2. A INACABADA TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA
2.1. A América Latina e a eclosão de ditaduras militares
Sob a bandeira do combate ao comunismo diversas ditaduras emergiram na América Latina. Todavia, apesar de possuírem em comum o governo sob a égide militar, cada Estado possui a sua particularidade, razão pela qual subsiste, apesar do crescente interesse sobre os considerados anos sombrios, uma escassez doutrinária histórica, de cunho descritivo, sobre tal momento histórico, que seja pautada pela imparcialidade.
Uma importante obra que retrata o contexto e principais acontecimentos na América Latina durante os anos ditatoriais é o livro de Eduardo Galeano: Veias Abertas da América Latina. Em sua obra, o autor utiliza-se da ótica marxista e indica como causalidade para todo o malefício de que é acometida a América Latina a utilização do modelo de acúmulo do capital, para o qual os países desenvolvidos, em especial os Estados Unidos da América, precisam extrair toda a riqueza continental a fim de “alimentar” seu mercado, em uma verdadeira antropofagia econômica, cultural e ideológica que, ao contrário do movimento brasileiro não busca somar culturas, e sim e a exploração de forma parasita.
Nesse contexto, defende Galeano48 que,
a luta de classes não existe - decreta-se -, mais que por culpa dos agentes forâneos que a fomentam; em troca existem as classes sociais, e se chama a opressão de umas por outras de estilo ocidental de vida. As expedições criminosas dos marines têm por objetivo restabelecer a ordem e a paz social, e as ditaduras fiéis a Washington fundam nos cárceres o estado de direito, proíbem as greves e aniquilam os sindicatos para proteger a liberdade de trabalho. Tudo nos é proibido, a não ser cruzarmos os braços? A pobreza não está escrita nos astros; o subdesenvolvimento não é fruto de um obscuro desígnio de Deus. As classes dominantes põem as barbas de molho, e ao mesmo tempo anunciam o inferno para todos. De certo modo, a direita tem razão quando se identifica com a tranqüilidade e a ordem; é a ordem, de fato, da cotidiana humilhação das maiorias, mas ordem em última análise; a tranqüilidade de que a injustiça continue sendo injusta e a fome faminta.
Assim, apesar da obra em análise ser considerada um clássico, o autor demonstra adotar um método absolutamente parcial em descrever o contexto histórico da América Latina, destoando-se das demais, apenas no que tange à qualidade técnica e o espírito desbravado.
Destarte, as demais obras que narram o período objeto da presente análise, além de também possuírem um caráter tendencioso (seja esquerdista ou da direito), geralmente são adstritas a algum Estado ditatorial em específico, tendo em vista que inexistiu homogeneidade na ditadura implantada na América Latina, apesar dos fatores estruturantes se assemelharem.49
É de bom alvitre que, mesmo se tratando de obras com cunho narrativo histórico, é inexorável uma análise de cunho valorativo ideológico realizada pelo seu autor. Contudo, o que se critica in casu é o autoritarismo literário e histórico que propõem como única verdade a aceitação de suas teorias, impondo uma hialina e arbitrária absorção de doutrinas e ideias pessoais que, per sí, também geram a alienação dos seus leitores.
Nessa mesma perspectiva, Leandro Konder50, em seu livro A Questão da Ideologia, aduz que as dificuldades conceituológicas advêm da multiplicidade de fatores nos quais estão inseridos os indivíduos e de onde são extraídas as idéias, afirmando que,
(...) segundo Hegel, temos uma grande dificuldade para realizar o “esforço do conceito”, isto é, para superar a percepção imediata, para ir além da estreiteza do horizonte do empirismo, no qual a multiplicidade das árvores (cada uma com sua singularidade) nos impede de enxergar a floresta.
Superada essa questão terminológica doutrinária, cumpre salientar que, além do Brasil, que será trabalhado mais adiante, a América Latina presenciou duas emblemáticas ditaduras militares: argentina e chilena.
Na Argentina a repressão militar teve início em momento anterior ao próprio golpe que ocorreu apenas no ano de 1976, iniciando-se nos anos 30, com uma intensificação desde a presidência do General Juan Carlos Onganía (1966-1973), no qual a repressão cultural era notória e a execução de guerrilheiros esporádica, mas existente, como no caso do “massacre de Trelew” no ano de 1972. Em tal contexto histórico, houve o retorno do peronismo ao cenário governamental, com a constante atuação das forças armadas.
