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De Kant a Jobs: reflexões sobre a liberdade de contratar na pós-modernidade

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O argumento jurídico deverá prevalecer sobre o argumento econômico quando analisadas as questões jurídicas que permeiam as relações negociais realizadas no mercado de consumo.

Resumo: O ensaio tem por objetivo discutir a liberdade de contratar no mundo pós-moderno, em razão das estratégias mercadológicas contemporâneas, bem como a função do juiz de decidir de acordo também com os deveres éticos decorrentes da boa-fé objetiva.

Palavras-chave: Direito. Contratos. Liberdade. Juiz. Deveres. Ética.

Sumário: 1-Introdução. 2- Liberdade Kantiana 3.Desejos e ansiedades na geração de Jobs 4. 4 - A abordagem contratual nos tempos pós-Jobs 5. Conclusão. 6. Referências bibliográficas.

O Professor: Minha senhora! Afinal de contas temos os nossos princípios. Os princípios da civilização ocidental.

Claire Zahanassian: Então, que querem de mim?

O Professor: Infelizmente, a população de Güllen andou fazendo compras.

Claire Zahanassian:Está endividada?

O Professor: De modo irremediável.

Claire Zahanassian: Apesar dos princípios?

Friedrich Dürrenmatt (A Visita da Velha Senhora)


1 - Introdução

Nos tempos de hiperconsumo, por vezes aflitivos, a inserção no mercado passou a significar para muitos a concretização do mote da Revolução Francesa: Liberdade de escolher o que consumir, como exercício da autodeterminação individual; Igualdade fundamentada no sentimento de pertença, relativo ao grupo cada vez maior daqueles que podem adquirir os produtos, paulatinamente mais acessíveis, disponibilizados no mercado; Fraternidade, por vezes identificada como a possibilidade do cidadão-consumidor perceber-se como agente ativo no mercado, no mesmo patamar dos empresários-fornecedores.

Mas quando aceitamos restringir a dignidade da pessoa àqueles que participam do mercado, espaço etéreo onde se realizam as operações econômicas, corremos o risco de resumir o cidadão ao homo economicus, bem como empobrecemos a perspectiva do argumento jurídico diante do falso pressuposto de que os princípios e regras – entre estas a da oferta e procura- a serem observados já foram dispostos pelo mercado[1].

Em um mundo econômico onde o principal não é vender produtos, criados aos borbotões, mas sim imagens e experiências elaboradas sobre uma plataforma massificada, a relação contratual formal passa a ser apenas um detalhe do protocolo de venda do objeto desejado.

Qual seria então o papel dos juízes inseridos em uma sociedade de consumo de massa quanto à análise da relação contratual?

A massificação de procedimentos e decisões judiciais, com a realização de mutirões de conciliação e a formulação de enunciados pelos tribunais superiores, por vezes representando decisões de caráter não apenas persuasivo, embora sirvam de parâmetro para os operadores econômicos avaliarem os custos de determinada estratégia, seria o caminho para o Judiciário cumprir sua verdadeira função de dar aplicação e significado concreto aos valores civilizatórios?[2]

Em caso positivo, como ficaria a análise pelo juiz dos deveres de conduta, representados pelo artigo 422 do Código Civil[3], norma de ordem pública que tem como paralelo o código de obrigações alemão reformado, que exigem a observância do caso individualizado, afastando a industrialização das decisões?

E, mais a fundo, não seria cogente a análise artesanal sobre a existência da própria liberdade contratual, caso se reconheça que as regras já foram dispostas pelo mercado e as estratégias mercadológicas atuam exatamente na formação da vontade do cidadão?

Não seria mais lógico tratar o endividamento como uma anomalia patológica do mercado, que deve ser evitada através de uma ação causal, do que um efeito natural – e até esperado por certas entidades financeiras[4] -, possibilitando a discussão da formação lícita da vontade, ao invés de gastar toda a energia criando formas de atenuar as consequências deletérias do consumo desenfreado, não perdendo de vista o espectro ilícito que vai da fraude - inclusive processual - realizada pelo pseudocliente estelionatário até a farra dos contratos derivativos de crédito "subprime"?

