Resumo: O presente trabalho monográfico investiga o fundamento, o conteúdo e as implicações das previsões envolvendo a responsabilidade institucional do Magistrado no Código Ibero-americano de Ética Judicial, notadamente no âmbito do Direito Brasileiro. Aprecia, um a um, os arts. 41 a 47 de tal diploma normativo, e avalia, de modo pragmático, eventuais casos concretos a serem vividos não só pelo Juiz, enquanto pessoa, mas pelo próprio Estado-Juiz. Defende o apego de ambos à ciência do Direito, sem se esquecer, contudo, de aspectos ontológicos que são, muitas vezes, externos à lide ou ao próprio ofício do Juiz. O estudo propõe critérios para condutas institucionalmente éticas do Poder Judiciário, seja no seu labor típico (jurisdicionar), seja na sua faceta política, cada vez mais ampliada (ativismo judicial).
Palavras-chave: responsabilidade institucional; ética da magistratura.
ABSTRACT: The present thesis aims to investigate the foundation, the content and the implications of the prevision involving institutional liability of the Magistrate in the Iberian-American Judicial Ethics Code, notably within the scope of the Brazilian Law. It contemplates, one by one, the articles 41 to 47 of such normative diploma and pragmatically evaluates eventual concrete cases to be experienced not only by the Judge, as a person, but by the very Judge-State. It advocates the addiction of both to the Science of Law, without forgetting, however, ontological aspects that are often external to the litigation or to the Judge’s very occupation. This study offers criteria to institutionally ethical conducts of the Judiciary, either in its typical labor (to dictate the law), or in its political facet, each time more amplified (judicial activism).
Key-words: institutional liability, ethics of the judiciary.
Sumário: INTRODUÇÃO. 1. RESPONSABILIDADE INSTITUCIONAL E ÉTICA JUDICIAL. A ABSORÇÃO DA ÉTICA EM NORMAS ESCRITAS E TENDÊNCIAS. 2. A FUNÇÃO TÍPICA DO JUDICIÁRIO DE JURISDICIONAR E O IDEAL DE RESPONSABILIDADE INSTITUCIONAL DESTE PODER-DEVER SEGUNDO O CÓDIGO IBERO-AMERICANO DE ÉTICA JUDICIAL. 2.1. ART. 41 – BOM FUNCIONAMENTO DAS INSTITUIÇÕES JUDICIAIS: CONDIÇÃO SEM A QUAL O JUIZ NÃO PODERÁ DESEMPENHAR DA MANEIRA ADEQUADA SUA FUNÇÃO. 2.2. ART. 42 – CONCEITO DE “JUIZ INSTITUCIONALMENTE RESPONSÁVEL”. 2.3. ART. 43 – DEVER DO JUIZ EM PROMOVER O RESPEITO E A CONFIANÇA NA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA. 2.4. ART. 44 – DISPOSIÇÃO DO JUIZ EM ASSUMIR/RESPONDER AÇÕES E OMISSÕES. 2.5. ART. 45 – O JUIZ COM O DEVER DE DENUNCIAR. UMA RELATIVIZAÇÃO DA INÉRCIA JURISDICIONAL? 2.6. ART. 46 – A IMPARCIALIDADE DO JUIZ NO SEIO DA PRÓPRIA JUSITÇA. 2.7. ART. 47 – O JUIZ E O DEVER DE COLABORAÇÃO PARA O MELHOR FUNCIONAMENTO DA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA. 3. CONCLUSÕES. 4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é, em geral, apreciar os caminhos que a Ética da Magistratura tem tomado, seja na esfera propriamente normativo-escrita (legislações específicas que vêm sendo construídas em diversas profissões), seja na conversão desses deveres abstratos, na vivência do Direito em sua fragmentada e viva circunstancialidade cultural. Em específico, a presente monografia busca contemplar a chamada “responsabilidade institucional” do Judiciário, segundo o que consta nos arts. 41 a 47 do Código Ibero-americano de Ética Judicial, registrando alguns fenômenos que vêm ocorrendo no âmbito da Magistratura, notadamente no século XXI, que registra, cada vez mais, uma politização do Judiciário. Esse “avanço”, contudo, não pretende (nem deve) ser visto como um passo contra a maré democrático-ocidental. Bons exemplos não faltam, aliás, para evidenciar que o Poder Judiciário tem conseguido atrelar as previsões de índole ética com esses “novos avanços” em seu próprio seio. É claro que a chamada “responsabilidade institucional” não reside fora do próprio ofício do Juiz, conforme será demonstrado com mais profundidade, com o invocar de alguns exemplos do próprio cotidiano forense (p. ex.: execução cível e “efeitos externos da lide”, no caso da penhora). A razão do estudo reside no simples fato de o Direito ser uma ciência, daí merecendo – em cada uma de suas profissões – aprofundamentos próprios, uma vez que a vasta particularidade de cada uma delas (Advogado, Juiz, Promotor de Justiça etc.) demanda, sim, enfrentamentos ontodeontológicos.
Quanto à metodologia escolhida, foi eleita, essencialmente, a pesquisa bibliográfica geral e específica, que foi toda apreciada de modo a dialetizar as previsões do Código Ibero-americano de Ética Judicial com o Direito Brasileiro.
Estes escritos se dividem em três capítulos, sendo o terceiro deles uma conclusão articulada de todos os tópicos abordados. O primeiro tópico correlaciona a própria responsabilidade institucional com a Ética Judicial, registrando as tendências em normatizar de forma escrita os paradigmas ético-jurisdicionais e ético-jurídicos. O segundo se dedica, primeiro, em lançar o leitor ao pensamento de que a Ética Judicial, e sua respectiva responsabilidade, deve sofrer pontos de vista que extrapolam o próprio ofício do Magistrado, abarcando, assim, pontos relevantes do ativismo judicial e do Judiciário enquanto Poder Político. Há sete subcapítulos que carregam, em si, a tarefa de apreciar, um a um, os arts. 41 a 47 do Código Ibero-americano de Ética Judicial, voltando a discussão, assim, à responsabilidade institucional não só do Juiz, mas, também, do própria figura do Estado-Juiz.
1. RESPONSABILIDADE INSTITUCIONAL E ÉTICA JUDICIAL. A ABSORÇÃO DA ÉTICA EM NORMAS ESCRITAS E TENDÊNCIAS
Parece ser uma tendência, ao menos no contexto do Ordenamento Jurídico brasileiro, o fato de as profissões organizarem códigos e/ou normas escritas que abarquem todo o conteúdo de índole ética que cinge o respectivo ofício. Essa convergência é fácil de se provar com a enumeração ilustrativa de vários diplomas que vão nesse sentido: a) o Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil; b) a (já apresentada) proposta de Resolução por um Código de Ética no âmbito do Ministério Público, realizada por Adilson Gurgel Castro[1];c) o Código de Ética e Disciplina Notarial; d) o Código Ibero-americano de Ética Judicial; e) o Código de Ética da Magistratura etc.
Talvez, este apego ao que é “concreto“ (= escrito/legislado) tenha algum fundamento. Em uma entrevista para o Boletim da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), disse o Desembargador José Roberto Nalini que certos indivíduos simplesmente concluem que a Ética não é algo para ser ensinada, nem aprendida, rebatendo tallição com o seguinte argumento: “é sempre possível aplainar agruras, modelar a personalidade, assumir responsabilidade pela contínua autocorreção. Isso se faz por incessante estudo e reflexão ética”[2]. Qualquer que seja a posição escolhida, é impossível não crer que o fenômeno de “legalização da ética” não está ocorrendo.
