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Limites do controle jurisdicional das políticas públicas

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Resumo:


  • A Constituição passou a ter um papel vinculativo e obrigatório na sociedade, consagrando valores e princípios na interpretação jurídica.

  • Isso intensificou a atuação do Judiciário, que avançou sobre o espaço da política majoritária, exigindo um controle judicial parametrizado pela legitimidade democrática e separação dos poderes.

  • O estudo aborda os limites, riscos e possibilidades do controle das políticas públicas pelo Judiciário, buscando uma atuação equilibrada com base nos princípios da separação dos poderes e do mínimo existencial.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4. MÍNIMO EXISTENCIAL

4.1. Delineamento do conteúdo e da extensão do controle judicial

Os direitos fundamentais podem ser subdivididos em três categorias: direitos individuais, direitos políticos e direitos sociais (termo mais abrangente que engloba direitos sociais, econômicos e culturais). Os primeiros relacionam-se com as liberdades individuais, nas quais se busca traçar uma esfera de atuação livre da intervenção estatal. Já os direitos políticos delineiam as condições de participação dos indivíduos na deliberação pública. Por fim, a última categoria lida com bens, tais como educação, saúde, alimentação, informação etc., dos quais podem ser extraídas condições materiais mínimas ao exercício pleno das duas outras categorias. Nesta seara entra o conceito de mínimo existencial.

A positivação dos direitos sociais em constituições escritas demonstra a preocupação de se assegurar determinados bens aos indivíduos, os quais, como já dito, constituem pressupostos ao exercício da liberdade e da participação nas deliberações democráticas. No entanto, esta normatização encontra sérios problemas na busca de efetividade no mundo dos fatos. O mínimo existencial surge, assim, como uma tentativa de apresentar soluções para estes entraves[46].

Em apertada síntese, o mínimo existencial, dotado de fundamentalidade, trata dos bens essenciais, das condições mínimas de subsistência digna do indivíduo, estando o espectro de tal conteúdo longe de uma uniformidade doutrinária.

Desenvolvendo o pensamento de John Rawls, o mínimo existencial aparece, dentro de uma lógica procedimental, como um conjunto mínimo de condições materiais que garantem que o procedimento decidido pelos indivíduos no estado original seja verdadeiramente equitativo.[47]

O autor trabalha com o modelo de justiça processual pura, aplicado quando não há critério independente para o resultado justo, mas existe um processo correto ou equitativo que, se respeitado, conduz a um resultado da mesma forma correto ou equitativo. John Rawls, então, partindo do pressuposto que cada indivíduo possui o seu projeto e concepção pessoal de vida e de justiça, entende que inexiste um resultado justo preestabelecido e consensual, mas se mostra possível o estabelecimento de um procedimento que assegure, no mínimo, um resultado não injusto.

Neste procedimento equitativo inserem-se dois princípios, quais sejam, o da liberdade igual para todos e o princípio da diferença. O primeiro possui estatura constitucional, enquanto o segundo, que cuida primordialmente da justiça distributiva e das condições para a sua prossecução, teria o desenvolvimento e formulação dependentes do legislativo.

O princípio da diferença está diretamente relacionado à distribuição de bens na sociedade, trabalhando com a idéia de desigualdade no sentido de que ela só se justifica na medida em que proporciona melhorias para a classe social mais pobre, ou seja, ela deverá maximizar o bem-estar dos menos favorecidos. Ainda neste conceito, temos que as posições e funções na sociedade têm de estar abertas a todos indistintamente, e, para isto, todos os indivíduos devem se encontrar em uma posição inicial equitativa de oportunidades. A posição equitativa de oportunidades é um conjunto de condições materiais mínimas que Rawls caracteriza não só como pressuposto ao pleno exercício do princípio da diferença, mas também ao princípio da liberdade. A esta posição equitativa, Rawls confere status constitucional ao lado dos direitos da liberdade. As prestações que representam um plus em relação a este mínimo continuam no âmbito da competência do legislativo, a quem caberá promover as políticas de justiça social que realizem de forma mais ampla a justiça distributiva[48].

No ordenamento pátrio, Ricardo Lobo Torres desenvolveu concepção análoga à elaborada por John Rawls em o Liberalismo Político, sustentando o mínimo existencial como condições iniciais indispensáveis ao exercício da liberdade[49].

