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Emenda Constituicional nº 26/1985, à Constituição Federal de 1967: manifestação do Poder Constituinte ou Evolutivo?

Uma análise a partir dos votos dos Ministros Eros Grau e Gilmar Mendes no julgamento da ADPF nº 153

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3. A Emenda Constitucional nº 26, de 1985

Em 28 de junho de 1985, por meio da Mensagem nº 330 ao Congresso Nacional, o Presidente da República, José Sarney, enviou projeto de emenda à Constituição em vigor (PEC nº 43/1985), convocando uma Assembléia Nacional Constituinte:

PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO Nº 43, DE 1985 – Convoca a Assembléia Nacional Constituinte.

Art. 1º. Os Membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, sem prejuízo de suas atribuições constitucionais, reunir-se-ão unicameralmente, em Assembléia Nacional Constituinte, livre e soberana, no dia 31 de janeiro de 1987, na sede do Congresso Nacional.

Art. 2º. O Presidente do Supremo Tribunal Federal instalará a Assembléia Nacional Constituinte e dirigirá a sessão de eleição do seu Presidente.

Art. 3º. O Projeto de Constituição será promulgado no curso da Primeira Sessão Legislativa da 48ª Legislatura, depois de aprovado, em dois turnos de discussão e votação, pela maioria absoluta dos Membros da Assembléia Nacional Constituinte.

O referido projeto de emenda gerou inúmeras controvérsias no campo acadêmico, principalmente entre os juristas. Dentre as principais estavam as seguintes: o Congresso Nacional, poder constituído, poderia, ao mesmo tempo, atuar como poder constituinte? Poderiam os parlamentares constituintes serem limitados pelo texto do projeto de emenda?

O projeto de emenda constitucional foi o instrumento formal utilizado para convocar o poder constituinte e elaborar uma nova constituição. Este, enquanto poder de fato, é ilimitado e incondicionado, não estava e não poderia estar demarcado por uma emenda constitucional, até porque tem a função de revogar a ordem jurídica vigente, da qual fazia parte a emenda que o convocou.

Portanto, o artigo 3º do PEC nº 43/1985, apesar de dispor que a constituição deveria ser promulgada até o final da primeira Sessão Legislativa da 48ª Legislatura, após discussão e votação em dois turnos, por maioria absoluta de seus membros, não condicionava a Assembléia Nacional Constituinte. Esta poderia, por meio de seu regimento interno, dispor sobre o processo de elaboração da constituição do modo que bem entendesse, modificando, inclusive, o quorum de aprovação, a quantidade de turnos de discussão e votação, o prazo para a promulgação da constituição etc.

O relator do PEC nº 43/1985, Deputado Federal Flávio Bierrenbach, atento para as controvérsias oriundas do projeto de emenda enviado pelo Presidente da República, elaborou substitutivo ao referido projeto, propondo, dentre outros temas, um plebiscito popular, no qual o povo decidiria a forma pela qual o poder constituinte iria se manifestar (Assembléia Nacional Constituinte ou Congresso Nacional Constituinte); e que a própria constituinte decidisse sobre sua organização, através de regimento interno.

Apesar desta última proposta ser desnecessária e desprovida de técnica, pois declara o óbvio, tal fato demonstra a insegurança e a instabilidade política da época, decorrente do temor existente de um retrocesso democrático, que teria início com a limitação dos trabalhos da constituinte.

Em outubro de 1985, iniciaram-se as votações sobre o projeto de emenda proposto pelo Presidente da República. O parecer do relator foi derrotado, sendo aprovado o substitutivo proposto pelo Deputado Federal Valmor Giavarina, promulgado no dia 27 de novembro de 1985 (Emenda Constitucional nº 26, de 1985), com a seguinte redação:

EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 26, DE 1985 – Convoca Assembléia Nacional Constituinte e dá outras providências.

AS MESAS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS E DO SENADO FEDERAL, nos termos do art. 49. da Constituição Federal, promulgam a seguinte Emenda ao texto constitucional:

Art. 1º Os Membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal reunir-se-ão, unicameralmente, em Assembléia Nacional Constituinte, livre e soberana, no dia 1º de fevereiro de 1987, na sede do Congresso Nacional.

Art. 2º. O Presidente do Supremo Tribunal Federal instalará a Assembléia Nacional Constituinte e dirigirá a sessão de eleição do seu Presidente.

