1. Os Princípios da Capacidade Contributiva e da Isonomia Tributária
O princípio da capacidade contributiva decorre do princípio constitucional da isonomia, que assevera que todos devem ser tratados de forma igual perante a lei. Aponta-se, desde já, que nenhum princípio é absoluto, devendo ser sempre interpretado e aplicado conforme os ditames do caso concreto.
Historicamente, o princípio da isonomia tomou contornos mais elásticos, traduzido na forma da “Igualdade Substancial”, ou seja, os iguais devem ser tratados igualmente, da mesma forma que os desiguais devem ser tratados desigualmente.
No Direito Tributário, o princípio da isonomia foi tratado expressamente no art. 150, II da Constituição da República, com a seguinte redação:
"Art.150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios:
(...)
II – Instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos".
Com o intuito de efetivar o tratamento igualitário entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, o legislador constitucional fez constar em nossa Carta Magna o art. 145, §1º, cuja redação é a seguinte:
“Art. 145, §1º. Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica o contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.
Ressalte-se que, conforme se percebe da redação legal acima, a Constituição faz menciona expressamente somente os impostos. A nosso ver, parece-nos claro que ele se aplica a todos os tributos. Isto porque a Constituição de 1946, em seu art. 202 já asseverava que "os tributos terão caráter pessoal, sempre que isso for possível, e serão graduados conforme a capacidade econômica do contribuinte”. Com a Constituição de 1988 o termo “tributos” foi trocado por “impostos” não para restringir o âmbito de aplicação do referido princípio, mas para restringir a obrigatoriedade da sua aplicação.
Portanto, o princípio da capacidade contributiva impõe que, visando a solidariedade social, cada contribuinte entregue ao Estado parte de suas riquezas, na medida de suas possibilidades. O Imposto Sobre a Renda, por exemplo, incidirá por meio de alíquotas progressivas sobre as manifestações de riqueza de cada pessoa.
Conforme já foi visto anteriormente na transcrição do dispositivo constitucional, para que o Poder Público averigue a capacidade contributiva de cada contribuinte e possa tributar cada um de forma correta é possível que a administração tributária identifique o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas dos contribuintes, desde que respeitados direitos individuais.
Uma das formas de realizar tal identificação é através da quebra do sigilo bancário. Em regra, para que determinado órgão tenha acesso a dados restritos dos cidadãos se faz necessária ordem judicial devidamente fundamentada numa das hipóteses constitucionalmente permitidas, mas a partir da edição da Lei Complementar 105/2001 abriu-se a possibilidade da requisição destes dados confidenciais diretamente pelo Fisco, sem necessidade de autorização judicial.
2. A Quebra de Sigilo Bancário pelo Fisco
A edição da Lei Complementar 105/2001 tornou possível à Administração Tributária requisitar diretamente às instituições financeiras informações protegidas por sigilo bancário, independentemente de prévia autorização judicial, a fim de concretizar o princípio da capacidade contributiva. O único requisito imposto pela lei é que a requisição se dê em processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e que tais informações sejam consideradas indispensáveis pela autoridade administrativa competente.
Todavia, a referida norma entra em choque com a garantia de sigilo sobre dados e informações garantido constitucionalmente:
Art. 5º, XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.
Em sua defesa, a Fazenda Pública defende a constitucionalidade da medida sob o fundamento de que as informações buscadas são unicamente relativas a valores, não sendo possível obter outros dados sobre o contribuinte, nem saber qual a natureza dos gastos, razão pela qual não haveria violação a direitos fundamentais.
Argumenta, ainda, que se trata de realização do princípio da capacidade contributiva, permitindo a aferição das possibilidades de cada contribuinte e, assim, permite tributar cada um na medida da sua capacidade contributiva real, de forma que a quebra do sigilo bancário serviria para rechaçar tentativas de sonegação tributária.
Por fim, entende que as informações obtidas mantêm-se protegidas pelo sigilo fiscal que se impõe a ela (art. 198/CTN). Haveria uma transferência do dever de sigilo, da instituição financeira à Administração Fazendária. Os dados poderiam ser utilizados somente internamente pelo Fisco e jamais divulgados publicamente.
Por outro lado, existe corrente doutrinária favorável aos contribuintes, que sustenta a inconstitucionalidade do art. 6º da LC 105/2001. Segundo o entendimento destes, a referida norma violaria os direitos à privacidade, intimidade e ao sigilo de dados, todos contemplados no art. 5º da Constituição da República. Ademais, a quebra do sigilo bancário, nos termos da Constituição, só pode ocorrer mediante ordem judicial fundamentada, com respeito ao devido processo legal.
