competências intrínsecas a cada um dos poderes, a fim de que se possa analisar a legalidade deste exercício de forma regular e continuada. Com este objetivo, será buscada como metodologia as revisões bibliográfica e legislativa, ambas com ênfase na teoria clássica desenvolvida por Montesquieu, contrapostas às doutrinas atuais. Deste modo, se traz a sugestão de um estudo histórico da constituição dos poderes investidos ao legislativo e ao judiciário delimitando suas competências e comparando-as com as situações de fato em nossa sociedade atual.
Para tal, primeiramente far-se-á um apanhado da bibliografia sobre o assunto, em seqüência se estruturará o trabalho procurando-se analisar comparativamente a composição constitucional vigente, as teorias originárias e a doutrina atual. Assim, a partir desta análise doutrinária, embora superficialmente, pretende-se verificar até que ponto é correta, ou melhor, o quão justa ou garantista pode ser o desempenho de funções atípicas pelos Tribunais Superiores, ampliando ou garantindo os direitos do povo. Por conseguinte, a abordagem será dedutiva, eis que, o que se busca é a organização e a especificação das teorias e conhecimentos correntes no meio jurídico e acadêmico, partindo de uma situação ampla, geral e genérica para uma particular.
O empenho neste estudo é validado em virtude das atuais e constantes decisões que os tribunais superiores, em especial o Supremo Tribunal Federal [STF], vêm tomando em conseqüência da inércia legislativa destacada. Decisões cujos teores têm influenciado diretamente as relações humanas de nossa sociedade contemporânea.
A freqüência de tais eventos é tal que decisões sobre alguns fatos da vida que há muito deveriam estar regrados por nossa legislação infraconstitucional ainda carecem de normatização e acabam tendo seus regramentos ditados pelas decisões proferidas por este tribunal. Nesse sentido, pode-se destacar o reconhecimento da união homoafetiva; a autorização para o aborto de feto anencéfalo; o reconhecimento da validade do sistema de cotas para ingresso em universidades públicas; a determinação da validade da lei de ficha limpa e regulamentação da fidelidade partidária, eis que são decisões que marcam a atualidade.
Portanto, a análise da evolução legislativa e dos preceitos constitucionais pátrios, assim como, as teorias nas quais são norteados, em especial, quanto à tripartição dos poderes são alguns dos tópicos que serão abordados, em paralelo a verificação quanto à prática legislativa pelo judiciário, de forma geral e em confronte ao Judicial Restraint, a fim de que se tenha, ao final, o entendimento do posicionamento que, constitucionalmente, é correto e, se diverso do atualmente adotado, seja o seu comparativo apresentado.
1. Aspectos históricos da separação de poderes: Vertentes clássicas e princípios constitucionais contemporâneos.
Não se há verificado forma mais eficiente para o início deste estudo do que uma abordagem sobre a teoria da tripartição dos poderes elaborada por Montesquieu[5], apresentada em sua obra De l’Esprit des lois[6], e que, em cujo conteúdo apresentou conceitos e teorias sobre as formas de governo – da época, assim como, as formas para o exercício da autoridade política. Tais teorias tornaram-se marcos da ciência política moderna e, inclusive, influenciaram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão[7], consoante se verifica nas palavras de José Soder transcritas abaixo:
A clássica divisão dos poderes tornou-se um dogma das democracias [...]. Ainda hoje, em oposição às democracias populares que se inspiram em Rousseau, a divisão de poderes, na forma preconizada por Montesquieu, abrandada em sua rigidez de separação completa, constitui um dos pilares constitucionais das democracias baseadas na liberdade do individuo.[8]
A referida obra de Montesquieu, principia trazendo a distinção entre leis humanas e as leis naturais, afirmando que tanto as primeiras quanto as segundas, não são frutos do mero acaso, "elas são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas”[9], isto pois, são as normas derivadas dos costumes sociais que devem regular as relações entre os homens e entre homens e Estado; e não o contrário.