Para o autor, compreende os direitos da liberdade e os direitos fundamentais sociais, “todos em sua expressão essencial, mínima e irredutível”[50]. Nesta linha, os direitos sociais em geral não possuem caráter fundamental, mas tão-somente o âmbito do seu núcleo essencial, quando tocados pelo mínimo existencial[51].

A distinção realizada é importante, na medida em que os direitos sociais “máximos” devem ser realizados através da observância do processo democrático, alcançados com a participação popular, no exercício da cidadania. Enquanto que os direitos sociais fundamentais, ou mínimo existencial, conferem direitos subjetivos aos cidadãos, tornando as prestações dele decorrentes sindicáveis através do Judiciário[52]. Linhas abaixo, traslada-se, nas palavras do autor [53] , a conclusão de tais ideias:

Em síntese, a jusfundamentalidade dos direitos sociais se reduz ao mínimo existencial, em seu duplo aspecto de proteção negativa contra a incidência de tributos sobre os direitos sociais mínimos de todas as pessoas e de proteção positiva consubstanciada na entrega de prestações estatais materiais em favor dos pobres. Os direitos sociais máximos devem ser obtidos na via do exercício da cidadania reivindicatória e da prática orçamentária, a partir do processo democrático. Esse é o caminho que leva à superação da tese do primado dos direitos sociais sobre os direitos da liberdade, que inviabilizou o Estado Social de Direito, e da confusão entre direitos fundamentais e direitos sociais, que não permite a eficácia destes últimos sequer na sua dimensão mínima.

Trabalha com a ideia de mínimo existencial em sua dupla face: objetiva e subjetiva. A faceta objetiva coincide com o conteúdo essencial dos direitos fundamentais, sendo assegurado a todos sem distinção. Aponta como exemplo os direitos de eficácia negativa e os direitos positivos como o ensino fundamental, os serviços de pronto-socorro, as campanhas de vacinação pública etc. Como direito subjetivo, investe o cidadão na faculdade de acionar as garantias processuais e institucionais na defesa de seus direitos mínimos, característica que o autor destaca como status positivus libertatis[54].

Assim, do ponto de vista da efetividade, o mínimo existencial apresenta status negativus e status positivus libertatis. O status negativus que significa o poder de autodeterminação do indivíduo, a liberdade de ação ou de omissão sem qualquer constrangimento por parte do Estado. No campo tributário, se afirma através das imunidades fiscais. A proteção positiva do mínimo existencial se realiza de diversas formas, tais como, entrega de prestações de assistência social aos pobres, prestações de serviços públicos, auxílios a entidades filantrópicas, distribuição de bens públicos a populações carentes, enfim, entrega de prestações estatais[55]

Define os direitos que compõem positivamente o mínimo existencial, a saber: direito à seguridade social (saúde, previdência e assistência social), direito à educação, direito à moradia e direito à assistência jurídica[56].

O Direito à seguridade social como direito subjetivo, no entanto, é mínimo. Cita-se como exemplo o direito à saúde em que o autor limita o atendimento integral e gratuito às atividades preventivas, tais como campanhas de vacinação, erradicação das doenças endêmicas, combate às epidemias. Seguindo esta idéia, a medicina curativa deveria ser remunerada, salvo nos casos de indigentes ou pobres, que têm direito ao mínimo de saúde sem qualquer contraprestação financeira.

Destaca, nesta vertente, o problema atual de se limitar o que se considera direito fundamental, ensejando a prestação estatal gratuita e obrigatória, ou mero direito social, fora do mínimo existencial e dependente de escolhas orçamentárias e formulação de políticas públicas pelo legislador ordinário. Pontua que a partir da decisão prolatada no RE 271.286-RS, pelo STF, os tribunais passaram a extrair diretamente do art. 196, da CRFB a legitimidade para assegurar as prestações na área da saúde em casos de omissão administrativa ou legislativa. Não obstante o avanço implementado na defesa do mínimo existencial e do direito à saúde diante de uma atuação mais ativa do Judiciário, o autor adverte que estão sendo detectados inúmeros exageros no que concerne à extensão do direito a classes mais abastadas, ao invés de limitar à população pobre e miserável, além de inovações ousadas em matérias ligadas ao orçamento[57].

De fato, a doutrina vem se posicionando de forma mais equilibrada na questão de adjudicação individual de prestações de saúde, delimitando-a segundo a extensão do mínimo existencial, ou seja, limita a incidência do direito aos pobres e miseráveis, bem assim à obrigação estatal de garantir a medicina preventiva e de urgência[58].