O governo de Péron, apesar de haver instituído o Programa de Reconstrução e Libertação Nacional de 1973 não conseguiu conter por muito tempo a inflação que, adicionada a uma queda significativa das exportações originou substituição dos movimentos políticos pelo uso da violência e o posterior golpe militar em 1976, embasado na “Doutrina da Segurança Nacional”, a mesma que, anteriormente ensejou a ditadura militar em países como o Chile, Brasil e Paraguai, com o suposto intuito de manter a ordem social.
Após a morte de Péron, sua segunda esposa e também sua vice, Maria Estela, governou influenciada pelos militares e autorizou a Operação Independência, objetivando extirpar da sociedade argentina os comunistas. Em tal período, segundo dados colhidos por Deusa Maria de Souza no XXIV Simpósio Nacional de História em 2007 existiram 30 mil (trinta mil) entre mortos e desaparecidos, uma das razões que deram suporte fático para a implementação de medidas duramente repressivas e ilegais, com o intuito de recuperar a ordem pública.51
Percebe-se, de modo semelhante, que um dos fatos, mas não o preponderante, que ensejaram implementação da ditadura militar no Brasil ocorreu em razão da insatisfação militar e civil com os rumos do governo de João Goulart que não conseguiu implementar políticas no sentido de acompanhar as transformações do modelo capitalista vigente.
Nesse contexto, os capturados, desaparecidos e mortos na Argentina eram taxados como delinqüentes e terroristas ou esquerdistas, devendo ser extirpados do seio social, em consonância com o período ditatorial brasileiro implementado desde o golpe militar de 1964 e acentuado após a edição do Ato Institucional n.º 5, responsável pela eclosão das guerrilhas urbanas e rurais, dentre estas, destacando-se a guerrilha do Araguaia, que será pormenorizada nos próximos tópicos.
Noutro giro, enquanto estava em ascensão a ditadura militar brasileira, argentina e chilena, encontrava-se estabilizado politicamente, desenvolvendo-se social e economicamente no governo de Allende52, conhecido pela política da “via chilena”, na qual fornecia asilo político aos exilados das ditaduras deflagradas na América Latina.
O governo de Allende possuía um caráter socialista e implementou diversas medidas com o intuito de favorecer a economia e fomentar o estado de bem estar social. Para tanto, realizou diversas estatizações de empresas privadas, inclusive pertencentes a outros países, razão pela qual o Chile foi o sujeito passivo de um bloqueio econômico internacional criado pelo governo norte-americano. Não bastasse a influência externa contrária ao seu governo, o Congresso Nacional chileno era composto, em sua grande maioria, por políticos opositores, que realizaram um bloqueio às reformas orçamentárias pretendidas pelo Presidente.53
Destarte, tais bloqueios provocaram uma crise governamental de caráter econômico e político, fato que gerou a fragilização do governo e o progressivo fortalecimento do setor militar, culminando no golpe liderado pelo então ministro militar, Pinochet, que exigiu a renúncia do então presidente Allende, que morreu em 1973. A partir de então Pinochet exerceu de forma autoritária o governo chileno, sendo, posteriormente, nomeado presidente em uma absoluta concentração de poder.54
O governo de Pinochet, objetivando manter a Doutrina de Segurança Nacional” (DSN), a unidade nacional, bem como o combate ao comunismo, foi marcado pela absoluta repressão, na qual eram executados no “Estádio da Morte” todos os indivíduos contrários ao regime imposto. Nesse cenário político, evidencia-se a repressão aos meios de comunicação, e ao mesmo tempo as produções literárias e musicais de hinos à liberdade, como citado por Palominos55, para o qual,
A fines de los años sesenta, la Nueva Canción Chilena integró un “nuevo elemento” a la música popular folclórica: el mensaje. Acompañadas de instrumentos autóctonos del folclor latinoamericano, como el charango, las quenas, el cuatro, el tiple, estas canciones empezaron a hablar de penetración imperialista, de injusticias, de censura, de violencia contra los trabajadores, tcétera.
Assim, tanto no Chile, quanto no Brasil56, a repressão militar era combatida e censurada pelos produtores de arte e entretenimento, através das suas obras. Portanto, no Brasil foi criada a Divisão de Censuras de Diversão Pública (DCDP), responsável pela prévia análise das obras e músicas que se pretende publicar.