Tais leis, normas ou regramentos básicos – como postula Montesquieu – tratam das relações necessárias à sociedade que, antes da consolidação de sua organização, verificávamos apenas a existência das denominadas leis naturais (coleta e garantia de alimentos, posse e propriedade, e o sentimento para viver em paz dentro da sociedade). Estas leis – naturais – são, indubitavelmente, decorrentes dos aspectos humanos propriamente ditos, e vêm se materializando ao longo do tempo, conforme se tem firmado na lição de Soder:
Direitos do homem são os direitos subjetivos inerentes à pessoa humana pelo fato de ela possuir racionalidade. Nascem com a pessoa humana e acompanham toda a trajetória da existência do homem. Por isso são chamados de direitos do homem, no singular genérico, e não direitos dos homens, ou direitos de certos grupos humanos. [...] Direitos do homem individuais são os direitos e liberdade clássicos, postulados pelas famosas declarações de direitos da América e de França. Abrangem a dignidade individual da pessoa, a liberdade, a segurança pessoal, o bem estar, a liberdade de expressão, de consciência e de religião, a igualdade de todos perante a lei, a liberdade de reunir-se e formar agremiações, a garantia da propriedade privada, o direito de participar, através do voto, nos negócios públicos e de ocupar cargos públicos, e o resto.[10]
Assim, se pode constatar que – nesse momento histórico, em que o sentimento predominante era o de medo, pois, como se presumia que todos os homens eram iguais, um temia ao outro e, em face de uma “quarta lei natural”[11] – os cidadãos vêm a unir-se, em virtude de um desejo e ou necessidade, formando, assim, os primeiros grupos sociais. Também, nesse viés temos o entendimento de que: algumas parcelas das liberdades individuais são despendidas em prol do bem comum.
Fatigados de só viver em meio a temores e de encontrar inimigos em toda parte, cansados de uma liberdade cuja incerteza de conservá-la tornava inútil, sacrificaram uma parte dela para usufruir do restante com mais segurança. A soma dessas partes de liberdade, assim sacrificadas ao bem geral, constituiu a soberania na nação; e aquele que foi encarregado pelas leis como depositário dessas liberdades e dos trabalhos da administração foi proclamado o soberano do povo.[12]
Em um segundo momento em que as sociedades já encontram-se constituídas e organizadas, em decorrência, principalmente, das disputas relacionadas aos conflitos sociais e conseqüentemente às guerras, os homens deixaram – ou entenderam deixar – de ser tão iguais. Deste modo, com o intuito de evitar os conflitos foram sendo formuladas e instituídas as leis civis, ou seja, o Direito das Gentes que é a relação entre os povos [primórdios do direito internacional], o Direito Político que versa sobre as relações entre o governante e os governados e o Direito Civil que, como até os dias de hoje, vem a regular as relações entre os próprios cidadãos.
Por isso, no intento de explicar ou, ao menos, entender as formações dos Estados, das leis e da mantença da ordem social, surgem as clássicas teorias contratualistas de Hobbes[13], Locke[14] e Rousseau[15] – cuja análise se inviabiliza neste espaço, diante dos objetivos deste artigo – eis que estes autores são, apenas, citados a fim de vincular o entendimento do tema em tela, uma vez que, o seu desenvolvimento requereria uma ampla abordagem, o que poderá vir a ser objeto de trabalho futuro.
A partir desse entendimento, tem-se que para garantir o sentimento de liberdade dos cidadãos é a legislação que tem de se harmonizar com o espírito do povo e suas tradições. Porém, há que se observar que liberdade não é sinônimo de excessos ou de caos, pois, a liberdade termina onde começa o abuso. E esta, não depende somente das leis, mas também da conduta dos governantes, de seus cidadãos, visto que, o espírito da nação deve desempenhar um papel preponderante no que se refere às suas leis.
Devemos ter bem claro o que é independência e o que é liberdade. A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; e, se um cidadão pudesse fazer o que proíbem, não teria mais liberdade, porque os outros teriam tal poder.[16]
Todavia, a tarefa de por a termo os fatos da vida, regrando-os para que a violência, a criminalidade e o abuso de poder sejam ao máximo evitados, é fundamental à vida em sociedade. A partir dessa consideração Montesquieu pôde desenvolver a teoria da divisão de poderes, tendo em vista que “é preciso que o poder limite o poder”[17], ou seja, é fundamental que o poder que legisla, não seja o mesmo que executa e, que por sua vez, não é o mesmo que fiscaliza a execução, sendo esta a concepção da teoria de freios e contrapesos.