Na verdade, todo o campo do Direito merece – parafraseando José Roberto Nalini – aplainamento de agruras, bem como incessante estudo e reflexão. Só para exemplificar, basta compararmos os votos do famoso caso fictício de Lon Luvois Fuller, em “O Caso dos Exploradores de Cavernas”. Os 2º e 3º votos, respectivamente dos Ministros J. Foster e J. Tatting são altamente oportunos do ponto de vista jurídico, mas diametralmente opostos em suas conclusões (não apenas jurídicas, mas filosóficas)[3]. Disto não escapa a Ética Judicial.
O Poder Judiciário, por sua relevante posição assumida no século XXI, não foge da observação, até pelo avanço democrático que os países ocidentais vêm experimentando com o passar dos anos (uns há mais tempo, outros mais recentemente, como o próprio Brasil, que vem sentindo, cada vez mais, os efeitos democratizantes da Constituição Federal de 1988).
Assim, é inevitável compreender que um comportamento ético por parte de um Juiz tem necessária relação de contenção com todo e qualquer princípio de âmbito democrático. Ético, agora, é o Magistrado que atua segundo ditames que podem ser divididos em subjetivos (os que se ligam essencialmente à profissão, em si, do Juiz enquanto pessoa) e objetivos (os que se ligam à Democracia propriamente dita, ao Juiz enquanto Estado-Juiz).
Uma classificação muito útil ao estudo aqui feito é a que foi elabora por Mauro Cappelletti, que aponta as seguintes responsabilidades judiciais:
A) Responsabilidade política, seja do juiz individualmente, seja da magistratura em grupo, [com] [...] dois subtipos principais: (i) responsabilidade em face dos poderes políticos; e (ii) responsabilidade constitucional.
B) Responsabilidade social, ou seja, perante o público em geral. Mesmo este tipo de responsabilidade pode referir-se tanto ao juiz como indivíduo, quanto ao judiciário no seu conjunto.
C) Responsabilidade jurídica do Estado (substitutiva), que pode ser (i) exclusiva, ou (ii) concorrentemente com a responsabilidade pessoal do juiz.
D) Responsabilidade jurídica (pessoal) do juiz, que pode ser (i) penal, (ii) civil, (iii) disciplinar. Um subtipo ulterior de responsabilidade pessoal é a “restituitória” (ou “compensatória”) do Estado, com base na qual pode o juiz ser obrigado a ressarcir o Estado, no todo ou em parte, do prejuízo por este sofrido, enquanto “substitutivamente” responsável, perante as pessoas prejudicadas pelo comportamento do próprio juiz [4].
É de suma importância salientar que os adágios éticos do Magistrado (e de várias profissões) mudaram de tempo em tempo. Uma era a ética do Juiz nos tempos pós-revolucionários de 1789. Outra é a ética do Juiz nos temposcontemporâneos. Isso fica evidente quando colhemos certas advertências que a literatura do assunto nos oferece. Paulo Gustavo Gonet Branco deixa isso evidente ao demonstrar, com muita precisão, como era o prestígio do Poder Legislativo do molde revolucionário francês de 1789, o qual adotara a fórmula de Rousseau segundo a qual “a voz do Legislativo é a expressão da vontade geral”, cujo resultado só podia ser mesmo o “prestígio do órgão, com a sua efetiva supremacia sobre os demais poderes”[5]. Isso acabou delegando, indiretamente, ao Judiciário, a tarefa de apenas “realizar a aplicação mecânica da lei, por meio de um silogismo”, de modo que qualquer controle judiciário das leis fosse algo literalmente “impensável” [6].
Fica evidente, com essa simples observação histórica, que a postura ética do Juiz terá correlação aos seus tempos. E os tempos atuais recebem os ventos da Democracia. O art. 2º do Código de Ética da Magistratura Nacional, aliás, prescreve que “ao magistrado impõe-se primar pelo respeito à Constituição da República e às leis do País, buscando o fortalecimento das instituições e a plena realização dos valores democráticos”. Embora a norma denote, justamente, aquilo que a Revolução Francesa esboçou (= mero silogismo na aplicação da Lei), é de se avisar que essa previsão se diferencia substancialmente do caso histórico, porque a “plena realização dos valores democráticos” não poderá, nunca, depender de hermenêuticas apenas apegadas à literalidade das leis. Há toda uma gama axiológica por trás da atividade do Juiz, que, agora, detém em si uma função social.
Na verdade, a evolução histórica que se observa no Ocidente tende a exibir que nem todo fundamento (em tese) jurídico – e mesmo que emanado da própria Constituição de 1988 – será sempre de índole democrática. [7][8][9]
Também ilustrativamente, nem mesmo o controle de constitucionalidade escapa de alguma crítica[10] ou da observação feita nesta altura do texto. Lembremos aqui o famoso caso Dred Scott: tal precedente “se encontra no rol das decisões mal-afamadas da história judiciária americana. A Suprema Corte disse inconstitucional lei que garantia a liberdade de negros que passassem por Estados não escravagistas. A decisão é tida como um dos estopins da guerra de secessão”[11]. Em termos essencialmente jurídicos, não se pode negar que houve um decisum judicial (talvez até fundamentado com o entendimento [absurdo...] da época). Isso seria um atuar jurisdicional ético?
Outro exemplo mais recenteque pode ser citado – sem querer entrar efetivamente no mérito –, está no impeachment de Fernando Lugo (Paraguai), que, para Peter Lambert,“foi legal, mas não foi democrático”[12].
Assim, muitos instrumentos jurídicos são apenas aparentemente democráticos, inclusive em certos aspectos da própria Constituição de 1988. Alguns pontos (mesmo que constitucionais) precisam de contornos que extrapolam a hermenêutica mais gramatical.
Os princípios jurídicos, também – desde que sem o esvaziamento de conteúdo –, são objetos que merecem análises. Andrew Arato, v. g., entende ser necessário uma busca que vá além do emprego de um modelo (ou de uma forma de organização específica) para que se pondere, efetivamente, considerações sobre os esforços da política constitucional. Para isso, também seria preciso uma superação da tendência liberal, de modo que as atenções às constituições fossem voltadas mais ao resultado substantivo, “e não aos processos de institucionalização e re-institucionalização”[13]. E uma estratégia que se coaduna com essa metodologia estaria justamente no ato de “encontrar princípios que nos auxiliem a formar uma perspectiva contratual, com soluções institucionais que tenham ajudado a alcançar a legitimidade democrática na história do constitucionalismo”[14].Comentando este aspecto da Constituição estadunidense, Andrew Arato ainda salienta sua posição particular:
a influência contínua e global do constitucionalismo americano deve-se não apenas à posição histórica pioneira e à estabilidade da Constituição americana, mas também a uma série de princípios levados realmente a sério no momento da origem, assim como nos períodos posteriores da Reconstrução. Esses princípios mantêm posições importantes nas narrativas contadas e recontadas sobre a tradição constitucional [...][15].
Uma coisa é legislar/julgar/executar com base seria nos princípios jurídicos. Outra é a invenção ou a utilização distorcida (não ética?) de uma carga dogmático-principiológica dirigida para outros fins.
Em termos essencialmente jurídicos, no campo do que é lícito ou ilícito fazer ou não fazer, não é possível extrair o que é a atuação ética do Juiz. Muitas teses parecem se voltar sempre a este ponto: “foi lícito ou ilícito um fato determinado?”.E, apesar da inegável a influência do Direito Romano,é por isto que, segundo pensamos, não é dos mais corretos os dizeres de Louis Josserand, citado por Carlos Roberto Gonçalves, no sentido de que “a teoria das obrigações está na base, não somente do direito civil, mas de todo direito, não sendo de modo algum exagerado afirmar que o conceito obrigacional constitui a armadura e o substractum do direito, e mesmo, de um modo mais geral, de todas as ciências sociais”[16].
