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De Kant a Jobs: reflexões sobre a liberdade de contratar na pós-modernidade

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5 - Conclusão

O Estado tem a obrigação de propiciar um ambiente seguro para a realização da atividade econômica, mas, como corolário, tem o dever de fiscalizar e regular as práticas mercadológicas.

O contrato é o instrumento, antes jurídico do que econômico, que o Estado lançará mão para disciplinar a atividade do mercado, sendo a discussão trazida para a arena da argumentação jurídica, onde os preceitos econômicos serão analisados.

De qualquer modo, o consumismo provocou alterações sociais profundas, tornando-se parte da vida ou fonte de anseios de parcela considerável da população, estimulando a inovação tecnológica e a melhoria da qualidade de vida de centenas de milhões de pessoas.

Não obstante, o sucesso da sociedade capitalista de consumo tem um preço, levando em conta que as mutações cíclicas da constante corrida para acumulação de bens e poder tem consequências na política, no meio ambiente e na própria sociedade como um todo[24].

Talvez a liberdade no mercado seja para poucos, pois não é sempre que são cultivados consumidores com autonomia, virtude necessária para a existência de responsabilidade moral e, por consequência, alimentada a própria democracia, não perdendo de vista que volta e meia a propaganda trabalha para canalizar desejos e fidelizar clientes, circunscrevendo as alternativas para condicionar as escolhas.

Paradoxalmente, temos hoje um leque de opções muito maior do que no passado, que efetivamente facilitam a vida moderna. Todavia é discutível pensar que as escolhas fáceis, massivas e condicionadas auxiliam na formação do espírito crítico do cidadão. Como ensina SENNETT (2011. p 126), a simples ideia da democracia exige mediação e discussão face a face; requer antes deliberação do que embalagem bonita.

Talvez a igualdade no mercado também seja ilusória, com o condão de afastar dos olhos a segmentação social entre os que podem muito consumir e aqueles que apenas desejam lá chegar, bem como afastar do centro as hordas não mais tão periféricas de desempregados e desalojados, sejam do seu teto ou do próprio meio ambiente, vítimas do processo de consumo desenfreado.

Talvez a fraternidade no mercado muito se afaste do conceito de solidariedade social, porquanto se estaria a prezar mais o individualismo do que a outricidade; a esmola, como apaziguadora de uma culpa cada vez menor, do que a defesa dos direitos sociais; o combate ao clamado como inimigo, que impulsionado pelos desejos teima em violar o patrimônio daqueles que já se aproximam do inatingível patamar de consumo, do que a formação de jovens livres, pois autônomos por serem moralmente responsáveis.

A rigor, a ansiedade pode ser camuflada quando alcançamos o objeto do desejo, todavia este prazer efêmero será transmudado em uma maior ansiedade na busca do próximo objeto que nos será apresentado e para qual será deslocado o desejo, sentimento agravado pelo torpor causado pelo desejo de reviver o próprio prazer. Esta busca desenfreada do prazer acaba por tornar a pessoa um ser reativo, sem capacidade de vontade, afastando-o do exercício do dever kantiano que qualifica o individuo autônomo, aproximando-o do ser autômato, quando não violento em decorrência das frustrações de consumo que lhe serão apresentadas.

As possibilidades se concretizadas serão transmudadas em distorções de consequências jurídicas, não perdendo de vista que o Direito tem como base atávica as regras de convivência social e como fim a manutenção do próprio equilíbrio civilizatório.

O argumento jurídico, portanto, deverá prevalecer sobre o argumento econômico quando analisadas as questões jurídicas que permeiam as relações negociais realizadas no mercado. Por consequência, como não se deve dissociar o conteúdo ético do argumento jurídico, o contrato, como instrumento construído pelo homem para assegurar a pacificidade das trocas econômicas de bens, produtos e “experiências”, deve ser interpretado artesanalmente pela ótica dos deveres éticos decorrentes da boa-fé objetiva.

A forma com que o Judiciário atuará decorre da legitimidade socialmente alcançada pelo consentimento democrático, como ensina Owen Fiss (2004, p. 114), podendo o juiz cumprir o seu mister de aplicar e dar significado concreto aos valores públicos civilizatórios incorporados à Constituição ou sucumbir à solidão totalitária da sociedade de consumo de massas[25], limitando-se a garantir industrialmente a aplicação das regras formuladas  pelos grupos de influência que tem interesse em jogo no mercado.