Dotado de amplos poderes, “o próprio Estado, de promotor do bem comum e particular, transforma-se, não raro, em opressor, quando não em injusto agressor”[18], assim, para evitar tais abusos, os poderes legislativo, executivo e judiciário devem ser divididos entre pessoas [órgãos] diferentes para que não se torne a ver os exemplos da tirania e crueldades ocorridos em Roma, nos tempos de Tarquínio, quando: “[...] só dez homens tiveram todo o poder legislativo, todo o poder executivo e todo o poder de julgamento”[19].
Restando claro que tal concentração de poder em um único instituto, sem que haja a coibição ou a fiscalização por outro(s) com autonomia e poder semelhantes é diretamente prejudicial aos que são governados, ou melhor, subjugados, vez que seu algoz é também o seu juiz. Conforme se pode verificar por meio das palavras de Llamas, no texto abaixo:
Su fin, salvaguardar los derechos naturales (vida, libertad y propiedad) evitando que el poder político y el legislativo residan en las mismas manos. El objetivo es crear eficaces limitaciones a su ejercicio, pero también marcar con claridad la separación entre quien produce el Derecho y quien ejerce la función política[20] e [21]
A Carta Magna[22] da República Federativa do Brasil, proclamada em 1988, assim como a maior parte das constituições democráticas constituídas e promulgadas a partir do século XVIII, traz como cláusula pétrea, conforme ressalta Lenza, em seus arts. 2º e 60, §4º, III, esta separação de poderes, assim como, a indelegabilidade de atribuições intrínsecas a cada um dos poderes, pois, como afirma o jurista na transcrição que é apresentada abaixo:
Um órgão só poderá exercer atribuições de outro, ou de natureza típica de outro quando houver expressa previsão [...] e, diretamente quando houver delegação por parte do poder constituinte originário [...][23]
Neste mesmo viés é alicerçada a previsão constitucional e o entendimento jurídico estadunidense, no qual os magistrados devem – ao máximo – esforçar-se para não substituir o legislador, que é a figura eleita democraticamente para o exercício da representação popular, conforme a definição de Judicial Restraint abaixo apresentada:
Judicial restraint refers to the doctrine that judges' own philosophies or policy preferences should not be injected into the law and should whenever reasonably possible construe the law so as to avoid second guessing the policy decisions made by other governmental institutions such as Congress, the President and state legislatures. This view is based on the concept that judges have no popular mandate to act as policy makers and should defer to the decisions of the elected ‘political’ branches of the Federal government and of the states in matters of policy making so long as these policymakers stay within the limits of their powers as defined by the US Constitution and the constitutions of the several states.[24]e [25]
Corroborando este entendimento, Mendes[26], no primeiro capítulo de sua obra traz como fundamentos de um Estado Democrático de Direito os seus princípios e, dentre estes, o da separação dos poderes. Para a análise deste princípio evoca os ensinamentos de Montesquieu, como já trabalhado, enfatizando que toda a organização social estaria perdida se o poder para legislar, julgar e executar estivesse concentrado em um único elemento.
Aborda, também, os termos da Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1789, que, em cujas determinações de seu art. 16 – “Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição.”[27] – assegurara a legitimidade apenas aos Estados nos quais as constituições zelassem pela garantia dos direitos individuais e pela separação dos poderes estatais, princípio este que, no Brasil, é garantido no artigo 2º da Constituição Federal vigente, o que no entendimento de Mendes resta claro e, melhor exemplificado por sua palavras transcritas abaixo:
[...] no seu art. 2º, onde se declara que são Poderes da União – independentes e harmônicos – o legislativo, o executivo e o judiciário, é de tamanha importância que possui status de cláusula pétrea, imune, portanto, a emendas, reforma ou revisões que tentem aboli-lo da lei fundamental.[28]
Dallari ao desenvolver sobre esta temática traz conceitos elaborados pelos autores clássicos que contribuíram para sua formação, assim, como crê-se não poderia deixar de ser, cita Locke, Montesquieu e Maquiavel[29], sendo que a este último, atribui o louvor com que apreciava o regime de governo francês do século XVI, pois em tese, com a divisão de poderes, se daria maior segurança ao rei.