2. A FUNÇÃO TÍPICA DO JUDICIÁRIO DE JURISDICIONAR E O IDEAL DE RESPONSABILIDADE INSTITUCIONAL DESTE PODER-DEVER SEGUNDO O CÓDIGO IBERO-AMERICANO DE ÉTICA JUDICIAL
Da exposição supra, fica evidente que o anseio social por Democracia acaba por se relacionar, inevitavelmente, com as responsabilidades institucionais de um Juiz. No Brasil, vale repetir, o art. 2º do Código de Ética da Magistratura atrelou a atividade jurisdicional à observância dos preceitos constitucionais. Tal dado acaba abrindo leque para as novas afirmações que surgem a respeito do ofício do Magistrado. Fábio Konder Comparato, por exemplo, defende ser um equívoco pensar em analisar a lide – “eticamente...” – adotando a tese de que o Poder Judiciário “não é um órgão político”[17].
Isso acaba se traduzindo (com razoabilidade, ao menos em algum sentido), num afastamento do tradicional caractere de “inércia” da atividade Jurisdicional ínsita ao Poder Judiciário. Vários exemplos desse caráter se concentram na exposição de Angela Rosi Almeida Chapper, a qual relembra que há uma nova tendência onde os Juízes Trabalhistas “lutam pelo resgate da Cidadania e da condição de agentes políticos do Estado” [18], além de atuações concretas das Associações de Juízes Brasileiros, que estão a buscar mais interações com diversos setores públicos, “criando canais de comunicação direta, não apenas com seus associados, mas com a sociedade em geral, como forma de inserir a Magistratura nos debates mais importantes da agenda social e política brasileira” [19]. E, exemplifica: a) o “Programa Trabalho, Cidadania e Justiça”; b) o Projeto “Cidadania e Justiça também se aprendem na Escola”; c) a chamada “Cartilha do Trabalhador”; d) a “Operação Eleições Limpas”; e) o “Contra a Corrupção e pela Ética na Política”; f) a “Campanha pela Simplificação da Linguagem Jurídica”, que resultou no livro “O Judiciário ao Alcance de todos: noções básicas de juridiquês”; f) a chamada “Luta contra o Nepotismo”; g) a “Campanha Nacional por um Judiciário mais Forte”; h) o “Combate ao Trabalho Escravo” etc. Esses novos ares, segundo a autora, “revelam uma postura mais ativa dos juízes brasileiros, mobilizados e preocupados com sua responsabilidade social” [20].
Não seria incoerente afirmar, destarte, que o Judiciário assumiu para si várias funções diversas (“externas”) daquela envolvendo a jurisdição propriamente dita (= o “dizer direitos...”), para, “de ofício” (observe-se as aspas), atuar perante a Sociedade (externamenteà processos propriamente ditos). Um exemplo internacional, aliás, é dado por Luiz Henrique Antunes Alochio, que demonstra como o chamado “ativismo judiciário” italiano visou combater ao terrorismo, à máfia, e à corrupção[21]. É bem verdade, porém, que tal postura acaba por confundir em um único gênero a função jurisdicional com a “nova função” do Judiciário, “externa”[22]. Ao que parece, é possível relacionar ambos os postos de modo não estanque.
No Brasil, o fenômeno pode ser explicitado, de forma bem direta e inegável, com a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), pela Emenda Constitucional nº 45/2004 (art. 92, inciso I-A, da Constituição Federal de 1988). É que oCNJ tem atuado “além das atribuições conferidas pela Constitucional Federal [...], realizando campanhas, estimulando o registro civil para os que não têm, incentivando a adoção, promovendo anualmente a semana da conciliação [...], [e] primando pelo acesso efetivo à cidadania e à Justiça”[23].
Já no âmbito próprio que lhe foi formalmente destinado, ficou a cargo do CNJ, segundo o art. 103-B, § 4º, da Constituição Federal, “zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências” (inciso I); “zelar pela observância ao art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União” (inciso II); “receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa” (inciso III); “representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração pública ou de abuso de autoridade” (inciso IV); “rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano” (inciso V); “elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sentenças prolatadas, por unidade da Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário” (inciso VI); e “elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias, sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar mensagem do Presidente do Supremo Tribunal Federal a ser remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa” (inciso VII). Dentro desse vasto leque, o CNJ editou várias Resoluções que dão contornos de índole Ética às atividades não só do Judiciário, mas também da Administração Pública lato sensu.
Assim, é de se mencionar algumas dessas Resoluções: i) A Resolução nº 106, de 06.04.2010: representou uma evolução muito mais rígida dos critérios objetivos para aferição do merecimento para promoção de Magistrados e acessos aos Tribunais de 2º grau; ii) A Resolução nº 7, de 18.10.2005: vedou o nepotismo no âmbito de todos os órgãos do Poder Judiciário (esta Resolução carrega importância maior se se considerar a inegável influência dela para a confecção da Súmula Vinculante nº 13: “A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal”); iii) a Resolução nº 34, de 24.04.2007, que permite aos magistrados o exercício do magistério, mas apenas nos casos em que isso presumir “compatibilidade entre os horários fixados para o expediente forense para a atividade acadêmica”, algo que o Juiz deverá comprovar perante seu respectivo Tribunal (art. 1º, parágrafo único); iv) a Resolução nº 71, de 31.03.2009, que regula o chamado “Plantão Judiciário”, de modo a garantir a atividade jurisdicional do Judiciário ininterrupta para as matérias mais fundamentais, como habeas corpus (art. 1º, alínea a), medida liminar em dissídio coletivo de greve (art. 1º, alínea b), comunicações de prisão em flagrante e apreciações de pedidos envolvendo concessão de liberdade provisória (art. 1º, alínea c), busca e apreensão de pessoas/bens/valores, se comprovada, objetivamente, a urgência (art. 1º, alínea e), dentre outras; v) a Resolução nº 76, de 12.13.2009, que criou um Sistema de Estatística do Poder Judiciário (SIESPJ), o qual terá os dados, inclusive, que envolvam as “receitas e despesas” dos Tribunais (art. 14, inciso I, alínea a); vi) a Resolução nº 140, de 26. 09.2011, que proibiu, em todo o território nacional, atribuir nome de pessoa viva a bem público sob a administração de órgãos do Poder Judiciário, dentre outras [24].
Uma crítica, porém, não pode ser evitada. Se, mesmo que vagarosamente, se percebe que o Juiz precisa adquirir densas cargas de índole educacional, a mesma lentidão acompanha as possibilidades de isso ocorrer. O Ministro João Otávio Noronha (Superior Tribunal de Justiça) avisa, com muita propriedade, que os seríssimos problemas encarados pelas escolas da magistratura nada mais são do que reflexos do “modelo mental” que predomina no tratamento dado à educação do Brasil:
É preciso mudar a forma como se tem enxergado as escolas da magistratura até aqui. A maioria delas não possui estrutura de pessoal nem autonomia orçamentária e financeira. Algumas escolas, atualmente, funcionam de forma precaríssima – há escola com apenas três funcionários. Isso está relacionado ao modelo mental predominante no tratamento da educação em nosso país. É preciso que as lideranças do Judiciário estejam atentas e dispostas a quebrar paradigmas para alcançar a excelência que se pretende na educação profissional da magistratura brasileira [25].
Ora, como preparar um Magistrado aos desafios de índole filosófico-democrática (que, como dito supra, no item 1, tem forte apego com a “Ética Contemporânea Judicial”)? Se o Estado, que detém o Judiciário, não investe na formação de seus Juízes, como lidar, com a “excelência” a que se referiu o Min. João Otávio Noronha, nos aspectos da ética e das responsabilidades institucionais do Magistrado? Colocar tudo nas costas do ser humano Juiz?
