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A revogação do art. 28, I da Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União

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06/02/2015 às 13:51
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Não é possível entender-se que advogados públicos sejam impedidos de exercer atividade particular. A OAB possui competência para autorregulamentar a advocacia e a própria Constituição reconhece que o desempenho da advocacia privada pelo advogado público pode ocorrer licitamente. Quem perde com a proibição não é apenas a advocacia, mas a sociedade.

Ementa: Direito constitucional e administrativo. OAB. Competência constitucional. Autorregulamentação da advocacia liberal. Limite implícito ao poder de reforma constitucional. Advocacia-Geral da União. Sucessão de leis no tempo. Lei nº 8.906/94. Lei Complementar nº 73/93. Proibição de advogar. Regra legal ordinária. Revogação. Inconstitucionalidade de leis posteriores que venha a restabelecer a vedação.

Palavras-chaves: Advocacia. OAB. Autorregulamentação. Liberdade de profissão. Limite implícito ao poder de reforma constitucional.


A OAB reivindicou da ditadura militar a restauração da ação de habeas corpus, que talvez seja a garantia mais essencial da liberdade do homem.  Não é à toa que a Ordem mereceu um tratamento todo especial pela Constituição. Quando as instituições incumbidas da defesa da ordem jurídica falham ou se voltam contra o cidadão de bem, somente a advocacia pode garantir seus direitos fundamentais. A advocacia mostra-se desde aquela ocasião, que é uma das salvaguardas mais eficiente do Estado de Direito, das garantias individuais e das liberdades públicas[1].

A OAB não é um mero Conselho de Classe. A Ordem dos Advogados do Brasil é uma entidade sui generis, que ocupa uma posição ímpar no ordenamento jurídico brasileiro. Nenhum Conselho de Classe mereceu menção expressa na Constituição da República. A OAB, entretanto, é citada dezenas de vezes.

A entidade é responsável, em caráter exclusivo, pelo cadastramento do segmento profissional dos advogados, por sua fiscalização e até mesmo pela exclusão da capacidade postulatória do advogado expulso dos seus quadros, o que implica inviabilizar o exercício de uma garantia constitucional. Destarte, embora ente da sociedade civil, a OAB exerce o poder de polícia tal qual o Estado-Administração; pune e restringe direitos fundamentais, como o Estado-Justiça; interpreta e disciplina, mediante provimentos, a atividade da categoria, como o Estado-Legislador.

A Ordem dos Advogados do Brasil goza de imunidade tributária total em relação a seus bens, rendas e serviços (art. 45, §5º da Lei nº 8.906/94); seus atos conclusivos devem ser publicados na Imprensa Oficial ou afixados no fórum (art. 45 § 6º da Lei nº 8.906/94); pode instituir contribuições anuais obrigatórias dos seus membros, preços pelos seus serviços e multas que, uma vez reconhecidas em certidão do conselho competente, tornam-se títulos executivos extrajudiciais (arts. 46 e 47 da Lei nº 8.906/94).

A OAB participa largamente da formação da vontade do Estado: congrega advogados que têm o direito constitucional de ingressar nas fileiras do Poder Judiciário em situação díspar daquela prevista para os demais agentes do Estado. Seu Conselho Federal tem legitimidade para ajuizar ações diretas de inconstitucionalidade, que podem negar a validade de leis porque incompatíveis com a Constituição. Aos seus membros é garantida a participação nas bancas de concurso público para provimento de cargos das carreiras de Estado em toda Federação e assento permanente nos Conselhos Nacionais que fiscalizam a Justiça e o Ministério Público. Mas, essas são apenas enumerações do seu mais amplo papel institucional: a Ordem foi incumbida de defender a Constituição, a ordem jurídica, o Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas, bem como de promover, com exclusividade, a representação, a defesa, a seleção e a disciplina dos advogados em toda a República Federativa do Brasil.

A Ordem dos Advogados do Brasil é uma figura ímpar no cenário jurídico brasileiro, que desempenha um serviço público, mas desatrelado de qualquer tutela ou vinculação hierárquica a qualquer órgão do Estado. O desenho atual da OAB, que é uma entidade da sociedade civil, foi moldado pela história política do País, que a tem como guardiã da liberdade e dos direitos individuais[2], o que transforma a advocacia numa trincheira republicana, que submete todos à lei, até mesmo o Poder Público. A suigeneriedade da Ordem – com a escusa o neologismo – só encontra paralelo na Imprensa, que tem a liberdade é sua marca mais notável.

A posição da Ordem dos Advogados no Brasil, no texto supremo, faz parte da própria identidade da Constituição. Sua configuração diz respeito aos princípios fundamentais da República, sobretudo no que se refere à proteção e promoção da cidadania, da dignidade da pessoa humana, da livre-iniciativa e da democracia.

Por sua relevância para o Estado Democrático de Direito, a competência constitucional da OAB é um limite implícito ao poder de reforma da Constituição. Com efeito “[e]ntre os limites implícitos que harmonizam com o direito constitucional positivo brasileiro, há que destacar, em primeiro plano, a impossibilidade de proceder-se a uma reforma total ou, pelo menos, que tenha por objeto a supressão dos princípios fundamentais de nossa ordem constitucional. Aliás, aplicando-se efetivamente este princípio (inalterabilidade da identidade da Constituição), até mesmo a existência de limites expressos parece dispensável, já que os princípios e direitos fundamentais, assim como as decisões essenciais sobre a forma de Estado e de governo fatalmente não poderiam ser objeto de abolição ou esvaziamento”[3].