Todavia, a Sociedade, ao decidir o caminho do seu Judiciário, não deve abrir mão do que chamamos de humanidade, pois, se somos cidadãos racionais e autônomos, a escolha é somente nossa.


6 – Referências bibliográficas

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MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil, volume V, tomo I.: do direito das obrigações, do adimplemento e da extinção das obrigações; coordenador: Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro:Forense, 2003.

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Notas

[1] Cf. Bauman (2011ª.p.90)” Como convém a uma sociedade de consumidores como a nossa, a cultura hoje é constituída de ofertas, e não de normas. Assim como afirmou  Boordieu, a cultura vive de sedução, não de regulação normativa; de relações publicas, não de policiamento; da criação de novas necessidades, desejos , carências e caprichos, não de coerção. Esta e uma sociedade de consumidores, e, tal como o resto do mundo, experimentamos  o mundo como consumidores”.

[2] O Poder Judiciário tem a tarefa política maior de buscar a harmonia entre os dispositivos legais e os valores em conflito, de forma justa e eqüitativa, dando, nas palavras de Owen Fiss (2004, p. 114), aplicação e significado concreto aos valores públicos incorporados à Constituição, atividade que só se legitima em razão do consentimento democrático e que é baseada na idoneidade do Judiciário para realizar seu mister .

[3] Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

[4] Cf. Bauman (2011ª.P64-.65)  os consumidores impulsivos e imprevidentes que acabam por se endividar são as fontes constantes de lucros das empresas de credito, pois se tornam eternas  pagadoras de juros, motivo pelo qual as financeiras “prometam tudo o que for preciso a fim de atrair as pessoas para a ciranda dos empréstimos, na expectativa de que, uma vez la dentro, os clientes não encontrem solução mais fácil do que continuar a fazer dividas”.

[5] Voltando a Bauman (2011ª. P. 85), a estima social passa significar ter valor de mercado e o medo de ser alijado do circuito social, a insegurança de não saber  se nossas preferências são corretas de acordo com a frenética moda.

[6] HALL (2011.p.11) explica que as sociedades modernas são sociedades de mudanças constantes que trazem subsequentes rupturas com o passado, com a tradição, criando uma crise de identidade. O individuo pós-moderno não tem uma identidade fixa ou permanente e esta é transformada  continuamente em relação as formas pelas quais somos representadas ou interpeladas nos sistemas culturais que nos rodeiam. A medida que os sistemas de representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade de desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma que nos podemos nos identificar –ao menos temporariamente

[7] A historia de Bertha Hunt contado por Buonomano (2011), que teria participado de um golpe publicitário no final dos anos 1920, habilmente tecido pela indústria de tabaco americana, para estimular o fumo entre o publico feminino, é emblemática. Aliás, mais interessantes se tornam os fatos quando somos lembrados pelo referido neurocientista que a bem sucedida estratégia de marketing teve como mote a identificação do ato de fumar com a  liberdade – que se manifesta até hoje como argumento daqueles fumantes que se sentem indevidamente policiados – e com a igualdade.

[8] O tão injustamente desprestigiado Celso Furtado (2002.P.60) já ensinava:”Na economia capitalista o processo de acumulação marcha sobre dois pés: a inovação, que permite discriminar entre consumidores, e a difusão, que conduz à homogeneização de certas formas de consumo. Ao consumidor cabe um papel essencialmente passivo. Sua racionalidade consiste em responder ‘corretamente’ a cada estímulo a que é submetido. As inovações apontam para um nível mais alto de gastos, marca distintiva do consumidor privilegiado. Mas o padrão inicialmente restritivo terá de ser superado e difundido a fim de que o mercado cresça em todas as dimensões”.

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[9] Cf. GIDDENS (2002. p 12), na alta modernidade, a influência de acontecimentos sobre eventos próximos, e sobre intimidades do eu, se torna cada vez mais comum. Quanto mais a tradição perde o seu domínio, e quanto mais a vida diária e reconstruída em termos do jogo dialético entre o local e o global, tanto mais os indivíduos são forcados a escolher um estilo de vida a partir de uma diversidade de opções (padronizadas).