Um estudo publicado por Wrana Maria Panizzi, na época reitora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, aduz, com muita propriedade e apego à “Declaração Mundial sobre Educação Superior no Século XXI: Visão e Ação” (UNESCO, Paris, 9 de outubro de 1998), que “a ética é condição para o rigor científico” [26]. A recíproca também é verdadeira: “o rigor científico é condição para a ética”. Isso espanca a monótona frase que sempre ouvimos (ainda...) em nossas atividades jurídicas: “isto não ocorre na prática...”; “na prática, não é assim”[27]. Como se o Juiz, que redige a sentença, ficasse blindado de todas as (importantíssimas) lições da dogmática processual civil... Basta relembrar a lição de Luiz Guilherme Marinoni: “a sentença é o instrumento técnico que presta a tutela”[28]. Direito é ciência, ponto final. Seu rigor (portanto: científico [!]) é um mínimo condicional ético do Magistrado. “O jurista é necessariamente um profissional voltado para a Ciência”[29]. Válida a menção, por conseguinte, da (ácida) advertência de Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias:
Paradoxalmente, embora haja recomendação expressa dos textos da Constituição e dos Códigos Processuais, objeto de toneladas de escritos doutrinários sustentando a importância do princípio da fundamentação racional das decisões jurisdicionais, o certo é que os órgãos julgadores do Estado brasileiro, ultimamente, vêm negligenciando seu dever de motivação dos pronunciamentos decisórios.
A nosso ver, tudo começou com decisões de rara infelicidade proferidas pelo STF, com a devida vênia, porque, a partir de então, sedimentou-se na jurisprudência brasileira, um entendimento estapafúrdio e generalizado contra a ordem jurídico-constitucional, qual seja, o de que a sentença com motivação sucinta ou deficiente não é nula, estando satisfeita a recomendação constitucional, ainda que a fundamentação esteja incorreta [30].
O Juiz que não se preocupa com o rigor científico é, sem exagero, o primeiro que deve sofrer a crítica dirigida ao “não ético”. Mais ainda: a Ética “Jurídica” é abarcada pela Filosofia do Direito. Este autor possui um livro contendo folhetins de 1941 (raríssimos) de aulas de Miguel Reale, na USP, datilografadas por um aluno. Há uma advertência de Reale que servirá para o estudo aqui realizado:
Aqueles que buscam na Faculdade de Direito apenas conhecimentos forenses, que vêm na Faculdade apenas um instrumento para atividade profissional, hão de estranhar este estudo, porque a Filosofia do Direito não tem nenhuma utilidade forense imediata, e nem cuida disto. Mas as Faculdades do Direito não existem apenas para o imediato e o quotidiano. Elas têm uma função de cultura. Existem duas categorias de juristas: os que crêem e os que repetem. Os primeiros são os que têm profundo conhecimento filosófico da ciência jurídica. A filosofia do Direito não tem consequências práticas imediatas. Mas não se iludam: não existem modificações relevantes nos sistemas legais que não tenham razão de ser remota, que não tenham uma explicação última de natureza eminentemente filosófica.
Daí começam a emanar vários questionamentos a serem explorados no assunto aqui tratado: mais especificamente, o Capítulo VI do Código Ibero-Americano de Ética Judicial, que prevê, justamente, uma“responsabilidade institucional” do Magistrado(arts. 41 a 47). Os ditames legais do assunto são bem específicos e claros. Por ser o objeto principal deste trabalho monográfico, este autor optou por comentar, um a um, referidos artigos.
2.1. ART. 41 – BOM FUNCIONAMENTO DAS INSTITUIÇÕES JUDICIAIS: CONDIÇÃO SEM A QUAL O JUIZ NÃO PODERÁ DESEMPENHAR DA MANEIRA ADEQUADA SUA FUNÇÃO
O art. 41 do Código Ibero-americano de Ética Judicial prevê o seguinte: “o bom funcionamento do conjunto das instituições judiciais é condição necessária para que cada Juiz possa desempenhar adequadamente a sua função”.
Antes de se adentrar com mais rigor dogmático no assunto, o art. 41, agora estudado, pode, em tese, se relacionar com adágios e preceitos mais “poéticos”. Ilustrativamente, um decálogo de princípios preparado por Ives Gandra da Silva Martins aos seus alunos da Universidade Mackenzie é perfeitamente correlacionável ao assunto por prescrever que “sem o Poder Judiciário não há Justiça. Respeita teus julgadores como desejas que teus julgadores te respeitem. Só assim, em ambiente nobre e altaneiro, as disputas judiciais revelam, em seu instante conflitual, a grandeza do Direito”[31].
Por outro lado, há que se atrelar essa previsão do Código Ibero-americano de Ética Judicial à adequada separação de Poderes. É dizer: introduzir gama ética ao princípio da separação dos Poderes. Isso se liga, muito adequadamente, com o art. 5º do Código de Ética da Magistratura: “impõe-se ao magistrado pautar-se no desempenho de suas atividades sem receber indevidas influências externas e estranhas à justa convicção que deve formar para a solução dos casos que lhe sejam submetidos”.
O próprio conceito de Poder, contudo, não pode ser tripartido. Na verdade, esse dizer mereceria um debate mais aprofundado. Mas, em apertada síntese, pode-se alegar que a divisão legislativo/executivo/judiciário não é absoluta. Tal trilogia “não reflete a verdade”,como defende Celso Antônio Bandeira de Mello, sendo ela “uma essência, algo inexorável proveniente da natureza das coisas” [32]. Embora tal jurista ainda postule que a mesma divisão foi um propósito (tão-somente) de Montesquieu, como se este filósofo fosse o único a ter trabalhado em cima de tal ideal, é necessário dizer que o assunto não fora tese exclusiva de tal francês [33]-[34]. Isso só mostra que o tema é controvertido e que reflete, quase que invariavelmente, em toda literatura. Ademais, se se apegar com rigor ao Espírito das Leis, é coerente sustentar que a Constituição Federal de 1988 não é uma proposta 100% adequada às pregações de Montesquieu [35]. Todavia, isso é, repita-se, um assunto a ser debatido em outra ocasião. O Poder é um só [36], e a compreensão disso se diferencia substancialmente da exata noção em que Jurisdição estatal tem sua divisão funcional (cunho administrativo e organizacional).
O antigo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Cezar Peluso, concordaria com tal exposto. Ao menos é o que se denota se se visualizar um fragmento de seu voto na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.367/DF:
essas teorizações[falava-se do papel de Locke e de Montesquieu no assunto] já continham in nuce a idéia da necessária divisão funcional do poder político, porque não ficasse depositado em mãos únicas. Partiam da percepção empírica, mas sábia, de que o poder tende a desvios – a qual foi mais tarde sintetizada na máxima de LORD ACTION (“todo poder corrompe”) –, e tinham em vista ideal político muito claro: evitar, em nome da preservação da liberdade, os excessos, abusos e inconvenientes do poder ilimitado [...][37].
Por outro lado, se a essência da “divisão” de Poderes pressupõe um sistema de freios e contrapesos, é certo acreditar que tal tarefa não deve recair apenas sobre o Judiciário, sob pena de se criar a ilógica e paradoxal tese de que somente os Juízes devem “proteger” o ideal (tarefa, aliás, que seria extremamente onerosa do ponto de vista jurídico-político), o que não se aplica, contudo, no controle que lhe for próprio, interno, consoante, aliás, preveem os arts. 4º a 6º do Código de Ética da Magistratura, que dizem:
Art. 4º Exige-se do magistrado que seja eticamente independente e que não interfira, de qualquer modo, na atuação jurisdicional de outro colega, exceto em respeito às normas legais.
Art. 5º Impõe-se ao magistrado pautar-se no desempenho de suas atividades sem receber indevidas influências externas e estranhas à justa convicção que deve formar para a solução dos casos que lhe sejam submetidos.
Art. 6º É dever do magistrado denunciar qualquer interferência que vise a limitar sua independência.