Em um mundo no qual o endividamento é estimulado pelo próprio governo, tornando-se a política creditícia questão de Estado e fonte de fissuras no relacionamento internacional, até que ponto é crível que o Judiciário não esteja sendo transformado em mero instrumento de legitimação de práticas econômicas?

Até onde os juízes estão a fazer por merecer o poder que lhes foi outorgado pelo consentimento democrático, levando em conta, na linha de Owen Fiss (2004), que o dever do juiz não é servir ao mercado, mas sim determinar se este deve prevalecer?

Em uma sociedade líquida, nos dizeres de Bauman (2011b), com a santificação de práticas mercadológicas, que estariam a hipotecar o futuro das gerações vindouras, qual é o papel do juiz?

Afinal, só existe vida no Mercado ou é necessária a urgente proteção dos demais valores civilizatórios?


2 - Liberdade Kantiana.

Na esteira das observações de Sandel (2011) sobre a obra de Immanuel Kant, a dignidade humana está umbilicalmente vinculada ao fato de sermos seres racionais, com capacidade de agir e escolher livremente. Mas tal liberdade não deve ser confundida com a possibilidade de realizar trocas negociais no mercado, pois esta última situação se traduz apenas na eventual satisfação de desejos que por vezes não escolhemos.

Os pensamentos utilitarista, libertário e pragmático clássico, que continuam a pautar a ação daqueles que acreditam na plena liberdade e justiça nos negócios realizados no mercado, afastados da regulação estatal, tem por base o ideal de maximização da riqueza/felicidade da sociedade. Todavia, a moral para Kant estaria fundamentada no respeito às pessoas, como fins em si mesmas (imperativo categórico) e não como meios para obtenção de outro objetivo (imperativo hipotético).

Para Kant a razão não seria instrumental (voltada a maximizar a utilidade por meio da satisfação dos desejos), mas sim prática e pura, o que nos obriga a determinar os objetivos a seguir levando em conta a dignidade do outro, decorrente de sua humanidade.

Como a liberdade estaria ligada à capacidade de raciocinar, quando somos conduzidos pela nossa natureza senciente, em busca da satisfação de desejos que nos são impostos por uma determinação exterior (heteronomia), nossa vontade não pode ser considerada livre, já que nós nos tornamos meros instrumentos, e não autores do nosso destino.

Quando nossos desejos são condicionados socialmente pelas ações mercadológicas, não perdendo de vista que nossas escolhas flanarão entre as alternativas previamente apresentadas e colocadas aos nossos olhos, faz-se importante trazer a lume a reflexão de SANDEL (2011.p.149) no sentido de que se você não escolheu livremente os desejos que lhe são apresentados, como podes imaginar-se livre ao tentar realiza-los?

A vontade de um homem livre não poderia ser dependente de seus desejos, pois o outro deve ser visto como um fim, observando a sua humanidade como valor intrínseco, o que nos leva ao princípio ético da outricidade e a responsabilidade moral por nossos atos.

A liberdade de escolha no mercado não seria verdadeira, dentro dessa perspectiva, pois a ação do consumidor seria empírica, instrumental e heterônoma, fruto de uma inclinação ou condicionamento anterior.

A igualdade, por sua vez, seria ilusória, pois o consumidor não atuaria como arquiteto do negocio ou mesmo participaria da formulação do próprio desejo.

Discutível igualmente a existência de fraternidade, já que a sociedade de massas potencialmente desumaniza e dilui a responsabilidade moral, máxime quando o fornecedor de bens e serviços é institucionalizado e despessoalizado.

As decisões judiciais nesse mundo seguem trilha perigosa quando são industrializadas, pois servem de instrumento de coisificação do homem, transformando os contratantes em estatísticas e legitimando regras impostas pelo mercado.

Mais forte se torna a advertência de FISS quando percebemos que agir com liberdade não se resume na escolha das melhores formas para atingir determinado fim, como lembra SANDEL (2011.p. 141-142), mas sim escolher o fim em si.


3 - Desejos e ansiedade na geração de Jobs.