Art. 3º A Constituição será promulgada depois da aprovação de seu texto, em dois turnos de discussão e votação, pela maioria absoluta dos Membros da Assembléia Nacional Constituinte.

Art. 4º É concedida anistia a todos os servidores públicos civis da Administração direta e indireta e militares, punidos por atos de exceção, institucionais ou complementares.

§ 1º É concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos, e aos dirigentes e representantes de organizações sindicais e estudantis, bem como aos servidores civis ou empregados que hajam sido demitidos ou dispensados por motivação exclusivamente política, com base em outros diplomas legais.

§.2º A anistia abrange os que foram punidos ou processados pelos atos imputáveis previstos no “caput” deste artigo, praticados no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.

§ 3º Aos servidores civis e militares serão concedidas as promoções, na aposentadoria ou na reserva, ao cargo, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade, previstos nas leis e regulamentos vigentes.

§ 4º A Administração Pública, à sua exclusiva iniciativa, competência e critério, poderá readmitir ou reverter ao serviço ativo o servidor público anistiado.

§ 5º O disposto no “caput” deste artigo somente gera efeitos financeiros a partir da promulgação da presente Emenda, vedada a remuneração de qualquer espécie, em caráter retroativo.

§ 6º Excluem-se das presentes disposições os servidores civis ou militares que já se encontravam aposentados, na reserva ou reformados, quando atingidos pelas medidas constantes do “caput” deste artigo.

§ 7º Os dependentes dos servidores civis e militares abrangidos pelas disposições deste artigo já falecidos farão jus ás vantagens pecuniárias da pensão correspondente ao cargo, função, emprego, posto ou graduação que teria sido assegurado a cada beneficiário da anistia, até a data de sua morte, observada a legislação específica.

§ 8º A Administração Pública aplicará as disposições deste artigo, respeitadas as características e peculiaridades próprias das carreiras dos servidores públicos civis e militares, e observados os respectivos regimes jurídicos.

Art. 5º A alínea “c” do § 1º do art. 151. da Constituição passa a vigorar com a seguinte redação:

‘’c) a inelegibilidade do titular efetivo ou interino de cargo ou função cujo exercício possa influir para perturbar a normalidade ou tornar duvidosa a legitimidade das eleições, salvo se se afastar definitivamente de um ou de outro no prazo estabelecido em lei, o qual não será maior de nove meses, nem menor de dois meses, anteriores ao pleito, exceto os seguintes, para os quais fica assim estipulado:

1) Governador e Prefeito – seis meses;

2) Ministro de Estado, secretário de Estado, Presidente, Diretor, Superintendente de órgão, da Administração Pública direta ou indireta, incluídas as fundações e sociedades de economia mista – nove meses; quando candidato a cargo municipal – quatro meses;

3) ocupante de cargo previsto no numero anterior, se já titular de mandato eletivo – seis meses;”

BRASÍLIA, em 27 de novembro de 1985.


4. Votos dos Ministros Eros Grau e Gilmar mendes no julgamento da ADPF 153

No voto proferido pelo Ministro Relator Eros Grau, na ADPF 153, um dos fundamentos jurídicos para a improcedência do pedido foi o fato da anistia constar no texto da Emenda Constitucional nº 26, de 1985, que convocou a Assembléia Nacional Constituinte que seria responsável pela elaboração da Constituição Federal de 1988.

A referida emenda, por conferir ao Congresso Nacional o poder de elaborar uma nova constituição, seria dotada de caráter constitutivo. Instalaria um novo sistema normativo.

Com base nos ensinamentos de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, aduziu que o Congresso Nacional, poder constituído, se transformou em poder constituinte ao promulgar a EC nº 26/85, pois alterou o próprio procedimento de reforma da Constituição Federal de 1967; promulgou uma norma-origem, de caráter constitutivo, haja vista que “constitui ela própria o comportamento que ela mesma prevê”.

Conclui o relator que, se a anistia de 1979 foi reafirmada no texto da EC nº 26/85, norma-origem, promulgada pelo mesmo poder constituinte que elaborou a CF/88, não há como questionar se aquela foi ou não recepcionada por esta.

O Ministro Gilmar Mendes seguiu a mesma conclusão (dispositivo) do Relator, fazendo, contudo, algumas observações no âmbito de sua fundamentação.