Então, no âmbito típico do Judiciário (= jurisdicionar), é certo que os Magistrados em geral têm o dever ético e jurídico de, por exemplo, respeitar a “independência funcional” do Ministério Público (art. 127, § 1º, da Constituição Federal)[38]. É neste sentido que o art. 41 do Código Ibero-americano de Ética Judicial deve ser interpretado: o chamado “bom funcionamento do conjunto das instituições [não só judiciais...] é condição necessária para que cada Juiz possa desempenhar adequadamente sua função”. Então, é justo presumir que sua aplicação poderia extrapolar o próprio seio do Judiciário. Veja-se o caso do Ministério Público: é ele “essencial à função Jurisdicional do Estado” (art. 127, caput, da Constituição Federal). Ora, como esperar um bom funcionamento institucional judicial sobrecarregando tal ônus apenas ao Judiciário? Um membro do parquet, assim, não é estanque, especialmente, a previsão Ibero-americana aqui apreciada.
Nem o Advogado escapa dessa conclusão.É ele “indispensável à administração da justiça” (art. 133 da Constituição Federal). Daí a lógica dicção de Alberto G. Spota, inspirado por Alfredo Colmo: “a tarefa inicial do advogado consiste em pronunciar-se – como o faria um juiz – sobre a justiça das pretensões ou defesas daquele que pede seu amparo profissional” e que, caso o Advogado atuasse diferentemente, “incorreria em uma manifesta violação das regras inerentes à ética forense”[39].
Salvatore Satta, citado por Miguel Reale, define jurisdição da seguinte forma:“a jurisdição exprime a afirmação do ordenamento jurídico no caso concreto, ou seja, somente onde e quando tal afirmação possa ser feita: a jurisdição é, por conseguinte, como tal, o único momento essencial da societas, porque sem ela decairia (‘verrebbemeno’) o próprio ordenamento, que só é jurídico enquanto pode (e deve) ser afirmado”[40]. Esse dizer de direitos pressupõe, então, um condão ético, blindado de participações de atividades de cunho partidário, nos termos do art. 7º do Código de Ética da Magistratura Nacional: “a independência judicial implica que ao magistrado é vedado participar de atividade político-partidária”.
2.2. ART. 42 – CONCEITO DE “JUIZ INSTITUCIONALMENTE RESPONSÁVEL”
O art. 42 do Código Ibero-americano de Ética Judicial prescreve que “o Juiz institucionalmente responsável é aquele que, além de cumprir com suas obrigações específicas de caráter individual, assume um compromisso ativo com o bom funcionamento de todo o sistema judicial”.
A leitura desse dispositivo acaba lançando algumas perguntas que – por questão, também, metodológica – precisam ser respondidas. Em primeiro lugar, o que são as obrigações específicas do Juiz? Obrigações específicas... De caráter individual? E, em segundo, o que seria um compromisso “ativo” com o bom funcionamento de todo o sistema judicial?
A priori, a redação do art. 42 aqui estudado pode até denotar um contrassenso com o art. 2º do Código de Processo Civil: “nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e forma legais”. O paradoxo residiria no seguinte ponto: se o Juiz deve ser mostrar inerte, e esse é um caractere fundamental da Jurisdição, até em que limite seria lícito presumir esse “compromisso ativo com o bom funcionamento judicial”? Segundo pensamos, o art. 42 do Código Ibero-americano de Ética Judicial não quer se referir apenas às questões cognoscíveis de ofício. Ademais, cada Ordenamento Jurídico procura – ao seu meio e modo – delinear legalmente o que é, ou não, uma exceção (admitida) à inércia jurisdicional. No Brasil, um exemplo relativamente recente disso reside no art. 219, § 5º, do Código de Processo Civil, cuja redação dada pela Lei nº 11.280/2006 aduz que “o juiz pronunciará, de ofício, a prescrição”.
O que seria, então, essa postura ativa ética e diferenciada dessas exceções legais? Uma excelente resposta para isso estaria nas declarações da Ministra Eliana Calmon:
A sociedade atual necessita de um juiz com novo perfil, o que representa quebrar uma cultura de mais de 200 anos. Cabe ao juiz de hoje não só resolver conflitos que chegam nos processos, mas também fiscalizar e cobrar a realização das políticas públicas. O magistrado passou a ter a necessidade de informações diferenciadas sobre a sociedade. Não queremos burocratas, mas sim um juiz presente na sociedade, de maneira participante [41].
Ao que parece, a própria Magistratura admite, embora não se referindo expressamente ao art. 42 do Código Ibero-americano de Ética Judicial, que essa “postura ativa” seria, exatamente, um aspectoque não reside no seio puramente processual. É dizer, em síntese: “seria uma postura ativa fora dos autos”.
O mais interessante é notar que, de fato, não faltam exemplos concretos nesse sentido. A Súmula Vinculante nº 13, por exemplo, conta com a seguinte redação:
A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da união, dos estados, do distrito federal e dos municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a constituição federal.
Não é preciso maior divagação para deixar clara a reação do Judiciário contra o nepotismo, prática que o Poder Público brasileiro sempre sofreu e que é costumeira entre determinadas autoridades [42].
Finalmente, insta salientar que a Súmula Vinculante nº 13 não é a única de relevante repercussão nacional. No mesmo ano que que foi editada (2008), temas variados foram objeto de Súmula com mesmo caráter:
* Súmula 4 – uso de salário mínimo com indexador;
* Súmula 5 – defesa técnica por Advogado em processo disciplinar;
* Súmula 6 – remuneração de praças no serviço militar;
* Súmula 7 – não auto aplicabilidade do art. 192, § 3º, da Constituição Federal, enquanto vigorou (juros reais de 12%);
* Súmula 8 – prescrição & decadência de crédito tributário;
* Súmula 9 – recepção do art. 127 da Lei de Execução Penal;
* Súmula 10 – reserva de plenário para afastar incidência de Lei ou Ato Normativo;
* Súmula 11 – restrições aos usos de algemas;
* Súmula 12 – taxa de matricula em universidade pública.
Todos esses exemplos citados, vale anotar, não esbarram com o art. 7º do Código de Ética da Magistratura: “a independência judicial implica que ao magistrado é vedado participar de atividade político-partidária”, caso bem distinto do que foi discorrido, evidentemente.
2.3. ART. 43 – DEVER DO JUIZ EM PROMOVER O RESPEITO E A CONFIANÇA NA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA
Diz o art. 43 do Código Ibero-americano de Ética Judicial: “o Juiz tem o dever de promover na sociedade uma atitude, racionalmente fundada, de respeito e confiança para com a administração de justiça”.
No Direito Brasileiro, essa previsão do art. 43 do Código Ibero-americano de Ética Judicial pode, em tese, ter várias relevâncias processuais. Apenas à guisa de exemplificação, a previsão atual do art. 600, inciso IV, do Código de Processo Civil (com a redação dada pela Lei nº 11.382/2006) [43], parece colocar o Magistrado em uma situação difícil. O papel da Jurisdição do Estado, mesmo em se tratando de atuação executiva de direitos, deve sempre se guiar no sentido de que o Juiz deve proferir decisões atreladas não somente à termos de validade, mas, sobretudo, à adequação das medidas que forem executivas [44].Ora, se o executado pode, no curso da execução, por exemplo, se opor à penhora que se pretenda realizar sobre bens impenhoráveis [45], discutir reavaliações de bens penhorados [46], pedir a declaração de nulidade de arrematação realizada por preço vil [47], então qual a harmonia que se busca no sistema executório brasileiro?