O direito à educação, previsto constitucionalmente nos artigos 206, IV, e 208, II, segundo a linha do autor, deve ser interpretado como meramente programático, não gerando direito subjetivo público, excepcionando a classe pobre[59]. Não obstante, ressalva que ao ensino superior foi conferida a gratuidade, levando a um desequilíbrio no perfil de atendimento, na medida que, sendo insuficientes os recursos do orçamento, aumentam-se as verbas universitárias em detrimento do ensino primário, favorecendo-se, assim, classes mais abastadas que possuem maior capacidade de acesso àquelas.

Destaca Lobo Torres a imprecisão do termo “imunidade de taxas” quando se fala de educação, “pois não está em jogo apenas a proteção dos direitos fundamentais e o do mínimo existencial, mas do exercício de políticas públicas de sustentação de direitos sociais”[60].

No que tange ao direito à moradia, limita a jusfundamentalidade, característica que torna obrigatória a prestação positiva do Estado, aos indigentes e às pessoas sem-teto. O que foge a este núcleo, tornam-se direitos sociais dependentes de políticas públicas e opções orçamentárias. No seu status negativus, aparece como imunidade tributária, ressaltando a do IPTU, que protege as pessoas de baixa renda, os favelados, os idosos etc[61].

Por fim, relacionado ao direito à assistência jurídica, sustenta o professor que a proteção positiva é exercida, notadamente, pela Defensoria Pública, enquanto seu status negativus, aparece na forma de imunidade tributária, além de outras proteções para o acesso à justiça[62].

Para Ana Paula de Barcellos o mínimo existencial, formado pelas condições materiais básicas à existência, é composto por quatro elementos correspondentes ao núcleo da dignidade da pessoa humana: educação fundamental, a saúde básica, a assistência aos desamparados e o acesso à justiça. Por se tratarem de núcleo da dignidade da pessoa humana, assevera que possuem eficácia jurídica positiva e, por conseguinte, natureza de direito subjetivo exigível diante do Judiciário[63].

Ingo Sarlet defende que o mínimo existencial está diretamente relacionado ao princípio da dignidade humana[64], o qual é por ele denominado de “direitos fundamentais sociais mínimos”. Subdivide o tema em (i) direitos fundamentais na qualidade de direitos de defesa e (ii) direitos fundamentais como direitos a prestações. Estes últimos, encarados como direitos subjetivos a prestações, possuem certos limites de eficácia, segundo o autor, notadamente, a reserva do possível e a competência do legislativo[65]. Sua análise do direito a uma existência digna parte da problemática do salário mínimo, da assistência social, do direito à Previdência Social e o direito social à educação, aos quais reduz a jusfundamentalidade dos direitos sociais[66]. Vale a transcrição de trecho que sintetiza bem suas ideias:

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Assim, em todas as situações em que o argumento da reserva de competência do Legislativo (assim como o da separação dos poderes e demais objeções aos direitos sociais na condição de direitos subjetivos a prestações) esbarrar no valor maior da vida e da dignidade da pessoa humana, ou nas hipóteses em que, da análise dos bens constitucionais colidentes (fundamentais ou não) resultar a prevalência do direito social prestacional, poder-se-á sustentar, na esteira de Alexy e Canotilho, que, na esfera de um padrão mínimo existencial, haverá como reconhecer um direito subjetivo definitivo a prestações, admitindo-se, onde tal mínimo é ultrapassado, tão somente um direito subjetivo prima facie, já que – nesta seara – não há como resolver a problemática em termos de um tudo ou nada.[67]

Na visão de Robert Alexy descrita por Ana Paula de Barcellos[68]o mínimo existencial é visto como regra constitucional, resultado da ponderação dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade real. Demonstrar-se-á, a seguir, como o autor chegou a tal conclusão.

A ponderação possui dois momentos: (i) o da escolha entre qual dos princípios em jogo deve preponderar; e (ii) escolhido o princípio, o de qual das medidas que o realizam proporciona o melhor ponto de equilíbrio, por sacrificar em menor medida os demais princípios envolvidos.