Importa salientar que foi no governo Pinochet que se originou a “operação condor”, responsável pela articulação e serviço de inteligência entre os militares na América Latina, com fito de combater o comunismo e os comunistas.
2.2. O golpe de 1964 no Brasil e a legitimação do Governo Militar
A abordagem propriamente histórica do período ditatorial castrense brasileiro é recente57, tendo em vista que os acontecimentos durante tal período foram narrados primeiramente sob uma ótica mais direcionada à Ciência Política, com a politologia. Posteriormente, o gênero memorialístico passou a se sobressair, no qual era constituído um conjunto de versões sobre a ditadura militar, narrados principalmente por membros do Exército.
Duas correntes históricas destacam-se quando o fato analisado diz respeito ao golpe militar de 31 de março de 1964, no que tange a sua causalidade adequada. São elas: a) corrente marxista, que indica como fator primordial para a eclosão do golpe o caráter econômico, que possui como significativo expoente Jacob Gorender e b) a corrente moderna, que preza pela neutralidade do historiador, e aduz que o golpe militar foi causado pelos próprios militares que realizaram o golpe em causa própria.58
Destoante das demais, todavia mais factível, é a análise feita por Gláucio Ary Dillon Soares, para o qual o golpe dos militares teve como fatores preponderantes I) motivação econômica; II) eclosão de regimes militares na América Latina; III) militarista em essência, independente do apoio recebido. Logo, tratou-se de uma conspiração militar com o apoio dos grupos econômicos brasileiros e não o contrário, no qual os militares preocupavam-se com a má gestão administrativa e a desordem pública, o perigo da esquerda no geral, bem como o desrespeito à hierarquia militar.
Durante o período ditatorial existiram duas espécies de censura, quais sejam: censura de imprensa e das diversões públicas. A primeira era tida como “revolucionária” nos termos de Carlos Fico, ou seja, não havia qualquer respaldo legal para a sua validade, atingindo o seu ápice de efetivação durante o auge da repressão. Por sua vez, a segunda era legalizada e objetivava a proteção da “moral e dos bons costumes”, sendo praticada por funcionários especialistas. Esta última modalidade de censura era direcionada aos produtores de arte em geral, bem como aos jornalistas e teve como momento de apogeu nos final da década de 70, durante a fase de “abertura” do regime político.59
Depreende-se dos atuais textos históricos que, na realidade, antes mesmo de 1968 já havia a prática recorrente de torturas e censuras implementadas pelos militares aos subversivos. Outro ponto destacado por Carlos Fico é que tanto os generais e oficiais quanto os militares da mais baixa patente possuíam a responsabilidade pelas torturas e homicídios políticos, bem como o fato de que os militares não constituíam uma massa homogênea, uma vez que, na visão dos próprios militares, o golpe decorreu de uma “conspiração desarticulada”, conforme afirma Jacob Gorender, citado por Fico.60
Assim, a real causalidade do golpe militar de 1964 possui aspectos macroestruturais ou micrológicos, tendo em vista que foi impulsionado pela transformação e amadurecimento do capitalismo, inserido no governo frágil e instável de João Goulart, no qual havia uma inegável índole golpista crescente entre os militares e civis, fomentada pela propagando anticomunista anterior ao próprio contexto golpista.
Demonstrava-se crescente as duas dimensões estruturais dos militares durante a ditadura: a “utopia autoritária” e a ótica pedagógica. Enquanto o primeiro aspecto era exercido através da polícia política, espionagem e censura, eliminando e neutralizando os comunistas e simpatizantes a fim de manter a estabilidade governamental; a ótica pedagogia, por sua vez, era praticada pela Aerp – Assessoria Especial de Relações Públicas – criada pelos militares “linha dura” que assumiram o leme governamental a partir do final e 1968.
Tais dimensões eram unificadas na Comissão Geral de Investigação, que possuía a função saneadora proposta pela “utopia geral”, bem como educativa, exercida através de “ações catalíticas”61 com intuitos intimidadores, ao passo que a Aerp pretendia disseminar uma atmosfera harmoniosa e de civilidade nacionais.
Nesse contexto, após a solidificação do golpe, o papel exercido pela Aerp foi profissionalizada, objetivando a canalização do otimismo disseminado na população através do “milagre brasileiro”, criando um consenso nacional em torno do regime ditatorial, responsável pela sua legitimação nacional, contagiando a população com a idéia de profundo desenvolvimento econômico, com crescimento nacional em torno de 11% ao ano, e o consequente aumento da taxa de consumo originado pelo maior poderio econômico da classe média.