Uma boa advertência de José Miguel Garcia Medina vem a corroborar a “prudência” que deve ser empregada – se se reconhecer como constitucional o art. 600, inciso IV, do CPC – para a efetiva utilização desse dispositivo. Diz o processualista paranaense que um Juiz que atua em uma execução, na verdade, “acaba por resolver diversas questões relevantes que não dizem respeito, necessariamente, à averiguação da existência da relação jurídica de direito material, mas à validade e adequação dos atos executivos, operação esta que reflete materialmente nas esferas jurídicas do exequente e do executado”[48].Uma coisa é a busca de celeridade para o exequente. Outra é a imposição de um sacrifício “exorbitante e injustificável” para a esfera jurídica do executado [49]. Uma boa ilustração disso é a que se segue:
Pense-se, por exemplo, em execução fundada em título extrajudicial, em que se pretenda realizar penhora por via eletrônica (ou on-line) de saldos existentes em contas bancárias da empresa executada (CPC, art. 655-A). De um lado, trata-se, indubitavelmente, de mecanismo moderno, com aptidão de realizar, mais rapidamente, o direito do credor à obtenção do dinheiro que lhe é devido, o que materializa o princípio da máxima efetividade. A realização ilimitada desta medida executiva, no entanto, é suscetível de causar dano irreparável à empresa executada, que pode ter não apenas a obrigação executada a adimplir, mas também outras obrigações, que se relacionem à sua manutenção diária, e que podem vir a ser descumpridas em razão da penhora realizada. Pode ocorrer [...] que sejam penhorados exatamente os valores que seriam utilizados pela empresa no pagamento do salário de funcionários, o que gerará danos não só à executada, mas também a terceiros. Neste caso, a atividade jurisdicional, a pretexto de sanar a violação ao direito do exequente, será fator de criação de litigiosidade, que se manifestará no mesmo processo (p. ex., através de recursos que serão interpostos pela empresa executada, o que transferirá a solução do conflito para a instância recursal); poderão ser notadas as consequências de tal pronunciamento também em outras ações judiciais, em razão dos conflitos sociais e econômicos que fatalmente surgirão em decorrência da gravidade da medida executiva, poderão ocorrer outras consequências sociais e econômicas (p. ex., exoneração de empregados pela empresa, em razão de esta não ter dinheiro para a realização do pagamento de salários) [50].
Embora a casuísta supra abarque o caso da penhora on-line, inegável que a lição serve também para qualquer medida judicial de índole executiva. O Juiz, tendo em mente que sua maneira de “tocar o processo” causa repercussões internas e externas à lide, precisa observar todos esses fatores para eventual decisão interlocutória que utilize o art. 600, inciso IV, do Código de Processo Civil (caso entenda-o, também, como parte integrante ao Ordenamento Jurídico de modo constitucional) [51].
Todo o exposto supra encontra harmonia com a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, cujo art. 5º é assim redigido: “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.
Por outro lado, excelente doutrina como a de Araken de Assis aduz, com base em Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, que “o inc. IV do art. 600 representa a base do dever de o executado indicar ao juiz a localização de bens penhoráveis, além do respectivo valor, integrando a solução brasileira do angusto problema, vantajosamente comparada com o direito italiano”[52]. Aquele processualista chega a criticar a posição do Superior Tribunal de Justiça, tomada em um julgamento de Recurso Especial [53], no ano de 1998, cujo entendimento teria representado um retrocesso ao “negar o dever de o executado de relacionar bens”[54]. Esse momento do STJ, diz Araken de Assis, foi “menos feliz” [55], muito embora, ainda na época, havia o entendimento prevalecente de impedir a quebra do sigilo bancário do executado [56]. Os ventos, todavia, mudaram. Já não mais se questiona, ao menos na prática forense, a utilização do sistema BacenJud. A própria dogmática tratou de resolver a querela. Mais acidamente, Luiz Guilherme Marinoni sustentou que “posições sociais não interessadas nesta forma de penhora [falava-se da penhora online] já alardeiam a tese de que [...] [se] viola o direito à intimidade do executado”, argumento esse que chamou de “risível”, e que nem “mereceria análise, não fosse o estrago que pode provocar no sistema executivo de tutela dos direitos”[57]. Assim, por rigor metodológico e temporal, é preciso levar em conta dois aspectos envolvendo essas últimas considerações: a) antes, o próprio STJ manifestava-se no sentido negar o sentido de dever do executado em relacionar os bens; e b) o respeito ao sigilo bancário era absoluto. Com isso mente, inegável que o judiciário ficou “desarmado” de duas providências que, agora, “a ordem jurídica lhe confere para efetivar o crédito sob execução” [58]. Logo, não se pode falar que eventual declaração de inconstitucionalidade, mesmo que em primeiro grau, do art. 600, inciso IV, do Código de Processo Civil seja um atamento de mãos do Judiciário. Pelo contrário: poder-se-ia cogitar mesmo mais equilíbrio no acalentoda ampla defesa de exequente e executado. O primeiro com a possiblidade de solicitar várias medidas executivas de fantástico cotejo tecnológico (Bacenjud, Renajud etc.). O segundo, embora com o dever de agir de boa-fé, poder ficar silente sem coerção de multa (art. 601 do CPC), em sistema jurídico, aliás, que paradoxalmente fornece, com muito mais rigor, outras garantias constitucionais para o famoso caso – sem entrar no mérito... – envolvendo o uso de bafômetro, por exemplo. Se em tais casos o rigor de “não fazer prova contra si mesmo” é levado tão a serio (para ocasião que demandaria mais austeridade), por que seria absurda a conclusão de que o art. 600, IV, do CPC, viola a ampla defesa, cujo vetor é tambémconstitucional?
A responsabilidade do Juiz é gritante. Um trabalho estressante, que abarca não só aspectos técnico-jurídicos, mas aspectos ontológicos que são, muitas vezes, externos à lide. Tudo isso se liga, curiosamente, ao (também) art. 43 do Estatuto do Juiz Ibero-americano:
Art. 43 Princípio da equidade
Na resolução dos conflitos que cheguem ao seu conhecimento, os juízes, sem prejuízo do estrito respeito à legislação vigente e sempre levando em conta o lado humano de tais conflitos, buscarão temperar com critérios de equidade as consequências pessoais, familiares ou sociais desfavoráveis.
2.4. ART. 44 – DISPOSIÇÃO DO JUIZ EM ASSUMIR/RESPONDER AÇÕES E OMISSÕES
É do art. 44 do Código Ibero-americano de Ética Judicial que “o Juiz deve estar disposto a responder voluntariamente por suas ações e omissões”. Tal previsão pode até soar funcional e lógica do ponto de vista puramente gramatical. Porém, bastam alguns questionamentos para que fique no plano da dúvida a possibilidade de o referido art. 44 ter, combinadamente, vigência, eficácia e fundamento, palavras essas usadas com apego, aqui, à Teoria Tridimensional de Miguel Reale.
A primeira impressão dada pela Lei é a de que ela nasceu “para valer” (palavras do próprio Reale), de um comando dado por autoridade superior [59]. Porém, basta apenas imaginar um sujeito na situação concreta de destinatário do “comando legal” para entender o quão complexo é esta questão da validade do direito [60]. É isso o que se propõe, aqui, para o fim de enfrentamento pragmático deste art. 44 do Código Ibero-americano de Ética Judicial. Então, por questões de ordem metodológica, vejamos qual era, exatamente, o raciocínio de Miguel Reale.
Para o grande jurista brasileiro,há que se questionar três coisas: a primeira, “quanto à obrigatoriedade da norma jurídica para todos, em geral, e para determinada pessoa em particular” [61]. A segunda, acerca da “conversão efetiva da regra de direito em momento da vida social” [62]. A terceira está no âmbito da “legitimidade”, na indagação dos “títulos éticos dos imperativos jurídicos” [63]. Estas três observações correspondem, respectivamente, às já mencionadas dimensões da vigência, da eficácia e do fundamento[64].