Na hipótese, os princípios envolvidos são os da dignidade da pessoa humana e da igualdade real. Do primeiro, pode-se extrair a norma prima facie, tomada em toda a sua plenitude, que tornaria obrigatórias e sindicáveis pelo Poder Judiciário quaisquer medidas que de alguma forma realizassem tal objetivo. Do segundo, três outros princípios que se opõem a essa extensão de sentido, quais sejam, a separação de poderes (inclusive a competência de vinculação orçamentária), a competência do legislador democrático e o limite imposto pelos direitos de terceiros.

Pelo entendimento convencional, a separação dos poderes e a competência do legislador democrático atribuem ao Legislador, através do debate democrático, o sentido e alcance da ideia de dignidade humana, enquanto que ao Executivo caberia, privativamente, implementar programas que busquem realizar o princípio constitucional em referência. Ainda, a estes dois Poderes cabe, de forma exclusiva, a elaboração dos orçamentos e aplicação das receitas. Com base nestes dois princípios, assim, a intermediação do Legislativo e do Executivo seria sempre necessária à realização do princípio da dignidade humana, não cabendo ao Judiciário aplicá-lo diretamente.

O terceiro princípio, limite imposto pelos direitos de terceiros, condiciona a aplicação da dignidade até o limite legítimo de sacrifício da liberdade e propriedade dos indivíduos para o seu implemento geral. Tendo em conta que o implemento do princípio da dignidade envolve custos, na medida em que serão necessárias prestações a sua concretização, e estes custos serão arcados pela sociedade, na forma de tributos, prestações pessoais etc., até que ponto deve a propriedade/liberdade deve ser sacrificada para a realização do princípio da dignidade?

Na ponderação entre os princípios da dignidade, de um lado, separação dos poderes, competência do legislador democrático e os direitos de terceiro, de outro, devem ser considerados alguns argumentos a favor do primeiro. O princípio da separação dos Poderes e a competência orçamentária não são absolutos, por excepcionados pela própria Constituição, nem fins em si mesmos, mas meios para o controle do poder estatal e a garantia dos direitos individuais. Não havendo, assim, qualquer racionalidade na prevalência dos meios em detrimento dos fins, que é a dignidade humana. Ao contrário, o princípio do legislador democrático, realiza um fim em si mesmo, qual seja, o exercício do poder pelo povo. Não obstante, também não é um princípio absoluto, visto que as próprias Constituições restringem certas matérias da deliberação pelo Legislativo, como as cláusulas pétreas. O ponto reside, então, no estabelecimento de um conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana que, por tão relevante, não possa ficar a mercê das maiorias parlamentares.

Realizadas as ponderações acima, resta optar, dentre as medidas que o concretizam, a que menos sacrifica os demais princípios em jogo. Neste ponto, surge a garantia do mínimo existencial como regra e não mais como princípio. O mínimo existencial é a redução máxima que se pode fazer em atenção aos demais princípios, consubstanciando-se nas circunstâncias materiais mínimas a que todo o homem tem direito, sendo o núcleo irredutível da dignidade da pessoa humana.

Da ponderação realizada extraiu-se da norma programática que consagra o princípio da dignidade da pessoa humana um núcleo básico, que é transformado em regra diretamente sindicável pelo Judiciário: o mínimo existencial.

O mínimo existencial, nesta linha de pensamento, não estaria sujeito à interposição do legislador ordinário, nem à reserva do orçamento, posto que direitos subjetivos diretamente extraídos da Carta Constitucional, configurando-se em condições mínimas prévias ao exercício da liberdade.

Não obstante, o mínimo existencial não é ilimitado. Limites fáticos obstaculizam a sua efetivação, como custos orçamentários, liberdade fática, políticas públicas universalistas, que exigem programação orçamentária complexa, o aumento de carga tributária que exceda os limites da razoabilidade para fazer frente a uma programação orçamentária futura, circunstâncias de calamidade pública e guerra, subversão da ordem pública, que geram injustiças e inseguranças que não podem ser evitadas pelo Estado[69].