Denominou o Congresso Nacional de 1985 de poder constituinte especial, pois colocou no mesmo texto a convocação da constituinte e suas condições de realização, tendo a anistia como um dos pressupostos de possibilidade da construção da nova ordem constitucional.

Defendeu que a EC nº 26/85 constituiu um peculiar ato constitucional, não tendo, contudo, natureza própria de emenda constitucional, tratando-se, na verdade, de ato político que rompeu com a Constituição anterior, dela não fazendo parte, material ou formalmente.

Por fim, entendeu que a EC nº 26/85 “muito se aproxima de um modelo de revisão total instaurado pela própria ordem constitucional, sem maiores rupturas do ponto de vista histórico político”.

Essa revisão total corresponderia a um modelo intermediário entre poder constituinte e poder de reforma, disciplinada juridicamente, de modo a ampliar os limites de reforma de modo a acompanhar o desenvolvimento constitucional. Seria uma substituição legítima de uma ordem constitucional por outra. Aqui, haveria identidade entre poder constituinte e constituído, um legítimo processo constituinte sob a roupagem de um processo de revisão, com a imprescindível participação efetiva do titular do poder constituinte, o povo, seja por meio de referendo ou plebiscito.


5. Conclusão

Com base na teoria do poder constituinte de Sieyès e do poder constituinte evolutivo, defendido por diversos autores, como Vital Moreira, é possível constatar que a EC nº 26/85 não é obra de nenhum dos dois. Não é obra sequer dos poderes constituídos na época, no caso o Congresso Nacional, tal como previsto pela CF/67.

A referida emenda não pode, como defendeu o Ministro Eros Grau, ser considerada norma-origem, instauradora da nova ordem jurídica, haja vista que o parâmetro normativo, na época, para o controle de constitucionalidade, ainda era a CF/67. Não havia sido instalada, pelo menos até 1988, uma nova ordem de valores.

A EC nº 26/85 também não tem natureza jurídica de emenda, pois não reformou a CF/671. Deste modo, o Congresso, no ato de sua promulgação, não atuou como um dos poderes constituídos.

O Congresso Nacional, ao aprovar o aludido ato normativo constitucional, também não atuou como pode constituinte evolutivo, tendo em vista não ter alterado o procedimento de reforma da CF/67, em uma espécie de dupla revisão.

O que ocorreu foi a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte, poder constituinte, por meio de ato normativo denominado de emenda, mas que não possui esta natureza jurídica. A emenda foi apenas o instrumento político utilizado para definir o agente do poder constituinte.

Também não era poder constituinte, pois o Congresso que promulgou a EC nº 26/85 não era o mesmo que elaboraria a CF/88.

Do mesmo modo não pode ser entendida como revisão total, nos termos defendidos pelo Ministro Gilmar Mendes, principalmente pela ausência de participação popular, contemplada pelo substitutivo apresentado pelo Deputado Federal Flávio Bierrenbach, mas excluída pelo substitutivo apresentado pelo Deputado Valmor Giavarina e aprovado pelo Congresso Nacional.

Ademais, não se tratou de um processo de transição política legítima, mas de uma imposição do regime militar, considerando o fato de que o povo brasileiro não consentiu com a eleição indireta do Presidente da República em 1985, em que o candidato à Vice, até pouco tempo, era presidente da ARENA e do PDS, aliado dos militares. O povo brasileiro queria eleições diretas.

Enfim, o Congresso Nacional atuou apenas como o agente político que, representando o povo, convocou o poder constituinte. Com ele não se confunde nem se identifica.


7. Referências bibliográficas

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Nota

1 O artigo 5º, que alterou o texto alínea “c” do § 1º do art. 151. da CF/67, que tratava de inelegibilidades – desincompatibilização, não retira a natureza singular da EC nº 26/85, haja vista tratar de aspecto relevante na época para a eleição da Assembléia Nacional Constituinte.

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Sobre o autor
Ismael Evangelista Benevides Moraes

Procurador Federal. Especialista em Direito Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Ismael Evangelista Benevides. Emenda Constituicional nº 26/1985, à Constituição Federal de 1967: manifestação do Poder Constituinte ou Evolutivo?: Uma análise a partir dos votos dos Ministros Eros Grau e Gilmar Mendes no julgamento da ADPF nº 153. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3665, 14 jul. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24932. Acesso em: 19 abr. 2024.

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