Abraham Maslow desenvolveu a teoria da necessidade como fator motivador, apresentando uma hierarquia de necessidades, através da qual a satisfação de uma necessidade básica provocaria a busca da satisfação da necessidade do nível imediatamente superior. Por outro lado, a insatisfação de uma necessidade leva a um estado de ansiedade, facilmente explorado pelos fornecedores de bens e serviços.

A necessidade fisiológica, base da pirâmide de Maslow, como esta ligada ’a sobrevivência, significa também um mundo de oportunidades para as indústrias farmacêutica e de alimentos, máxime em uma sociedade hedonista que preza a aparência física como sinônimo de saúde e sucesso e busca a longevidade.

O segundo patamar, a necessidade de segurança, significa também estar inserido na sociedade de informação, onde não estar conectado leva à sensação de desamparo, pois a pessoa passa a se considerar um outsider em seu próprio mundo.

As necessidades sociais, que envolvem diretamente o sentimento de pertença, podem ser por vezes transmudadas na perigosa sensação de participar de uma tribo urbana, com desejos compartimentados, em razão da falsa fraternidade no mercado.

As necessidades até então mencionadas não se traduzem em fatores desmotivadores, pois a tensão provocada pela sua ausência conduz o consumidor a atuar em busca do alívio de sua ansiedade, situação que pode ser habilmente manipulada nas relações mercadológicas.

A necessidade de estima acaba por ser influenciada pelas expectativas sociais moldadas pelo interesse econômico[5].

Aliás, os estímulos de consumo internalizados se estratificam como cultura, acabando por criar um modo de vida e a influenciar ações dos cidadãos[6]. Tal assertiva pode ser exemplificada pela indústria do tabaco.

Em verdade, gerações foram inundadas com imagens de Humphrey Bogart charmosamente tragando o seu cigarro em filmes clássicos ou músicas do Van Halen servindo de fundo para manobras esportivas radicais em propagandas de cigarro. O efeito foi devastador. A associação do cigarro com o sucesso foi categórica, ainda mais que os efeitos deletérios do tabaco não são imediatos.

O neurocientista BUONOMANO (2011) lembra que o marketing trabalha com a capacidade do cérebro de criar associações em curto tempo, construindo uma experiência artificial que será virtualmente vivenciada pelo consumidor através de exposições midiáticas sistemáticas[7].

A partir dos anos 2000, quando a propaganda de cigarros começou a ser proibida no Brasil e o Ministério da Saúde passou a concretizar medidas regulatórias, proibitivas e de contrapropaganda, como as advertências nos maços e a divulgação incessante dos males do cigarro, houve aparentemente  uma significativa diminuição na proporção de brasileiros fumantes.

Ou seja, no átimo de poucas décadas, através de instrumentos modernos de comunicação, o marketing moldou aspectos culturais da sociedade com o único e exclusivo objetivo de vender certo produto.

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Embora tal questão envolva a saúde publica e as relações consumeristas, a atitude do Judiciário foi basicamente reativa e singela, não perdendo de vista que os embates judiciais em outros países também se mostraram muito difíceis.

A superação da necessidade superior de autorrealização demandaria o desenvolvimento das potencialidades por um individuo dotado de autonomia, o que implicaria na existência de um sentido a ser perseguido, de desafios para o crescimento e de responsabilidade pelas decisões, virtudes que não são propriamente prioritárias em uma sociedade consumista.

Na verdade a situação é ainda mais complicada, além de discutível a existência de uma hierarquia de necessidades. O comportamento, na linha de Maslow, poderia ser impelido pela tensão decorrente da necessidade ou do desejo. Pois bem, o desejo traz uma carga emocional que não vai necessariamente ser aliviada pelo encontro do objeto desejado. Diferente da necessidade que pode teoricamente ser satisfeita, o desejo tem a capacidade de se deslocar para outro objeto, criando uma situação de eterna ansiedade.

Lembra Renata SALECL (2005) que a ansiedade não é estimulada pela falta do objeto do desejo, mas sim pela emergência de um objeto no lugar desta falta. A própria aproximação do sucesso no alcance do objeto de desejo eleva a ansiedade, que se intermedeia entre o próprio desejo e a jouissance (prazer acoplado ao sofrimento) lacaniana.