Reitera que para haver funcionalidade e independência na administração de um Estado faz-se necessário o sistema de freios e contrapesos derivado da tripartição dos poderes, contudo, para ele tal sistema embora funcional ao governo é destinado principalmente à garantir a liberdade individual, pois:
Como é óbvio, dando atribuições tão restritas ao estado Montesquieu não estaria preocupado em assegurar-lhe a eficiência, parecendo-lhe mais importante a separação tripartida dos poderes para garantia da liberdade individual.[30]
Ainda nessa temática podemos mencionar a composição da Constituição Federal estadunidense[31] que tem dedicado o seu primeiro artigo ao poder Legislativo, o segundo ao poder Executivo e o terceiro ao poder Judiciário e que restringe, absolutamente, a interferência recíproca e ou a transferência de poderes entre eles, mesmo que parcial ou temporária afastando a possibilidade de tirania pela administração concentrada, assim, corroborando os conceitos apresentados e demonstrando a sua aplicabilidade nos Estados atuais.
2. A realidade brasileira: Uma análise da corporificação de uma mescla de poderes.
Conforme apresentado, a Constituição Federal brasileira contempla a divisão de poderes estatais de acordo com a já consagrada teoria de Montesquieu, inclusive, dando a este princípio norteador o tratamento de cláusula pétrea, desta forma, as competências ou atribuições que são conferidas a cada um dos três poderes são: legislar e fiscalizar para o Legislativo; resolução dos conflitos com imparcialidade, ou seja, a de jurisdição, para a autoridade Judiciária e; a prática dos atos inerentes à administração pública, para o Executivo.
Contudo, notório é que os integrantes do legislativo brasileiro [Câmara e Senado], atuais e de mandatos recentes, eleitos democraticamente a fim de que prioritariamente legislem e fiscalizem[32], acabam – na busca por evidência midiática – optando pelo desenvolvimento de atividades que – em regra – não deveriam, quotidianamente, ser-lhes atribuídas como, por exemplo, CPIs, políticas (marketing) públicas, discussões de cunho salarial, campanhas, angariação de fundos, etc.
A reiterada prática destas atividades tem sido destacada pela mídia, tanto falada quanto escrita, como, por exemplo, na matéria de Adriana Nicacio publicada pela revista Istoé, na qual há a evidenciação de que o poder legislativo poderia estar ignorando alguns dos principais interesses da população.
Nos últimos meses, o congresso esteve praticamente paralisado. Envolvido pelas crises do executivo, limitou-se a emendar projetos remetidos pelo próprio governo, brigar pela liberação de verbas e, como tem sido praxe, não regulamentou sequer um dos projetos de interesse da população que tramitam na casa há muitos anos.[33]
No mesmo empenho, artistas de diversas especialidades vêm destacando a irresignação da sociedade através das mais variadas formas de expressão, conotando às condutas dos agentes do Judiciário, do Legislativo e do Executivo a reputação que não lhes cabe, ou deveria caber. A exemplo disto temos as várias charges [anexo], publicadas em sites especializados e nos jornais das principais capitais, que ridicularizam as condutas – principalmente – dos legisladores e ministros do tribunal em estudo.
Manifestações desta procedência, também, são freqüentemente verificadas em músicas, deste molde, temos as letras, transcritas abaixo, da banda de pop rock nacional Biquíni Cavadão e do cantor tradicionalista Mano Lima, que – literalmente – maldizem as quotidianas ações dos referidos agentes, representando, com isto, a real impressão que é apresentada e absorvida pela coletividade.
[...] Quem foi que disse que Deus é brasileiro, Que existe ordem e progresso, Enquanto a zona corre solta no congresso? Quem foi que disse que a justiça tarda mas não falha? Que se eu não for um bom menino, Deus vai castigar!
Os dias passam lentos; Aos meses seguem os aumentos.
Cada dia eu levo um tiro; Que sai pela culatra; Eu não sou ministro, eu não sou magnata; Eu sou do povo, eu sou um Zé Ninguém; Aqui embaixo, as leis são diferentes; Eu sou do povo, eu sou um Zé Ninguém [...] [34]
Eu não sei se tu sabia; Que tua gata já deu cria meu compadre Brasil Silva; Tem gato pra todo lado; A maioria tá aninhado nos palácio de Brasília; Tem pintado e tem palheiro ; Tem uns louco carboteiro que é um perigo se botar; São bandidos e ladrãozinhos; Como roubam teus gatinhos, como gostam de roubar. [...]