[10] Hobsbawn (2011. P. 20) indica a visão cíclica do mercado, que volta e meia retorna a tona, com nova roupagem, ora de liberalismo econômico clássico ora com a bandeira da desregulamentação, muito citada no crack de 1929, na crise da Nasdaq e na farra do subprime: Ele repousa na tentativa, surgida na década de 1970, de traduzir uma degeneração patológica do principio do laissez-faire em realidade econômica pela recusa sistemática dos Estados a qualquer controle ou regulamentação das atividades das empresas com fins lucrativos. Essa tentativa de entregar a sociedade humana ao mercado (supostamente) autocontrolador e maximizador da riqueza e ate do bem-estar, integrado (supostamente) por atores dedicados a busca racional de seus interesses, não tinha precedentes em nenhuma fase anterior do desenvolvimento capitalista em nenhuma economia desenvolvida, nem mesmo nos Estados Unidos. Foi uma reductio ad absurdum da interpretação que seus ideólogos deram aos textos de Adam Smith, do mesmo modo que a economia totalmente planificada da União Soviética, igualmente extremista, nasceu da leitura que os bolcheviques fizeram das palavras de Marx. Não admira que esse ‘fundamentalismo de mercado mais próximo da teologia que da realidade econômica, também fracassasse”.

[11] GIDDENS (2002.P. 206)  ressalta que as questões morais sublimadas clamam para voltar a agenda. Discute-se não a sobrevivência, mas sim como a própria existência deve ser percebida e vivida.

[12] Barber (2009) ao defender que o  consumismo leva uma separação do capitalismo da democracia, traz a lume a conhecida frase atribuida a James Madison de que as patologias da liberdade podem ser  tão perigosas quanto as patalogias da tirania.

[13] Na linha de Clovis do Couto e Silva  (2011.p.42) “ A boa-fé da o critério para a valorização judicial, não a solução previa. Num sistema jurídico sem lacunas, a função do juiz resume-se em elaborara mecanicamente as soluções, esvaziando-se o direito de conteúdo vital. Num sistema jurídico concebido, não como uma Geschlossenheit, como um mundo fechado, mas sim como algo com aberturas por onde penetram os princípios gerais  que o vivificam, não se poderá chegar a uma solução concreta apenas por processo dedutivo ou lógico matemático. Com a aplicação do principio da boa-fé , outros princípios havidos como absolutos serão relativizados, flexibilizados ao contato com a regra ética”,

[14] Utilizo como parâmetro para a discussão o BGB, não se olvidando, porém, que o princípio da boa-fé é matéria que permeia os mais diversos ordenamentos jurídicos. Com efeito, BLUM (2011), ao tratar do direito norteamericano, ressalta a  obrigação dos contratantes de realizar  os melhores e razoáveis esforços para o cumprimento adequado dos propósitos do contrato, levando em conta  a razoável expectativa das partes, acrescentando que o princípio da mitigação (dever de prevenção e não agravamento dos danos) é reconhecido pela common Law e positivado ( UCC art. 2. seções 2.706 e 2.712), determinando   que o vendedor ou o comprador ajam com razoabilidade e com boa fé

[15] Art. 421 do Código Civil Brasileiro (CCB) : “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.

[16] Art. 113 do CCB : “ Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”.

[17] Art. 187do CCB : “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

[18] DÍEZ-PICASO e GULLÓN (1998. p61) já ensinavam que a finalidade  da comunicação publicitária é a promoção de uma contratação, o que obriga a levar a cabo uma  valoração das comunicações  publicitárias  que as encaixem nas categorias técnicas jurídicas implicadas no processo de formação dos contratos , ainda que limitado pelas comunicações que suscitem a razoável confiança, de acordo com a boa-fé, em seu caráter informativo contratual.

[19] Que deve ser observada como contratual. Nesse sentido: “A violação dos deveres anexos, também intitulados instrumentais, laterais, ou acessórios do contrato - tais como a cláusula geral de boa-fé objetiva, dever geral de lealdade e confiança recíproca entre as partes -, implica responsabilidade civil contratual, como leciona a abalizada doutrina com respaldo em numerosos precedentes desta Corte, reconhecendo que, no caso, a negativação caracteriza ilícito contratual”. (STJ - REsp 1276311 / RS. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO. DJe 17/10/2011) 

[20] Karina Fritz (2010.p. 198-199) bem ressalta que a mudança na concepção contratual com a ênfase na boa-fé objetiva na Alemanha foi iniciada pelas decisões sedimentadas pelo Reichsgericht, quando “passou-se a afirmar que o negocio jurídico compreende não apenas aqueles deveres queridos pelas partes, resultantes do vinculo jurídico em função do acordo em si ou por determinação legal, mas também certos deveres decorrentes da boa-fé objetiva, cuja presença na relação obrigacional independe totalmente  da vontade das partes, ou seja, passou-se a inserir na relação obrigacional deveres estranhos ao vinculo, mas decorrentes de uma fonte ética, o mandamento da boa-fé objetiva”.