Em primeiro lugar, portanto (= quanto à obrigatoriedade da norma para todos, e para determinada pessoa), pergunta-se: o art. 44 do Código Ibero-americano de Ética Judicial fala no Estado-Juiz ou no Juiz enquanto pessoa? Isso pode ter seria relevância prática. Se se pensar no primeiro caso (Estado-Juiz), isoladamente, é o mesmo que pensar: “em erro judicial, a responsabilidade será do Estado, na modalidade objetiva, devendo ele, Estado, assumir o nexo causal [nem a culpa...] do dano causado ao jurisdicionado, abrindo mão de todas as vias de sua defesa”. Por outro lado, pensando na figura (na pessoa) do Juiz, outro seria o sentido: “em erro judicial, por culpa ou dolo, o Magistrado, enquanto pessoa, deverá contribuir, de todo e qualquer modo, para a tutela do bem do jurisdicionado hipoteticamente lesado, seja com eventual denunciação da lide (arts. 70 a 76 do Código de Processo Civil), seja em Ação com pretensão regressiva pelo Estado”.
Na segunda colocação (= conversão efetiva da regra de direito em momento da vida social), é bem improvável imaginar que um Juiz abriria mão, p. ex., do devido processo legal, para, então, chegar a um resultado dialético-processual a respeito de eventual condenação. Não queremos dizer (alerte-se) que o Juiz “A” ou “B”, que vier a sofrer um processo por improbidade administrativa e/ou as penas disciplinares da Lei Complementar nº 35/1979 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional) terá má índole processual quando parte de tal procedimento. Porém, é muito improvável imaginar que a disposição em “responder voluntariamente por suas ações e omissões” poderá, ilustrativamente, convencê-lo de uma não recorribilidade da sentença monocrática que o condene pelo cometimento de um delito.
Talvez, a única conversão efetiva desta “regra ética” em momento da vida social, tal como aduz Miguel Reale, fica apenas para a execução de uma sentença já transitada em julgado. Impossível cogitar outra hipótese.
Por fim, na terceira ótica (= títulos éticos dos imperativos jurídicos), há um condão constitucional muito profundo e serio que deve ser lançado de forma entrelaçada à essa previsão do art. 44 do Código de Ética Ibero-americano de Ética Judicial:e a ampla defesa do Magistrado? A ampla defesa é princípio expressamente previsto na Constituição Federal de 1988, que, em no inciso LV do vasto art. 5º, prevê que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” [65]. Trata-se de garantia fundamental.
É preciso entender, então, com precisão, a natureza ontológica (= ser) e deontológica (= dever ser) da ampla defesa. Admitir que algo que goza de tutela constitucional possa ser violado significa uma necessidade de se compreender com que razão e até em que órbita haveria tal violação.
Como visto, a ampla defesa é prevista, de modo expresso, na Constituição Federal de 1988, em diversos dispositivos [66]. De bom alvitre a lição mencionada por ElpídioDonizetti, que, com base em Rosemiro Pereira Leal, aduz que a ampla defesa é uma garantiade acesso a meios, elementos ou formas de alegar e de provar no espaço temporal processual oportuno [67], algo que deve ser atribuído a réu e a autor (ou executado/exequente; embargado/embargante etc) [68].
É claro que os princípios jurídicos, não sendo diferente com o contraditório, nem com a ampla defesa, devem sempre ser tomados de modo desatado a ponto de impedir, diz Celso Antônio Bandeira de Mello, “a adoção imediata de providências da mais extrema urgência requeridas insubstituivelmente para salvaguardar interesses públicos relevantes que, de outra sorte, ficariam comprometidos”[69]. Porém, como conciliar o art. 44 do Código Ibero-americano de Ética Judicial?
Então, ao que parece, tal previsão – embora muito interessante e bela do ponto de vista ético –, carece de aplicabilidade, notadamente em processos/procedimentos de cognição.
2.5. ART. 45 – O JUIZ COM O DEVER DE DENUNCIAR. UMA RELATIVIZAÇÃO DA INÉRCIA JURISDICIONAL?
O art. 45 do Código Ibero-americano de Ética Judicial aponta no sentido de que “o Juiz deve denunciar, perante os órgãos competentes, os descumprimentos graves nos quais possam incorrer os seus colegas”.
Seria essa previsão uma nova exceção à inércia da Jurisdição exercida pelo Judiciário? Pode sempre um Juiz, por exemplo, pedir a abertura de um inquérito policial para investigar o próprio colega? Isso deve ser visto não apenas do ponto de vista técnico-legal. Há toda uma gama “sociológica” (e ética...) por trás dessas questões.
Isso não retira a importância do dispositivo. Das responsabilidades judiciais apontadas por Mauro Cappelletti (civil, penal e disciplinar), é,certamente, a do cunho disciplinar que o art. 45 do Código Ibero-americano de Ética Judicial visa tutelar. Indiretamente, portanto, buscaria proteger, diz Cappelletti, “um núcleo essencialmente publicístico [que] caracteriza, outrossim, a responsabilidade disciplinar”[70].Assim sendo, um Juiz que denuncia perante a Corregedoria descumprimentos graves de um colega acaba contribuindo (se a denúncia, claro, tiver fundamento), efetivamente, “em assegurar [...] que os juízes no seu papel de funcionários públicos, se bem que de tipo especial, observem os deveres do seu ofício, deveres, pois, tipicamente de direito público perante o Estado e a sociedade em geral”[71].
Segundo pensamos, há justa legitimidade em excepcionar a rigidez da inércia jurisdicional, neste caso envolvendo o art. 45 do Código Ibero-americano de Ética Judicial. O fundamento, para tanto, reside justamente na busca ao que se busca tutelar: interesse público. É de interesse público a jurisdição ser inerte para questões não iniciáveis/apreciáveis de ofício. É de “mais interesse público” a probidade administrativa que cerca o Poder Judiciário. Tal conclusão goza de coerência se se atrelar o que discorreram, sobre o assunto, Manuel Atienza e Rodolfo Luis Vigo, ambos especialistas convocados pela Cumbre Judicial Iberoamericana para redação do Código Ibero-americano de Ética Judicial:
Se o juiz tem uma responsabilidade que transcende seu tribunal e suas causas, abrangendo toda a instituição judicial, a ele é imposto o dever de denunciar ante quien corresponda losincumplimientos graves em los que puedemincurrir sus colegas (art. 45) [72].
2.6. ART. 46 – A IMPARCIALIDADE DO JUIZ NO SEIO DA PRÓPRIA JUSITÇA
Diz o art. 46 do Código Ibero-americano de Ética Judicial: “o Juiz deve evitar favorecer promoções ou ascensões irregulares ou injustificadas de outros membros do serviço da justiça”.
Essa previsão é, talvez, a que mais tem apego aos anseios mais contemporâneos do Direito Administrativo[73]. No caso do Direito Brasileiro, o art. 37, caput, da Constituição Federal prevê que “a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. Então, trata-se de norma apegada, também, a esses valores. Como bem lembra Celso Antônio Bandeira de Mello, pelo princípio da moralidade administrativa, “a Administraçãoe seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios éticos”, sendo que a violação deles “implicará violação do próprio Direito”[74]. Tudo isso está compreendido no âmbito lealdade e da boa-fé [75]-[76].
O Supremo Tribunal Federal assim tem definido a moralidade administrativa enquanto princípio:
O princípio da moralidade administrativa – enquanto valor constitucional revestido de caráter ético-jurídico – condiciona a legitimidade e a validade dos atos estatais. A atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa. Esse postulado fundamental, que rege a atuação do Poder Público, confere substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos sobre os quais se funda a ordem positiva do Estado [77].
Já mencionamos supra, aliás, a Súmula Vinculante nº 13, que vedou o nepotismo. Embora altamente criticada pela doutrina, é de se defender que esse avanço jurisprudencial significou um progresso para a sociedade, e de modo apegado ao art. 46 do Código Ibero-americano de Ética Juidicial.
2.7. ART. 47 – O JUIZ E O DEVER DE COLABORAÇÃO PARA O MELHOR FUNCIONAMENTO DA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA
Por fim, o art. 47 do Código Ibero-americano de Ética Judicial prevê que “o Juiz deve estar disposto a promover e colaborar em tudo aquilo que signifique um melhor funcionamento da administração de justiça”.