A ansiedade da falta da falta também é indicada por Bauman (2011ª, p.54-55) na sua crítica ao chamado mundo líquido moderno, onde o importante é guardar o estilo, não o objeto, já que este sai de moda com rapidez, sendo rapidamente trocado e, portanto, descartado[8].

As estratégias mercadológicas foram amoldadas com rapidez ao reconhecimento da ansiedade como motor de consumo, porquanto como é discutível a possibilidade da criação artificial de necessidades, o estimulo do desejo de consumo passa ser perfeitamente plausível.

Passou-se, então, na toada da geração de Steve Jobs, à venda de sonhos, não de produtos; à superação de expectativas de consumo; à transformação do processo de compra de aquisição de bens e serviços para experiência. Tal estratégia explora a emoção e a pressão social[9] decorrentes da criação de novos objetos de desejo, por meio  de uma publicidade massiva e disseminada pelas redes sociais, amparada por mecanismos mercadológicos como o marketing de expectativa, tão bem utilizado por Jobs, pelo apelo icônico, pois a fidelização passa a ser o diferencial na competição pelo espaço no mercado (market share), e pela acessibilidade, fruto tanto da logística, desenvolvida com o e-commerce, quanto pelo barateamento dos produtos tecnológicos, como os gadgets eletrônicos, não se esquecendo do crédito fácil.

Esse admirável mundo novo traz algumas anomalias, que vão desde o consumo patológico, que versa sobre a incapacidade crônica de resistir ao impulso de comprar, fato que pode ser discutido como vicio de vontade na formação do contrato, chegando ao ataque à biosfera, consequência da maior capacidade produtiva e de consumo, como bem aponta HOBSBAWN (2011)[10], que traz a lume questões jurídicas, inclusive constitucionais  precaucionais.

Não são apenas dilemas morais[11] que surgem na modernidade tardia (alta modernidade, pós-modernidade, hipermodernidade, modernidade liquida, dependendo da perspectiva), lembrando a visão de HARVEY (2011.p.112) de que a ênfase na efemeridade da jouissance na pós-modernidade demonstra uma clara preferência pela estética, em vez da ética, porquanto o processo atual de estímulo ao consumo, com a facilitação do uso dos instrumentos tecnológicos, faz picadinho da democracia nas palavras de SENNETT (2011.p.155), pois quando o cidadão se desinteressa em descobrir como funciona o mundo ao seu redor a vontade crítica desaparece, por conseqüência o controle torna-se mais concentrado à medida que o volume de dados brutos, normalmente enviados através de mensagens curtas - que revelam uma linguagem mais primitiva sem o silêncio, gestos e digressões que qualificam a comunicação interativa -, aumenta[12].

A questão guarda similitude na vida jurídica, com a utilização de enunciados de sumulas, que são por natureza informações massivas concisas e já depuradas, que diminuem a necessidade da prática interpretativa pelo aplicador, como método taylorista de responder à industrialização de ações que vem propiciando a judicialização de vários aspectos da vida, o que leva à concentração de poder nos tribunais superiores de onde emanam as súmulas e, por consequência, à diminuição da criatividade necessária para a análise individualizada dos fatos da vida que são levados ao Judiciário e à consequente contribuição para o desenvolvimento civilizatório, fragilizando a própria democracia.


4 - A abordagem contratual nos tempos pós-jobs.

Na linha clássica weberiana, entre as expectativas juridicamente garantidas estão as liberdades relativas à interferência do Estado e aquelas vinculadas à autonomia para contratar em uma comunidade com mercado, que acaba por ser regulado por aqueles grupos de influencia que tem interesse em jogo. Mas os contratos hoje muito se distanciam da sua conotação primitiva que implicava na mudança na posse de bens.

Há muito, a relação obrigacional desenvolvida através de um processo, com a depuração da teoria do Schuld (débito)/Haftung (responsabilidade), ultrapassando a visão clássica do contrato bilateral, ganhou impulso com os sucessores de Hermann Staub e, entre nós, de Clovis do Couto e Silva[13], sedimentando a noção  da relação obrigacional como processo, que inclui deveres laterais de conduta, permeados pelo princípio da boa-fé objetiva,  independentes dos deveres prestacionais.