Tá bem lindo teu gatil; Viu meu compadre Brasil tua gata é tão bonita; Deus proteja os bobalhão; Pra trabalhar pela nação, pra sustentar os filhos da vida.[35]
Em conseqüência destas ações, em especial da inércia nas iniciativas do congresso nacional, pode ocorrer e, muitas vezes ocorre, um lapso na produção legislativa frente à evolução das relações sociais descritas no capítulo anterior, atualmente deveras volúveis face à globalização de informações. Este vacuu na legislação pátria faz com que os cidadãos, envoltos nestas novas relações ou situações de fato – através de seus procuradores – sejam compelidos a inovar, buscando alternativas juridicamente aptas a resolver suas demandas, o que acaba por proporcionar, cada vez mais, ao poder judiciário a tarefa de resolver os conflitos de temas carentes de regulamentação na legislação vigente ou nela controversos ou ultrapassados.
Sobre esta temática temos o sábio ensinamento de Rui Portanova, cuja transcrição se apresenta, no qual há a consolidação sobre o entendimento de que o direito varia em razão do tempo e espaço.
A lei não é um fim em si mesma. É mero critério de apreciação do direito, e sua interpretação muito varia no tempo e no espaço, tudo com a índole de um povo em determinada época. São setas indicadoras do caminho justo e não o caminho mesmo.[36]
Com isso, os legisladores vêm deixando de cumprir com a sua atribuição principal, qual seja: legislar; bem como, impondo ao Judiciário uma sobrecarga tal que, em parte, justifica a morosidade que lhe é atribuída, fazendo com que se forme, também, o entendimento, sob outro ponto de vista, de que “os parlamentares não querem se comprometer com uma posição” [37] deixando de realizar, assim, o que lhes é competência, tudo com o intuito de uma futura reeleição, conforme aponta a ex-ministra Ellen Gracie Northfleet.
Porém, conforme afirma Moura, alguns atributos sociais jamais poderão ser deixados à uma análise secundária sob o iminente risco de que ampliem, ainda mais, as desigualdades sociais, vindo assim a refletir seus efeitos em toda a coletividade, pois, “miséria, o desemprego e a violência, retratos tristes da desigualdade social, correspondem a desafios inadiáveis para os poderes públicos e a sociedade organizada.”[38]
Para suprir esta necessidade, impedindo que o regramento jurídico fique estagnado, outros institutos vêm a fim de suprir tal necessidade, ou seja, para garantir que o processo legislativo, ou melhor, que o direito e a justiça acompanhem a evolução da sociedade. Como por exemplo, quando o Tribunal – STF, cujas decisões são abordadas sucintamente neste trabalho, verificando a ausência de determinação legal, com suas decisões tem decidido e, por conseguinte, legislado e, com isso, vem suprindo as brechas proporcionadas pela inércia do poder originalmente competente, de acordo com o entendimento de Almeida transcrito abaixo:
A constituição brasileira é umas das que é pródiga em acalentar direitos sociais e considerá-los como direitos fundamentais. Particularmente no Brasil, o judiciário tem sido muito acionado para posicionar-se sobre o assunto e tem desempenhado, nos últimos anos e por alguns setores de seus órgãos jurisdicionais, um protagonismo inédito, que alicerçou pesadas críticas a essa atuação, especialmente sobre o prisma da separação dos poderes e do princípio democrático.[39]
Deste modo, é possível a verificação da materialização destas situações, nas quais eventos sociais acabam regulamentados por meio de decisões judiciais, quando:
Da analise de temas que envolvam os direitos de minorias, muitas vezes, discriminadas pelo preconceito inerente à sociedade, de forma geral, e por vezes institucionalizado através de grupos, ditos, conservadores. Como por exemplo, a união – análoga ao casamento – de pessoas do mesmo sexo, atualmente denominada união homoafetiva, conforme se pode verificar através do acórdão da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 4277[40], proferido pelo tribunal superior em estudo, por meio do qual, foi garantido aos cidadãos o direito de ver/ter estendidas todas as características e direitos inerentes à união estável aos casais compostos por indivíduos do mesmo gênero, em contraponto à legislação vigente [art. 1.723, caput, CC[41]]. Contudo:
[...] interpretar o art. 1.723 do CC/2002 conforme a constituição tem influência determinante na exegese, afinal o resultado alcançado pelos ministros não fora determinado e nem concebido pelo legislador, portanto, tornando-se evidente uma decisão nova e distinta da carta magna. Mais uma vez, o juiz constitucional brasileiro colocou as vestes do legislador.[42]Grifamos