[21]Cf. Martins-Costa (2003.p.35 -37) os deveres instrumentais não decorrem da necessariamente do exercício da autonomia privada (podendo, inclusive, limitar o seu exercício), nem de pontual explicitação normativa ( já que por vezes corrige a disposição legal), remetendo a  Tepedino que ressalta que “o desenvolvimento de sua tipologia, que é aberta, muito deve à atividade judicial” .

 Da mesma forma, Karina Fritz (2010.p.200)”nem os &&241, II, e 242 do BGB nem o art. 422 do CC/2002 elencam um rol de deveres decorrentes da boa-fé objetiva. A própria estrutura da norma- clausula geral não permite e nem pretende tal façanha casuística. Os deveres de consideração somente são identificados no caso concreto, de acordo com as circunstancias de cada situação, porque o direito não e uma roupa de tamanho único para ser usada por todos, ainda que com imperfeições, mas, uma peca feita sob medida para cada um”

Claudia Lima Marques (2011.p219) “A doutrina alemã visualiza a função da boa-fé  nos contratos não apenas  como um paradigma de conduta para as partes, mas também uma medida de decisão (Entscheidungsmasstab) um instrumento objetivo de apreensão da realidade pelo juiz.

[22] “ O princípio da pacta sunt servanda não é absoluto e não tem o condão de escudar a subsistência de estipulações unilaterais abusivas. Qualquer ilegalidade pode e deve ser reconhecida pelo Poder Judiciário” (STF - AI 700268 / PR – PARANÁ; Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI; Julgamento: 22/06/2011)

[23] A questão da privacidade on line vem sendo discutida em todo o mundo, levando em conta a percepção da infinidade de informações pessoais coletadas, armazenadas e processadas através de redes sociais e aplicativos específicos e comercializadas no mercado, que tem o poder de identificar desde a preferência comercial do usuário, bem como os destinatários de suas mensagens pessoais, até a própria localização mesmo daquele que porta um dispositivo móvel . Tal coleta de informações por vezes é “autorizada” pelo usuário através do assentimento irrefletido de condições contratuais, via de regra abusivas, que são apresentadas como condição morosa  para o acesso rápido aos produtos oferecidos. 

[24] Como consequência da crise econômica posterior  à quebra da Bolsa de 1929, o partido nazista, que na  eleição geral de 1924 tinham perdido cadeiras  no Parlamento,  passando de 12 para 107 cadeiras no Reichstag  nas eleições de 1930 e, aproveitando-se dos seis milhões de desempregados, chegando a 230 cadeiras em 1932, selando, de vez, o destino não só da Alemanha, mas também da maior parte do mundo.

A mesma Europa, com a crise de 2008, viu colocada em xeque a própria estabilidade da Comunidade Europeia.

[25] Cf. Hannah Arendt (1997.p.530), “ o que prepara os homens para o domínio totalitário no mundo não-totalitário é o fato de que a solidão, que já foi uma experiência fronteiriça, sofrida em certas condições sociais marginais como a velhice, passou a ser, em nosso século, a experiência diária de massas cada vez maiores”.


Abstract: The study seeks to discuss the freedom to contract in the world  postmodernism, in reason of the marketing strategies contemporaries, as well as the function of the judge in accordance with to decide also the ethical duties resulting from objective good-faith.

Keywords: Law. Right. Contracts. Freedom. Judge. Ethics.

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Sobre o autor
Sérgio Henrique Cordeiro Caldas Fernandes

Juiz de Direito na Comarca de Belo Horizonte (MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDES, Sérgio Henrique Cordeiro Caldas. De Kant a Jobs: reflexões sobre a liberdade de contratar na pós-modernidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3634, 13 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24115. Acesso em: 21 nov. 2024.

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