Segundo pensamos, referida disposição vem a denotar que não só os pólos ativo e passivo de uma lide devem atuar segundo os ditames da boa-fé. É dizer: o Magistrado não é uma figura blindada dos ditames da boa-fé.
É bem verdade que a boa-fé pode denotar uma ideia embasada, apenas, pelo Direito Civil material. Na verdade, a boa-fé não é um vetor cognoscível apenas no plano material. Esbarra ela no aspecto processual, e atinge o Juiz. À essa conclusão chega, embora indiretamente, Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, que, após fazer um apanhado geral de toda e qualquer menção do instituto da boa-fé no Código Civil Português (passando pela respectiva Parte Geral; pelo Direito das Obrigações; pelo Direito das Coisas; pelo Direito da família e pelo Direito das sucessões), arremata: “a consideração destes preceitos [legais] permite intuir uma diversidade de significados, pelo menos aparente, da boa fé”[78].
Isso acaba se vislumbrando não só nas esferas material x processual, mas, também, nas terminologias adotadas nas diversas codificações.No Direito Alemão, p. ex., a mera análise do BGB (acrônimo de BürgerlichesGesetzbuch, o Código Civil Alemão), em seu § 242 (Leistungnach Treuund Glauben = “atuação de boa-fé”), demonstra que uma obrigação assumida por um devedor o obriga a “atuar de boa-fé” em relação às exigências dos usos e costumes[79]. Por outro lado, em uma apreciação muito densa sobre a boa-fé germânica, Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, acolhendo os estudos linguísticos de Ulrich Pretzel e Hans Neumann (1959), as teses de Klaus Nesemanne o aprofundamento de Hans-Wolfgang Strätz (1974), demonstra uma espécie de dualização – no Direito Germânico – acerca da boa fé. Diz o jurista português:
Utiliza-se «boa fé germânica» para designar a expressão alemã Treuund Glauben, sempre que se pretenda salientar a sua especificidade. Na literatura jurídica traduz-se, com fluência, Treuund Glauben, apenas, por boa fé – os seus correspondentes em grego, latim, francês, italiano e castelhano – e, inversamente. A comprová-lo, cite-se o Código Civil suíço, cujo artigo 2/I, nas versões alemã, francesa e italiana, respectivamente, dispõe:
Jedermann hat in die Ausübung seiner Rechte und in der Erfüllung seiner Pflichennach Treu und Glauben zuhandeln.
Chacun est tenu d’exercer sesdroits et d’exécutersesobligationsslonlesrègles de labonne foi.
Orgunnoètenuto ad agiresecondolabuona fedecosìnell’exercizio dei propridiritti come nell’adempimento dei propriobblighi.
Logo no artigo seguinte do mesmo Código – o 3/II – a buona fides parece, porém, não corresponder a Treuund Glauben:
Wo das GesetzeineRechtswirkungna der gutenGlaubeneiner Person gesknüpft hat, istdessenDaseinzuvermuten.
Werbei der Aufmerkasamkeit, wiesach den Umständer von ihmverlangtwerdendarf, nicht gutgläubig sein konnte, ist nicht berechtigt, sich auf den guten Glauben zu berufen.
La bonne foiest presume, lorsque la loi en fait dépendre la naissance ou les effets d’un droit.
Nul ne peutinvoquersabonne foi, sielleest incompatible avec l’attentionque les la buonafedesi presume.
Nessunopuò invocar ela propriabuona fede quando questa sai incompatible com l’attenzionechelecirconstanzepermettevanodiesigere da lui.
De facto, nesta última disposição, onde a buona fides, nas versões latinas, tem um emprego manifestadamente mais subjectivo do que o do art. 2, usa-se, no texto alemão, a expressão guter Glauben e não Treuund Glauben. A divergência não fica por aí: os textos citados, francês e italiano, do artigo 3, parecem admitir uma boa fé incompatível com determinadas realidades normativas, boa fé essa que, por isso, não pode ser invocada – este ponto, só por si, marca bem a clivagem perante a bona fides do art. 2º - enquanto o texto alemão, no que agora interessa, diz claramente «Quem... não pudesse estar de boa fé, não pode reportar-se à boa fé», sem admitir, pois, uma boa fé contrária ao Direito. Assim sendo, uma de duas: ou os textos do Código Suíço, nas versões francesa e italiana, por um lado, e alemão, por outro, têm sentidos diferentes – uma hipótese estranha, mas não a desprezar – ou bona fides e guter Glauben não têm, mesmo neste âmbito restrito, sentidos idênticos. Com a agravante de guter Glauben ser, precisamente, a correspondente literal de bona fides, o que não sucede com Treuund Glauben, sem equivalente nos idiomas latinos [80].
A lição, embora profunda e apegada a um aspecto muito particular, acaba permitido concluir que vários podem ser os sentidos da boa-fé. E, se ela é abarcada ou não pela Ética judicial, é lícito presumir que, aos poucos, a jurisprudência brasileira acaba acolhendo a tese de que a boa-fé é ínsita, também, na relação jurisdicionado x Jurisdição. O Superior Tribunal de Justiça, v. g., alterou, recentemente, um entendimento de relevância e que se coaduna, justamente, com o art. 47 do Código Ibero-americano de Ética Judicial.Considerou tempestivo um recurso apresentado fora de prazo em razão de erro no website do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina(no sistema de acompanhamento processual do próprio Tribunal). Na ocasião,o Ministro Relator Herman Benjamin arguiu que “a jurisprudência deve acompanhar a realidade em que se insere, sendo impensável punir a parte que confiou nos dados fornecidos pelo próprio Judiciário”, e que, por isso, “não é razoável frustrar a boa-fé que deve orientar a relação entre os litigantes e o Judiciário”[81].
No mesmo sentido de boa-fé Administração/Judiciário xadministrado/jurisdicionado alguns julgados do Supremo Tribunal Federal:
Embora a lei inconstitucional pereça mesmo antes de nascer, os efeitos eventualmente por ela produzidos podem incorporar-se ao patrimônio dos administrados, em especial quando se considere o princípio da boa-fé [82].
O dever de boa-fé da administração pública exige o respeito incondicional às regras do edital, inclusive quanto à previsão das vagas do concurso público. Isso igualmente decorre de um necessário e incondicional respeito à segurança jurídica como princípio do Estado de Direito. Tem-se, aqui, o princípio da segurança jurídica como princípio de proteção à confiança. Quando a administração torna público um edital de concurso, convocando todos os cidadãos a participarem de seleção para o preenchimento de determinadas vagas no serviço público, ela impreterivelmente gera uma expectativa quanto ao seu comportamento segundo as regras previstas nesse edital. Aqueles cidadãos que decidem se inscrever e participar do certame público depositam sua confiança no Estado administrador, que deve atuar de forma responsável quanto às normas do edital e observar o princípio da segurança jurídica como guia de comportamento. Isso quer dizer, em outros termos, que o comportamento da administração pública no decorrer do concurso público deve se pautar pela boa-fé, tanto no sentido objetivo quanto no aspecto subjetivo de respeito à confiança nela depositada por todos os cidadãos [...] [83].
Os princípios da boa-fé e da segurança jurídica autorizam a adoção do efeito ex nunc para a decisão que decreta a inconstitucionalidade. Ademais, os prejuízos que adviriam para a administração seriam maiores que eventuais vantagens do desfazimento dos atos administrativos [84].
Assim, o Judiciário, ao atuar eticamente sob a pirâmide da boa-fé, age nos ditames do art. 47 do Código Ibero-americano de Ética Judicial, porque o sentido da boa-fé abarca, como visto, vários sentidos, desde aqueles consagrados no Direito Material Civil, até os de índole processual e de cunho administrativo.