Por sua vez, Renato Lemos62, em sua obra Justiça Militar e processo político no Brasil (1964-1968) ensina que o maior desafio do período em tela foi a pretensão de “conciliar a formalidade de estruturas democráticas com práticas e inovações institucionais consideradas necessárias à implantação de novas formas de dominação política”, utilizando-se da edição dos Atos Institucionais como meio de neutralização e controle dos setores da sociedade, bem como o meio de funcionamento dos partidos políticos.
Os Atos Institucionais editados pelos dois primeiros presidentes, Castelo Branco e Costa e Silva possuíam aspectos reformistas, demonstrando uma preocupação em legitimar e embasar, através da ênfase legal e preservação do Poder Judiciário (mesmo de forma mitigada), os atos praticados durante o período ditatorial, em uma evidente constitucionalização formal da repressão.
É exatamente essa constitucionalização formal que se depreende do Ato Institucional n.º 1, editado pelo “Comando Supremo da Revolução”, dispondo em seu bojo que “fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação”.63 A partir de então, era permitido aos membros legitimados pela ditadura cassar mandatos, suspender direitos políticos, intervir em sindicatos, expurgar militar e efetuar prisões, iniciando com a política de neutralização aos opositores do regime ora imposto.
Por sua vez, o Ato Institucional n.º 2 foi editado em outubro de 1965, com o intuito de extinguir todos os partidos políticos, conforme seu artigo 1864, passando a existir um bipartidarismo legal, com a criação dos partidos Arena (Aliança Renovadora Nacional) e MDB (Movimento Democrático Brasileiro). Foi ampliada de forma ilimitada a discricionariedade administrativa do Executivo, permitindo que este feche o Congresso Nacional, em nítida mácula ao princípio da separação dos poderes; tornou indiretas as eleições para Presidente da República e ampliou a competência da Justiça Militar, cabendo a ela também julgar civis.
Destarte, prosseguindo com a “doutrina da segurança nacional” o regime militar ditatorial atinge o seu apogeu com a outorga da Constituição Federal Brasileira de 1967, a edição da Lei de Segurança Nacional, bem como a Lei de Imprensa. Tal contextualização permitiu que fosse editado o Ato Institucional n.º 5 em 13 de dezembro de 1968 responsável por suspender o habeas corpus para crimes políticos, a suspensão dos próprios direitos políticos, nos termos do artigo 5º do Ato65, afirmando-se que, com o intuito de manter o status quo militaresco, é cabível ao “Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.”
Conforme ensina Rodrigo Santa Maria Coquillard Ayres,66 “o endurecimento da ditadura miliutar, dialeticamente, provocou a radicalização da resistência”, uma vez que, toda e qualquer manifestação passou a ser reprimida pelos militares da ditadura. Assim, os que se rebelavam contra o sistema vigente de forma pacífica eram torturados, subsistindo unicamente, como forma de resistência ao regime, as guerrilhas armadas e organizadas, em sua maioria, por dissidentes dos partidos políticos extintos.
Tais guerrilhas eram anteriores à edição do AI-5, todavia, foi posteriormente a ele que tais movimentos tornaram-se evidentemente mais radicais e presentes, cujo intuito era a extinção do regime autoritário legitimado em si mesmo. Portanto, conforme preleciona Lenio Streck: “consequentemente, era lícito lutar contra o establishment”67
2.3. A guerrilha do Araguaia
Após o Golpe de 1964, especialmente a partir em 1968, os militares comunistas passaram a viver de forma clandestina, figurando na lista dos inimigos do Estado ditatorial castrense,68 momento em que os partidos políticos de esquerda desempenharam papel fundamental como força de resistência à repressão. Assim, as guerrilhas, conforme dito anteriormente, tornaram-se a única forma possível de resistência ao regime imposto.
Em meados de 1966 membros do Partido Comunista Brasileiro começaram a organizar um grupo de resistência rural à ditadura militar, objetivando manterem-se em segurança, tendo em vista que estavam sendo duramente perseguidos pelos militares. O local escolhido foi a região conhecida como Bico de Papagaio, localizada á margem esquerda do rio Araguaia, no sul do estado do Pará.69. Liderados por Maurício Grabois, um dos expulsos da Escola Militar do Relâmpago, no Rio de Janeiro, protagonizou a Guerrilha do Araguaia ocorrida no entorno de Marabá.