Apresentando uma perspectiva democrático-deliberativa para o delineamento do mínimo existencial, Cláudio Pereira de Souza Neto defende, no âmbito dos debates sobre a eficácia dos direitos sociais, que a fundamentalidade material dos direitos sociais engloba além dos meios necessários à garantia da subsistência com um mínimo de liberdade e dignidade, também a igualdade de meios para agir[70]. Com a finalidade de melhor explicitar seu ponto de vista, cita Carol Gould[71], cujas palavras estão transcritas abaixo:

A liberdade positiva, como valor fundamental para a justificação dos direitos, requer não só o reconhecimento de direitos civis e políticos, mas também o reconhecimento de direitos econômicos e sociais, aos quais pertencem a liberdade contra a dominação e a exploração e a positiva disponibilidade de condições materiais e sociais para agir. Sob esse prisma, os direitos humanos deveriam incluir não só direitos de proteção contra a interferência nas liberdades, mas também o que, por vezes, se denomina direitos a oportunidades e benefícios (opportunity and benefit rights), os quais incluem, prima facie, iguais direitos aos meios para agir, assim como os direitos aos meios de subsistência.

Para a democracia deliberativa garantir a dignidade implica em assegurar iguais condições para que as pessoas possam de fato escolher como querem viver suas vidas, se cada qual irá atingir seus projetos pessoais é um dado exclusivo ao esforço de cada um, não sendo matéria de competência estatal. Por outro lado, implementar um sistema de igualdade de oportunidades, atribuindo-se a todos os projetos pessoais de vida o mesmo valor e tratando-os com a mesma dignidade, seria um dever do Estado nesta visão. Os direitos fundamentais que caracterizem as “condições para a cooperação na deliberação democrática” seriam, então, diretamente aplicáveis e sindicáveis através do Judiciário[72].

Compilando os entendimentos acima apresentados, expõe-se a linha adotada neste trabalho, a qual defende a sindicabilidade direta dos direitos sociais, tão-somente, ao que se limita à definição do mínimo existencial, ou seja, em direitos como educação (infantil, básica e ensino médio), saúde preventiva e curativa (esta somente aos necessitados), acesso ao judiciário e assistência aos desamparados. Trata-se de um conteúdo mínimo de direitos que, por assegurar, tanto os iguais meios para agir como condições mínimas de subsistência digna, não devem aguardar eventual ação do legislador democrático para a sua concretização, como ocorre em face dos demais direitos sociais.

Dessarte, lida-se aqui com direitos extraíveis diretamente da Constituição, seara na qual o Judiciário deve demonstrar postura mais ativa em prol da sua efetividade, respeitando, todavia, a existência de alguns limites intransponíveis que, se subvertidos, ocasionarão violação de toda uma ordem jurídica em nome de uma suposta concretização “de um mínimo à existência digna”.

4.2. Reserva do possível e competência orçamentária

A formulação e implementação do orçamento cabe precipuamente ao Legislativo e ao Executivo, conforme fixação de competências estabelecida pela Carta Maior. Tratam-se de instituições mais capacitadas ao estabelecimento de prioridades e formulação de agendas às prestações estatais.

Por serem representantes do povo, eleitos através do voto, possuem maior legitimidade nas escolhas trágicas referentes aos gastos públicos, destacando que as demandas superam significativamente as possibilidades financeiras existentes.

Neste contexto se insere o que se denomina na doutrina de reserva do possível, conceito que veicula dois aspectos: a reserva do possível fática e a reserva do possível jurídica. A primeira lida com a inexistência fática de recursos e a segunda com a ausência de autorização orçamentária para determinado gasto[73].

Vale destacar o esclarecimento conceitual realizado por Ricardo Lobo Torres ao tema “reserva do possível”. Explicita que a expressão possui origem no Tribunal Constitucional Alemão, equivalendo à “reserva democrática”, possuindo um viés diferente do adotado pela maioria da doutrina brasileira. A ideia de “Reserva democrática” conduz à de legitimidade das prestações sociais, tão-somente, quando observado o princípio democrático da maioria e a concessão discricionária do Legislador, não se confundindo com a expressão “reserva do orçamento”, à qual pode se incorporar se a pretensão ao direito social vier a ser concedida pelo Legislativo[74].

A reserva do possível é um dos principais argumentos suscitados em desfavor dos direitos prestacionais. Trata-se de “dado concreto de que tais situações jurídicas demandam, para a sua efetivação, o dispêndio de recursos financeiros que o Estado, sabidamente, detém de forma limitada”. Por outro lado, mesmo que haja disponibilidade orçamentária e que a sua utilização não inviabilize outro direito fundamental, “não disporia o Judiciário de instrumentos jurídicos para, em última análise, determinar por via obliqua, uma reformulação do orçamento, documento formalmente legislativo para cuja confecção devem se somar, por determinação constitucional, os esforços do Executivo e do Legislativo”[75].