A rigor, a doutrina da violação positiva do contrato (positive Vertragsverletzung), envolta pelos casos de descumprimento contratual, ganhou relevância na reforma do Código Civil Alemão - Burgerliches Gesetzbuch (BGB) - de 2001/2002, na linha das discussões do direito das obrigações no âmbito das diretrizes comunitárias[14].

Com efeito, a ênfase no BGB na violação dos deveres (Pflichtverletzung) como sistematizador do descumprimento contratual, espécie do gênero perturbações da prestação, trouxe, ao lado das formas clássicas de descumprimento dos deveres primários de prestação - tais como a impossibilidade de cumprimento da prestação (Unmöglichkeit), que tateará as futuras discussões sobre a inadimplência, imprevisibilidade e inviabilidade superveniente da capacidade de pagamento; a mora, qualificada como descumprimento na forma, modo e tempo convencionados da prestação e  o cumprimento imperfeito (Schlechtleistung) -, a quebra dos deveres de proteção (Schultzpflichten) ou, mais propriamente, deveres éticos decorrentes da boa-fé objetiva.

Judith MARTINS-COSTA (2003), ao sistematizar a multifacetada relação obrigacional hodierna, aponta os deveres principais ou primários de prestação (v.g: obrigacao de entregar uma mercadoria), que são secundados pelos deveres de prestação acidentais, meramente acessórios (v.g: dever de embalar a mercadoria) ou de prestação autônoma (v.g: indenização pela não entrega da mercadoria), ao lado de outros deveres igualmente essenciais, que a autora denomina de instrumentais (também conhecidos como de comportamento, anexos, secundários, acessórios e laterais e, na Alemanha, Nebenpflichten), entre os quais estão os deveres de proteção, que preferimos sinalizar como deveres éticos decorrentes da boa-fé objetiva.

O contrato passou a ser observado através de uma visão macro como uma relação de cooperação, afastando-se da concepção clássica da obrigação como vínculo de sujeição entre credor e devedor, dando-se ênfase, inclusive, às legitimas expectativas dos contratantes e aos deveres éticos que devem ser pelos mesmos observados.

A função social como limitadora do contrato[15] cria igualmente uma interface com o direito ambiental, direito à privacidade, moralidade, solidariedade, livre concorrência e com o direito dos consumidores, todos constitucionalmente previstos.

O contrato como instrumento complexo passa a prezar a Transindividualidade, não mais se resumindo aos interesses dos contratantes, mas agora observando a solidariedade social, também traduzida na influência na esfera jurídica de terceiros e na preocupação com os direitos difusos.

A mudança da concepção do fenômeno obrigacional, com destaque para a função complementadora da boa-fé objetiva (Ergänzungsfunktion), pela qual se inserem na relação obrigacional deveres não previstos pelas partes no momento da celebração do negocio jurídico, é apontado por Karina FRITZ (2010.p198-199), como uma das características primordiais do contrato dos novos tempos.

A centralização na cláusula geral de boa-fé objetiva delimita, de acordo com TEPEDINO (2008.p11-12), a função  interpretativa dos contratos[16], função restritiva do exercício abusivo de direitos contratuais e a função criadora de deveres anexos ou acessórios à prestação principal, não perdendo de vista que o principio da boa-fé objetiva implica na adstrição do direito contratual aos princípios constitucionais. TEPEDINO explica(2008.p.13):

 Pode-se afirmar, diante de tal cenário normativo, que os três princípios cardinais do regime contratual, quais sejam, a autonomia privada, a força obrigatória dos contratos e a relatividade obrigacional, embora mantidos pelo sistema, adquirem novos  contornos com o surgimento dos três novos princípios, quais sejam, a cláusula geral de boa-fé objetiva, o equilíbrio econômico da relação obrigacional  e a função social dos contratos.

No mesmo diapasão, Claudia Lima Marques (2011.p.212) ressalta o deslocamento da órbita contratual para os novos deveres especiais de conduta (deveres anexos), que atuam como causa limitadora do exercício dos direitos subjetivos qualificados pela autonomia da vontade[17], assim como na concreção e interpretação dos contratos.