Em 1972, cerca de 90 (noventa) pessoas formavam o grupo, entre militantes do PCdoB e camponeses que foram para aquela região e, entre os anos de 1972 e 1975 as Forças Armadas brasileira realizaram nove investidas no sul do estado do Pará, exterminando a guerrilha, com aproximadamente 4.000 (quatro mil) agentes, dentre os quais era uma prática corriqueira as detenções arbitrárias, torturas, execuções e desaparecimento forçado contra os guerrilheiros e agricultores que ali habitavam.
Declarações feitas pelo major Curió, que teve participação no caso da Guerrilha do Araguaia, confirma o extermínio dos guerrilheiros ao dispor que “estavam de armas nas mãos na hora em que tombaram (...) muitos se entregaram nas casas de moradores da região ou foram rendidos em situações em que não ocorreram disparos”. Com relação às três campanhas realizadas pelos militares na perseguição dos guerrilheiros, Curió fala que “até o meio da terceira campanha houve combates. Mas, a partir do meio da terceira campanha para frente, houve uma perseguição atrás de rastros. Seguíamos esse rastro duas, três semanas. A terceira campanha é que teve o efeito que o regime desejava”. 70
Cumpre ainda registrar que em depoimento prestado ao representante do Ministério Público Federal, o ex-oficial da Aeronáutica Pedro Corrêa Cabral, no ano de 1974, cerca de 70 (setenta) pessoas, entre militares e camponeses haviam desaparecido em uma verdade “operação limpeza”, dentre os quais, mais da metade haviam estado na custódia estatal antes de serem executados.71
2.4. A edição da Lei n.º 6683/1979 – Lei de Anistia
Em 1974 assume a presidência da república Ernesto Geisel, cujo governo foi marcado pela revogação do AI-5, anunciando-se uma lenta e gradual abertura política, na qual o governo reprimiu os últimos focos de resistência, não havendo qualquer guerrilha ou grupo organizado remanescente que pudesse oferecer se impor ao regime em questão, uma vez que os artistas e ativistas políticos perseguidos pela ditadura que permaneciam vivos, estavam exilados em outros países ou encarcerados pelo regime.
Foi nesse contexto histórico que emergiram manifestações populares em favor da anistia para os presos e exilados políticos em virtude da oposição à ditadura castrense, ou seja, o apoio popular, externado por diversos setores sociais, como a Igreja Católica e o Movimento Feminino pela Anistia pretendiam que as vítimas do regime imposto pudessem reencontrar seus familiares ou investigar seus desaparecimentos, no sentido de que todos eles fossem beneficiados pela anistia de forma ampla, geral e irrestrita.
Logo, inexistiu vontade popular no que tange à bilateralidade da anistia pleiteada e promulgada nos moldes atuais, conforme depreende-se do texto de Rodrigo Santa Maria Coquillard Ayres que,
ser “ampla, geral e irrestrita” significava beneficiar a todos os perseguidos pela repressão, sem fazer distinção pelo tamanho da pena aplicada, pelo número de condenações ou por qualquer outro critério. A reinvidicação era clara: anistia para todos os presos políticos, contemplando todos que foram afetados pelos atos de exceção.
Assim, não se deve olvidar que a elaboração da Lei de Anistia ocorreu em um contexto no qual a capacidade para propor projeto legislativo com cunho de anistiar indivíduos era atribuída de forma exclusiva ao Presidente militar, com processo legislativo no Congresso Legislativo que era, por sua vez, constituído por membros dos dois únicos partidos políticos legais – Arena, MDB – dentre os quais os senadores biônicos72 constituíam um terço dos parlamentares.
Em 28 de agosto de 1979 foi publicada a Lei n.º 6.683, conhecida como Lei de Anistia que possui como característica preponderante insculpida em seu artigo primeiro, ser considerada uma “autoanistia”, ou seja, advinda de um regime autoritário que pretende permitir e controlar uma abertura política nacional, mas com a devida garantia de que os agentes a serviço da ditadura militar não fossem sujeitos passivos da persecução penal brasileira, em virtude dos crimes cometidos durante os anos do regime autoritário.
É exatamente esse o disposto no referido artigo 1º da Lei de Anistia, in verbis:
Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.