Da mesma forma, quando do reconhecimento da validade das cotas nas universidades públicas para determinado grupo étnico através da decisão da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental [ADPF] 186[43] que vem contrária – inclusive – à própria determinação constitucional originária, prevista nos artigos 3º e 5º, CF[44]. O que, segundo preceitua Machado, é um grande risco, vez que “criar ou desmantelar normas constitucionais ou deliberar correções indevidas por meio de decisões judiciais são práticas tendenciosas e perigosas.”[45] Isto pois, “o tribunal tem a missão precípua de interprete da constituição e não formador de políticas públicas [...].”[46]
Também, quando se tem a necessidade da tomada de decisões que regulamentem ações que virão, ou poderão vir, a interferir em fatores que possam afetar uma reeleição, seja por alterar procedimentos eleitorais limitadores como no caso da verificação de validade da lei da ficha limpa e de fidelidade partidária[47] ou, pela concessão de um direito a determinada categoria como, por exemplo, no caso do aviso prévio proporcional, direito trabalhista que influencia a vida de diversos cidadãos/eleitores, situação para o qual, cabe frisar que as vésperas de que fosse tomada uma decisão pelo STF, a Câmara dos Deputados fez valer suas atribuições – sob pressão do judiciário – e aprovou, doze anos após a proposta inicial – o projeto de lei 3.941/1989[48].
Ou, no mesmo viés, quando em casos polêmicos cuja previsão legal é, ou está em vias de ser, obsoleta a exemplo da descriminalização ou da concessão de autorização para a realização do aborto de feto anencéfalo, cuja tipificação está presente numa legislação que data de 1940[49]. O que, conforme o julgamento da ADPF 54, concluído no ultimo dia 12 de abril, em cuja decisão o Plenário por maioria dos ministros considerou procedente o pedido ajuizado pela CNTS – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde foi declarada a inconstitucionalidade da interpretação, a partir da qual, a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria conduta tipificada no código Penal[50] em seus artigos 124, 126 e 128.
Desta feita e, a partir destas situações de fato, vislumbra-se que o poder judiciário vem, pouco a pouco, fazendo às vezes do Legislativo respaldando-se no objetivo de satisfazer os interesses da coletividade, o que resta bem definido no trecho extraído do artigo de Moura, transcrito abaixo:
O poder judiciário na sua função contra majoritária exerce o controle dos atos políticos restrito à proteção dos princípios e regras constitucionais em face do interesse da maioria, reconduzindo sempre que possível sua argumentação à razão prática de forma a garantir a legitimidade e a racionalidade de suas decisões.[51]
Pode-se, com isto, perceber que temas controversos cujas decisões podem desfavorecer alguma(s) categoria(s), bem como, aqueles que trazem novas concepções acabam por repelir a manifestação de vontades dos representantes do povo, a um que, estes se manifestam de forma a não desagradar nenhuma parcela, o que é natural do sentimento humano, conforme define Maquiavel:
Deve-se ter em conta que não existe nada mais difícil de tratar, de sucesso mais duvidoso, nem mais perigoso de lidar, do que se tornar promotor de novas instituições. Porque, então, o introdutor tem como inimigos a todos aqueles que se beneficiam com as instituições antigas e, como defensores sem entusiasmo a todos que tirariam partido das novas instituições. E a falta de ardor dos últimos se deve em parte ao medo dos seus adversário, porque estes têm a lei do seu lado, e em parte à incredulidade dos homens, que não acreditam verdadeiramente nas coisas novas até que a experiência as confirme.[52]
Assim, verificado as demandas sociais, a continência da produção/atualização legislativa e o empenho do Judiciário para suprir as exigências sociais, resta saber se tal atitude resulta mesmo em prol do bem comum, pois, ao que superficialmente se verifica: enquanto uns substituem os outros em suas atribuições o foco é perdido e quem resta lesado é o elo mais fraco desta cadeia, qual seja, a sociedade que, verificando inoperância ou a morosidade na atuação de seus representantes e, assim pode ter formado um desinteresse coletivo pela participação política, abrindo espaço para que os eventos contrários à ação democrática possam vir a ocorrer, incluso, pelas mãos dos agentes do tribunal em estudo.