Afirma Celso Bastos que o acesso indiscriminado a dados bancários “expõe a segurança individual a um constante temor e é próprio do mais abjeto e repugnante autoritarismo”. Defende o autor que a quebra do sigilo deve se restringir a situações excepcionais de proteção a interesses de mesmo ou maior porte que o direito individual ao sigilo.
A violação do direito ao sigilo de dados, considerado direito fundamental, só pode ser realizada se observadas as garantias constitucionais. Qualquer tentativa de se dar tal poder a órgão parcial e que ocupa uma dos polos da relação jurídica é ato arbitrário e fere a Carta Política.
A Lei Complementar 105/2001, ao estender o poder de quebra do sigilo a órgãos parciais, retirou do cidadão o direito ao devido processo legal. Vale lembrar, que tal direito constitui cláusula pétrea e não admite qualquer forma de supressão num Estado Democrático de Direito.
Neste mesmo sentido afirma Uadi Lammêgo Bulos que: “pelo espírito e pela letra da Constituição Federal, a quebra do sigilo bancário é da alçada exclusiva do judiciário. Nenhum outro órgão da República poderá desempenhar idêntica atribuição. (...) É assim porque a partir do momento em que as constituições distribuem competências entre os órgãos do poder têm em vista a eliminação do arbítrio. Não é diferente com o sigilo bancário, pois não é o Estado-Administração que diz o direito, que garante as liberdades públicas. A tutela dos direitos do homem, aqui amplamente tomada, é missão conferida ao Judiciário, ainda mais no que tange ao controle dos atos ligados à privacidade”.
3. A Atual Posição do STF
Nos últimos anos, o STF foi instado diversas vezes a discutir a questão do acesso direto da Administração Tributária aos dados dos contribuintes. Porém, no que pese a importância do tema, nenhum posicionamento definitivo foi dado ainda.
Os tribunais e o próprio STF têm proferido decisões contraditórias, ora entendendo indispensável a autorização do Poder Judiciário para se obter acesso aos dados de instituições bancárias, ora permitindo ao Fisco o acesso direto.
No julgamento do RE 389.808, em que a questão central discutida era a inconstitucionalidade do art. 6º da Lei Complementar 105/2001, o STF pronunciou decisão no sentido de não ser permitido à Receita Federal acessar dados bancários dos contribuintes, sem antes requerer autorização judiciária. A Corte ressaltou a importância dos juízes na garantia dos direitos fundamentais constitucionais e do devido processo legal, visto que ocupam posição imparcial na relação jurídica processual.
A Corte asseverou que o artigo 5º, XII da Constituição da República assegura a inviolabilidade do sigilo das pessoas, a quebra deste sigilo é medida excepcional e só é válida se emanada do Poder Judiciário, com ato fundamentado e finalidade de investigação criminal ou durante a instrução processual penal.
Porém, nota-se que a decisão proferida neste Recurso Extraordinário se limita ao caso sub judice, não havendo que se falar em vinculação de outros órgãos do Poder Judiciário. Por outro lado, por se tratar de decisão do Pleno do STF, deve ser tida como precedente judicial e poderá ser utilizada para embasar decisões futuras nas instâncias inferiores em questões semelhantes.
4. Conclusão
Não obstante os argumentos trazidos à baila pela Administração Fazendária, não se pode permitir que a fiscalização de rendas e patrimônios dos contribuintes, com o intuito de fazer valer o princípio da capacidade contributiva, subjugue outro princípio constitucional que resguarda direitos individuais e que constitui um dos pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito.
O sigilo de informações, sejam correspondências ou movimentações financeiras, é um direito fundamental do cidadão. Direito que, decerto não seja absoluto, não pode ser violado por simples ato da administração pública.
Conclui-se, portanto, que o acesso a dados bancários resguardados por sigilo pelo Fisco, sem autorização judicial é inconstitucional por afrontar o art. 5º, XII da Constituição da República.
É este, até então, o posicionamento do Pleno do STF e, a nosso ver, acertado.
5. Referências Bibliográficas
ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 6ª ed. São Paulo: Método. 2012.
BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucioanis ao Poder de Tributar. Atual. Mizabel Abreu Machado Derzi. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 2011.
BASTOS, Celso. Curso de Direito Constitucional. 22ª ed. São Paulo: Malheiros. 2010.
BULOS, Uadi Lammêgo, Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva. 2012.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 31ª ed. São Paulo: Malheiros. 2010.