Ricardo Lobo Torres entende que os direitos sociais e econômicos, por não serem direitos fundamentais, sujeitam-se à reserva do possível e do orçamento. Adverte que “os direitos sociais devem se otimizar até o ponto em que não se prejudique o processo econômico nacional, não se comprometa a saúde das finanças públicas, não se violem direitos fundamentais nem se neutralizem as prestações por conflitos internos”. Complementa que a materialização dos direitos sociais depende de reserva da lei instituidora das políticas públicas, da reserva de lei orçamentária e de empenho da despesa por parte da Administração, posto que “a pretensão do cidadão é à política pública, e não à adjudicação individual de bens públicos”[76].

A alocação de verbas públicas é uma questão intrincada, visto que além de demandar questões de ordem formal, como autorização orçamentária e prévia dotação, exige uma visão prévia contextualizada das necessidades a que as verbas se destinarão a suprir.

A Administração, em etapa do processo de decisão quanto ao seu agir, delineia um “quadro normativo de ação”[77], ou seja, realiza uma diagnose do problema, a exploração das alternativas de solução, o sopesamento dos argumentos a favor e contrários a cada qual, a partir do qual se poderá quantificar o suporte financeiro necessário a sua concretização. Este quadro normativo de ação possui pretensão de continuidade e mesmo uma relação de dependência ou vinculação com outros quadros de ação.

Diante destes dados, a decisão judicial que remaneja recursos, através da abertura de créditos suplementares no orçamento em curso, ou determina a inclusão de recursos em orçamentos futuros, possui um caráter limitado ou mesmo pouco efetivo. De fato, estas determinações estão aptas a prover apenas pontualmente e momentaneamente os meios financeiros necessários a assegurar uma dada prestação, visto que sem qualquer engajamento com ações planejadas e com pretensão de continuidade.

Vanice Regina Lírio do Valle, ao realizar ilações acerca da interferência do Judiciário em questões orçamentárias, sustenta que “se temos em conta que o cenário de desenvolvimento de uma política pública dificilmente se esgotará em um único exercício financeiro, tem-se já um indicativo da insuficiência do mecanismo para fins de efetivo controle”[78]. Relata, também, a dificuldade do Judiciário, nas hipóteses de ausência total de políticas públicas, em quantificar o montante a ser alocado para a realização da prestação objeto da ação, uma vez que isto demanda um conhecimento prévio da ação ou programa a ser desenvolvido, dado que foge ao conhecimento deste Poder. Destaca, ainda, que uma ordem de remanejamento de recursos não quantificados resultará numa carga de indeterminação na decisão judicial que comprometerá a sua própria observância[79].

Na verdade, o remanejamento de recursos orçamentários vem sendo efetivado com mais ardor em sede de demandas individuais, com outorgas de prestações determinadas, que facilitam a quantificação dos recursos necessários.  No entanto, esta ação também se apresenta temerosa, tendo em conta seu forte traço individualista.

De fato, sendo os recursos escassos e insuficientes à cobertura de todas as demandas, a realocação de verbas públicas para uma determinada prestação individual, significa a diminuição na mesma proporção do montante destinado a outras atividades desenvolvidas pelo Poder Público, gerando efeitos ainda mais danosos do ponto de vista social. Tem-se, por conseguinte, verdadeira violação ao princípio da igualdade e inversão absoluta do discurso de busca de concretização de uma justiça distributiva, “consagrando uma espécie de direito à preferência em favor de um determinado jurisdicionado”[80], sem qualquer previsão constitucional para tanto.

Nesta linha, destacando os efeitos danosos da intervenção judicial no orçamento e a limitada efetividade na concretização dos direitos fundamentais através desta ação, vale transcrever a conclusão de Vanice Regina Lírio do Valle sobre o tema[81]:

Por tudo isso, pouco tem a tríade orçamentária a contribuir, seja, como elemento de informação quanto à ratio e aos critérios de priorização das políticas públicas nela efetivamente contidas, seja como caminho de coerção ao desenvolvimento de políticas públicas eficientes e eficazes. À vista do caráter simplesmente autorizativo da Lei de Meios, os próprios elementos de monitoramento da execução orçamentária – e a leitura do texto da Lei Complementar nº 101/00 evidencia isso – pautam-se por uma lógica predominantemente fiscal (déficit, superávit, riscos fiscais, metas fiscais, impacto orçamentário-financeiro, etc.), elemento a revelar não seja o caminho da intervenção orçamentária, o mais apto, em tese, à indicação da solução do problema da ausência ou insuficiência de políticas públicas.