Ante o exposto, evidencia-se de forma inexorável que a Lei n. 6.683/1979 não reflete os anseios populares que representam o próprio requisito de validade da norma, ante a ausência de legitimidade da sua criação, razão pela qual sua validade sempre foi questionada enquanto norma. Todavia, fomenta-se desde a promulgação da Constituição Federal em 1988 a sua não recepção com tal Carta, em decorrência da incompatilidade material entre a norma infralegal que, pelos motivos retro, desrespeita hialinamente os direitos humanos tutelados inseridos no artigo 5º da Constituição atual.
2.5. O processo de redemocratização no Brasil
Conforme preleciona Flávia Piovesan73, o contexto latino-americano é demarcado pelo término do regime ditatorial e o lapso temporal da transição política aos regimes democráticos advindos do término das ditaduras militares na década de 80, na Argentina, Chile e Brasil. Assim, o próprio conceito de justiça de transição surgiu com o início do estabelecimento das democracias.
É justamente no contexto retro que o sistema interamericano torna-se profícuo instrumento garantidor da proteção dos direitos humanos no sistema regional, enquanto as instituições nacionais ainda demonstram-se omissas e falhas.
Com espeque na atuação da Corte Interamericana no que concerne ao processo de transição, destaca-se o caso Almonacid Arellano versus Chile, cuja pretensão é que se declarasse de caráter perpetua a validade do Decreto-Lei n.º 2.191/1978. Tal legislação perdoava os crimes praticados durante o regime Pinochet, entre os anos de 1973 e 1978.
A referida Corte manifestou-se, de forma unânime, no sentido da invalidade do decreto-lei retro, tendo em vista que são imprescindíveis: I) investigação, II) processamento da ação e III) punição dos devidamente condenados por prática de crime contra lesa-humanidade, conforme Secretário Geral da Organização das Nações Unidas74, para o qual,
en consecuencia, dada su naturaleza, El Decreto Ley 2.191/1978 carece de efectos jurídicos y no puede seguir representando um obstáculo para lainvestigación de los hechos que constituyen este caso, ni para La identificación y El castigo de los responsables, ni puede tener igual o similar impacto respecto de otros casos de violación de los derechos consagrados em La Convención Americana acontecidos em Chile.
É justamente nesse contexto internacional favorável à abertura política interna que em 05 de outubro de 1988, Augusto Pinochet perdeu o plebiscito proposto com o intuito de permanecer na presidência por mais 08 (oito) anos em uma nítida tentativa de projetar a ditadura ora vigente no processo de redemocratização desencadeado por tal fracasso político ocorrido em 1988.
O período de transição chileno desenvolveu-se de forma meticulosa pelo regime militar, muito embora tenha sido modificado em parte pelos opositores. Tal momento possuiu três protagonistas que negociaram as reformas constitucionais aprovadas no plebiscito de 30 de julho de 1989, quais sejam: I) Renovación Nacional, grupo de direito; II) Ministro do Interior Carlos Cáceres, representando o próprio governo e III) Concertación de Partidos por Ia Democracia, representando a oposição organizada que traçavam dialeticamente as discussões acerca de três temas centrais a todo processo de transição: I) garantias para as Forças Armadas e II) término das exclusões políticas a fim de que seja permitida a participação de todos os atores e partidos políticos.
Para a oposição, o processo de transição representou um duplo75 significado: I) resguardar um primeiro governo democrático majoritário, lançando um candidato à presidência comum e II) um programa que assegurasse a completa transição em termos institucionais, extirpando os “enclaves autoritários”76.
Mesmo com o primeiro governo eleito de forma democrática, o período de transição possuiu “enclaves autoritários” remanescentes do período ditatorial representados, principalmente, pela presença de Pinochet na esfera política e sua influência perante as Forças Armadas.
A consolidação da democracia chilena se deu com o destaque da Concentración e sua capacidade de manter sua unidade, geradora de duas forças políticas: criação de novas instituições que garantam a perpetuidade de regimes democráticos; alargar a capacidade de participação social nos processos constante de democratização em três dimensões: Estado, partido e atores sociais.