Em verdade, quanto à limitação dos direitos subjetivos, alem da concepção social do contrato, é certo que o cocontratante pode atuar, inclusive durante as tratativas[18], na esfera jurídica do outro pretenso partícipe, influenciando suas escolhas, máxime com a utilização das estratégias mercadológicas coevas, o que já qualificaria a necessidade de eventual intervenção estatal em caso de reconhecimento de hipossuficiência de um dos interessados.

Aliás, HOLMES e SUNSTEIN (1999) há muito sustentam que todas as dimensões dos direitos fundamentais têm custos públicos, pois direitos e liberdades individuais implicam tanto em direitos a prestações em sentido estrito (positivos), quanto direitos de defesa (negativos), e ambas as dimensões demandam o emprego de recursos públicos para a sua garantia, inclusive na construção da necessária burocracia judiciária.

A bandeira da autorregulamentação, travestida como liberdade, esconde, via de regra, o interesse de o mercado impor suas regras, afastando a ação protetiva do Estado em relação aos direitos do consumidor, do trabalho e da livre concorrência, por vezes estimulando que o passado seja olvidado, perdendo no tempo as consequências da liberalização econômica sem freios, através da criação de expectativas futuras, construindo-se uma utopia do consumo. 

A questão guarda maior relevância no direito da infância e juventude, pois, como aponta BAUMAN (2011a. p. 54-65), o melhor momento de criar um consumidor compulsivo é na transição da infância para a fase adulta, quando os hábitos infantis ainda sobrevivem, inclusive persistindo o costume de ser presenteado, sem incorrer em compromissos. Assim, continua BAUMAN, os objetos de desejo, que eram vistos pelos adolescentes de décadas atrás como um sonho distante, deixaram de ser supérfluos aos olhos dos adolescentes, na medida em que passaram a ser economicamente acessíveis, assumindo o patamar de expectativas legítimas, bem como se tornou corriqueiro aos jovens o descarte do objeto rapidamente ultrapassado, porquanto o importante passou a ser guardar o estilo, não o objeto.

A criança, inserida dentro de um grupo de consumo, tende irrefletidamente a se comportar como todo mundo, descurando do aprendizado que vem da aceitação de riscos e do cansativo trabalho de pensar por si mesma, como especula BAUMAN (2011a.p.66), pervertendo a noção de liberdade que está ela construindo.

Na linha de SALECL (2005.p.73), podemos observar que a criança é potencialmente inundada pela lógica do desejo, do sentimento de insatisfação, a par de todos os bens materiais presenteados, o que muito atrapalha a formação crítica do indivíduo, bem como cria a necessidade de partilhar experiências, ainda que virtuais, pelas redes sociais como ritual de passagem e de aceitação na comunidade de consumidores, espaço simbólico que passa a disputar espaço com a família, escola, religião e Estado.

Pois bem, a construção contratual em uma sociedade de consumo exige que o caso individualizado seja observado desde a sedimentação da vontade de absorver os objetos de desejo constantemente inventados, passando pela estruturação não só dos deveres prestacionais, mas também dos deveres éticos imanentes à cláusula geral da boa-fé objetiva, chegando às anomalias da avença, por vezes ansiadas pelo prestador, por outras provocadas pelo contratante que visa o enriquecimento ilícito, sendo insuficiente a remissão à eventual comprovação econômico-contábil-atuarial do rompimento da base econômica do contrato, a chamada onerosidade excessiva.

A interpretação do processo contratual deve obrigatoriamente privilegiar a análise dos deveres de consideração, porquanto mesmo se alcançados os atos de prestação primária, o acordo pode estar viciado, levando à resolução da avença e a consequente responsabilização[19] do faltoso pelos danos eventualmente provocados na sua concepção e execução.