Ricardo Lobo Torres realiza contraponto à questão, inclusive manifestando crítica ao Supremo Tribunal Federal que asseverou não estar o Executivo obrigado a pagar precatório judicial na ausência de recursos disponíveis, no que concerne à problemática do mínimo existencial, que tem prevalência sobre eventuais saldos de caixa. Nesta lógica, a reserva do possível não é extensiva ao mínimo existencial, sendo plenamente sindicável pelo Judiciário nos casos de omissão administrativa ou legislativa[82].

No mesmo sentido narrado se mostram as decisões abaixo relacionadas proferidas no âmbito decisório do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, respectivamente, vejamos:

“De se enfatizar que a educação compõe o mínimo existencial, de atendimento estritamente obrigatório para o Poder Público, dele não podendo se eximir qualquer das entidades que exercem as funções estatais.” (AI 564035, de 30/04/2007, DJ 15/05/2007, Min. Carmem Lúcia)

“’Teoria da Reserva do Possível’ em algumas hipóteses, em matéria de preservação dos direitos à vida e à saúde, aquela Corte não aplica tal entendimento, por considerar que ambas são bens máximos impossíveis de ter a sua proteção postergada.” (AgRg no Recurso Especial 898.458-RS, Ac. da 2ª Turma do STJ, de 02/10/2007, Rel. Min. Eliana Calmon)

Digno de nota é o enunciado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que inverte o ônus da prova, no que concerne à questão da observância da reserva do possível, cabendo aos Poderes Públicos a prova da violação à reserva orçamentária e dos limites financeiros existentes:

Enunciado de Súmula do TJ/RJ

Nº. 241 “Cabe ao ente público o ônus de demonstrar o atendimento à reserva do possível nas demandas que versem sobre efetivação de políticas públicas estabelecidas pela Constituição.”

REFERÊNCIA: Processo Administrativo nº. 0014104-12.2011.8.19.0000 - Julgamento em 06/06/2011 – Relator: Desembargador José Geraldo Antonio. Votação unânime.

Em casos extremos, destarte, abrem-se à competência judicial o controle da reserva orçamentária e da garantia do mínimo existencial. De qualquer sorte, não há como afastar a existência de limites fáticos, notadamente de natureza financeira, para a operacionalização do orçamento pelo Judiciário, que não pode promover o remanejamento de verbas além dos parâmetros da razoabilidade e da proporcionalidade[83].

A superação da omissão do legislador ou da lacuna orçamentária deve se realizar por instrumentos orçamentários previstos constitucionalmente. Na hipótese de inexistência de dotação orçamentária, a abertura dos créditos adicionais cabe ao Legislativo e ao Executivo e não ao Judiciário. Este apenas deve reconhecer que o mínimo existencial é irrestringível, determinando aos demais poderes a prática dos atos orçamentários cabíveis. Havendo dotação, mas sendo esta insuficiente, cabe ao Judiciário pressionar o Executivo a suplementá-la, destacando a necessidade de autorização legislativa (art. 167, V, da CRFB); não havendo a dotação, o Legislativo deve abrir crédito especial, com a anulação de despesa correspondente ao custo necessário (art. 166, § 3º, II e 167, V, da CRFB)[84].

Não há no direito brasileiro instrumento semelhante ao do mandado de injunção americano[85], que viabilize vinculação do Legislativo na feitura do orçamento do ano seguinte, de forma que ao Judiciário resta respeitar as regras existentes de direito orçamentário, com a abertura de créditos adicionais suplementares e especiais através do Executivo e Legislativo, nos casos de inexistência de verba ou sua insuficiência. No entanto, a realidade dos tribunais é outra, envolvendo decisões que determinam o bloqueio de verbas públicas, demonstrando uma atuação sem qualquer substrato no ordenamento pátrio, desarticulando perigosamente as finanças públicas[86].

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSENDEY, Maria Clara Moraes. Limites do controle jurisdicional das políticas públicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3939, 14 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27503. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Monografia apresentada, como requisito para a obtenção do título de Pós-graduada, ao Programa de Pós-Graduação Lato Sensu em Advocacia Pública, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Advocacia Pública.

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