Noutro giro, o período de transição ocorrido no Brasil, conforme demonstra Flávia Piovesa77, muito se assemelhou com o implementado na Argentina, tendo em vista que estes países adotaram a anistia como supedâneo para a redemocratização nacional, sendo que na Argentina foi denominada de Lei do Ponto Final – Lei n.º 23.492/1986 – e Lei de Obediência Devida – Lei n.º 23.521/1987, enquanto no Brasil foi denominada de Lei da Anistia – Lei n.º 6.683/1979 e ambos os países adotaram novos marcos normativos constitucionais; conferem de forma expressa em suas Cartas Magnas um status privilegiado aos tratados78.
O objetivo perpetrado na edição das Leis do Ponto Final e de Obediência Devida foi o de anistiar os oficiais de média e baixa patente, fundamentando-se no fato de que estes são os responsáveis pela ordem social. Depreende-se, todavia, que o cerne teleológico da norma foi o de expurgar as imputações criminais atribuídas aos membros basilares da ditadura militar.
A primeira análise que a Corte Suprema argentina realizou acerca da validade das normas em comento, esta decidiu no sentido de que “resultavam de uma ponderação dos interesses em jogo, exclusiva do poder político, e que, como tal, deveriam ser acatados pelo Poder Judiciário.”79
Por conseguinte, a aludida Corte Suprema julgou em 2005, no caso Simón, Héctor e outros, pela anulação das Leis do Ponto Final e De Obediência Devida, reconhecendo de forma expressa que: “A jurisdição da Corte Interamericana deve servir de guia para a interpretação dos preceitos convencionais, sendo uma imprescindível diretriz de interpretação dos deveres e das obrigações decorrentes da Convenção Americana”80
No que tange ao direito à verdade, no início de 2010, o presidente da Argentina decretou a inexistência de sigilo dos arquivos confidenciais referentes à atuação das Forças Armadas durante o período ditatorial compreendido entre os nos de 1976-1983, uma vez que tal confidencialidade teve como intuito a ocultação ilegal de atos arbitrários do governo ditatorial que são incompatíveis com um Estado Democrático.81
Por oportuno, conclui-se após essa breve análise do período de transição argentino que a Corte Interamericana, por si só, mas utilizando-se de fundamentos internacionais proveniente da Corte Suprema Argentina, declarou a “invalidade” das normas em descortino, uma vez que são contrárias aos parâmetros protetivos internacionais, destacando-se o sistema regional da América Latina, em uma evidente realização da justiça de transição.
Por fim, imperiosa uma análise acerca da forma de transição ocorrida após o período de 1964-1985 no Brasil, período marcado por cerca de 150 (cento e cinqüenta) pessoas desaparecidas, 100 (cem) homicídios e 30.000 (trinta mil) casos relatados de tortura.82
Conforme dito anteriormente, o período de transição entre o regime ditatorial e a redemocratização teve como ponto crucial a edição da Lei de Anistia, que foi interpretada pelo Supremo Tribunal Federal no sentido de que tal diploma legal assegurou anistia ampla, geral e irrestrita, devendo ser aplicada tanto às vítimas, quanto aos membros do regime militar que atuaram em seu favor.
Assim, para o Supremo Tribunal a Lei de Anistia é válida em todos os seus termos, tendo em vista que houve um “grande pacto social” entre a sociedade e o governo castrense que assegurou a ordem pública e a lenta e gradual abertura política implementada principalmente no Governo Figueiredo (1979-1985). Assim, representaria uma grave lesão à tripartição dos poderes o envolvimento do Poder Judiciário em ato típico do Poder Legislativo, cabendo unicamente a este realizar qualquer alteração na Lei de Anistia.
Percebe-se, por oportuno, que tal tese proferida pelo maior intérprete constitucional na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 153, no ano de 2010, representa um hialino retrocesso na esfera de proteção ao Direito dos Direitos Humanos, tendo em vista que o Supremo Tribunal conferiu legitimidade a uma lei com características desumanas e indignas, editada de forma unilateral, pois, o pacto a que o Supremo se refere caracteriza-se como um sofismo, ante as manifestações contrárias à referida autoanistia ocorridas da sua edição, a exemplo do Dia Nacional de Repúdio ao projeto de Anistia nos termos pretendidos pelo governo.
Nesse sentido, percebe-se que a redemocratização brasileira, ao contrário do que ocorreu no Chile e na Argentina, aconteceu de forma parcial, direcionada e com a inexistência de uma real justiça de transição, uma vez que esta teve início a partir de uma lei de autoanistia que foi convalidada pelo Supremo Tribunal Federal.