Deveres anexos não estão escritos no contrato sendo apenas admissível sua definição através da construção jurisprudencial decorrente da analise diuturna dos casos concretos que continuam a surgir no mundo das relações pós-modernas[20]. Não é possível, então, como já observado doutrinariamente[21], clausular os deveres anexos aprioristicamente, inclusive por previsão legislativa, ou pelas disposições contratuais, com base na autonomia privada[22], pois independem de explicitação escrita. Todavia, entre os muitos deveres de consideração que são identificados jurisprudencialmente a cada dia podemos citar os de lealdade (que ultrapassa o dever da mitigação e alcança o próprio dever de alteridade), aviso (v.g: regra do caveat vendictor que reflete na obrigação do prestador avisar sobre os riscos do tratamento médico), aconselhamento (v.g: dever de o fornecedor dar subsídios para que o contratante possa saber qual é o seguro ou o plano de previdência mais adequado para sua particular condição), clareza (linguagem acessível, precisa e ostensiva, com o uso do vernáculo, letras adequadas e afastando os termos técnicos pouco acessíveis[23]), informação (v.g: vedação às cláusulas obscuras, desprovidas de informação clara e precisa do fato gerador, finalidade e alcance da cobrança de tarifas bancárias), segurança (v.g: responsabilidade do construtor pela solidez e segurança por todo o período de razoável durabilidade do prédio), cuidado (v.g: a garantia da utilização sem maiores percalços do transporte aéreo, tendo o avião como meio técnico, para alcançar a realização do objetivo do contrato de serviço, que se traduz no transporte adequado do passageiro e de sua bagagem), incolumidade (v.g: transporte incólume de passageiros por veículos das concessionárias de transporte coletivo rodoviário até o destino programado), cooperação (v.g: auxílio na preparação de documentos para obtenção de financiamento em contratos de venda e compra de imóveis, envio de boletos para pagamento de prestações, atualização pelo consumidor de seus dados. Inclui o dever de atuação conjunta do direito alemão), sigilo e confidencialidade (v.g: contratos de risco e exclusividade na área de prospecção e pesquisa  mineral), de não agravar a situação do parceiro contratual (também o dever de consideração e de suportar pequenos ajustes necessários para a consecução da avenca), de evitar ou diminuir riscos (trazendo a mente o princípio norte-americano da mitigação – duty to mitigate damages-, consubstanciado no dever de prevenção e não agravamento dos danos) e de guarda (manutenção de documentos necessários para a prova do trato).

De qualquer modo, sobreleva o dever hermenêutico do juiz na identificação e aplicação dos deveres éticos decorrentes da boa-fé objetiva, fato que é destacado inclusive por aqueles doutrinadores, como TEPEDINO (2008), que demonstram receio do risco de insegurança jurídica e de eventual abuso no exercício da discricionariedade inerente a interpretação caso a caso dos deveres anexos pelos juízes, máxime por aqueles poucos que se investirem no espírito de Torquemada como censores morais.

Como muito bem expõe Karina FRITZ (2010), a cláusula geral de boa-fé objetiva exige uma aplicação tópica, pois constantemente dependente das circunstâncias mutáveis e particulares de cada caso, não sendo permitido ao julgador trabalhar com o processo simplificado de subsunção, o que coloca em xeque a própria legitimidade do Judiciário de clausular a interpretação através de enunciados, conduta conflitante com a natureza pública da norma.

Em um mundo em que milhares de processos aportam nos fóruns pelo país afora, por vezes mais enriquecendo os seus postulantes e representantes do que corrigindo distorções, catástrofe provocada também pela por vezes letárgica e insuficiente ação dos órgãos estatais de controle e regulação e pelo reiterado e imprudente descumprimento de fornecedores de bens e serviços da boa-fé objetiva, a burocracia judicial cresce e aumenta sua importância na vida do cidadão de uma forma sem precedentes, elevando e concentrando o poder nos tribunais superiores e, como ricochete, nas grandes empresas de advocacia que auxiliam na sedimentação jurisprudencial, passando o ato judicial -  base do sistema judiciário  antes centrado no oficio do magistrado de primeiro grau - de protagonista para automatizado, levando o intérprete  a um constante perseguir metas de produção e aplicação de enunciados, passando, então, a sociedade democrática a correr o risco de  perder nesse caminho algo muito importante: a própria legitimidade de seu Judiciário.

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Sobre o autor
Sérgio Henrique Cordeiro Caldas Fernandes

Juiz de Direito na Comarca de Belo Horizonte (MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDES, Sérgio Henrique Cordeiro Caldas. De Kant a Jobs: reflexões sobre a liberdade de contratar na pós-modernidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3634, 13 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24115. Acesso em: 21 nov. 2024.

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