O Congresso Nacional regulamentou a competência constitucional da OAB pela Lei nº 8.906/94, que lhe dá, em caráter exclusivo, a competência para autorregulamentar a advocacia, revogando as intromissões indevidas que a lei franqueava a órgãos do Poder Executivo, a exemplo do art. 28, I da LC nº 73/93, ao mesmo tempo em que interdiz, por se tratar de um limite implícito do poder de reforma constitucional[4], qualquer tentativa posterior de esvaziamento ou abolição da competência da Ordem sobre a disciplina da advocacia liberal no Brasil.

O exercício da advocacia é um munus público. A Constituição Federal, nas seções II e III, tratou a atividade da advocacia num mesmo capítulo e lhe conferiu a mesma natureza de função essencial à justiça. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal foi ainda mais longe. Ao apreciar a questão da intimação pessoal dos procuradores federais, o Ministro Gilmar Mendes, decidiu, obter dictum, que “os fatos demonstrariam que a advocacia pública atuaria em igualdade com a advocacia privada” (ARE 648629/RJ, rel. Min. Luiz Fux, 24.4.2013). A advocacia, em sua essência, é uma só e está submetida à autorregulamentação da OAB, conforme art. 3º, §1º da Lei nº 8.906/94.

A possibilidade do exercício da advocacia fora das atribuições funcionais, a advocacia liberal ou a apelidada “advocacia privada”, decorre da dupla submissão dos advogados públicos ao regime estatutário e ao Estatuto da OAB, cujo art. 3º, §1º, reza que “exercem atividade de advocacia, sujeitando-se ao regime desta lei, além do regime próprio a que se subordinem, os integrantes da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria da Fazenda Nacional, da Defensoria Pública e das Procuradorias e Consultorias Jurídicas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas entidades de administração indireta e fundacional”.

A questão transcende a mera defesa de prerrogativa dos advogados do Estado e se coloca na exata definição dos aspectos da vida do advogado público que podem ser regulados pelo regime estatutário daqueles que somente podem ser regidos com absoluta exclusividade pela OAB.

A propósito da competência da OAB para autorregulamentar a advocacia, a Advocacia-Geral da União se valeu, como argumento, da decisão do Conselho Federal da OAB, por ocasião do ajuizamento de diversas ações populares contra a União, questionando a imparcialidade dos julgamentos do CARF, órgão julgador de recursos do Ministério da Fazenda que abriga advogados militantes em sua composição. Segundo a AGU, “os advogados que participam de tribunais ou conselhos administrativos não estão impedidos de advogar e vice-versa. No caso específico o participante, como todos os membros, tem se declarado impedido em processos que ele possa ter alguma relação ou interesse”[5].

A Constituição Federal fez da Ordem dos Advogados do Brasil, do seu Conselho Federal e dos advogados uma matéria. Essa foi uma das conclusões do Ministro Carlos Britto, no julgamento da ADI 3026-4/DF, na qual o STF destacou a natureza sui generis da OAB, que presta um serviço público independente, desafetada de qualquer vinculação ou subordinação ao Poder Público.

Em decisão recente, o Superior Tribunal de Justiça assentou que

compete exclusivamente à OAB averiguar se o caso é de incompatibilidade ou de impedimento para o exercício da advocacia e decidir em qual situação devem ser enquadrados os ocupantes de cargos ou funções referidos nos arts. 28 a 30 do Estatuto da Advocacia. Precedente citado: AgRg no REsp 1.287.861-CE, Segunda Turma, DJe 5/3/2012. AgRg no REsp  1.448.577-RN, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 7/8/2014

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE nº 603.583/RS, em decisão do Min. Marco Aurélio Mello, já havia firmado que

A Ordem dos Advogados do Brasil, precisamente em razão das atividades que desempenha, não poderia ficar submetida à regulamentação presidencial ou a qualquer órgão público, não só quanto ao exame de conhecimentos, mas também no tocante à inteira interpretação da disciplina da Lei nº 8.906/94, consoante se verifica do artigo 78, a determinar que cabe ao Conselho Federal expedir o regulamento geral do estatuto. Nesse campo, a vontade superior do Chefe do Executivo não deve prevalecer, mas sim a dos representantes da própria categoria.

Nesse mesmo julgamento, o Min. Luiz Fux ressaltou que, ao desempenhar suas funções,

“a própria legitimidade democrática da regulação profissional da advocacia também repousará na observância da visão concreta do mercado e de suas práticas usuais (em constante transformação), sem prejuízo das medidas corretivas que se eventualmente fizerem necessárias. Portanto, conferir à entidade de classe a fixação dos marcos regulatórios que orientarão a atividade profissional de seus próprios filiados é, em princípio, consagrar a reflexividade”.

Para a doutrina, não é diferente. Segundo Alexandre Santos de Aragão[6], a

regulação pública não estatal, pela qual as entidades sociais, normalmente concernentes a determinado setor profissional (entre nós, por exemplo, os conselhos profissionais e as entidades desportivas), assumem, no seu âmbito, a função de regulação sem que, contudo, sejam transformados em órgãos do Estado, que, todavia, lhes empresta sua autoridade por via legislativa ou constitucional (verbi gratia, arts. 207 e 217, I da CF). O mesmo se diga das normas das bolsas de valores, do Operador Nacional do Sistema Elétrico – ONS, da Academia Brasileira de Letras, da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, todas associações privadas que, por chancela legal, se impõem coercitivamente aos seus destinatários”.

A proibição do exercício da advocacia fora das atribuições funcionais, que a OAB – Seção Rio de Janeiro entendeu inválida, ignora que a Constituição Federal, no que tange à nomeação de advogados da União e procuradores de Estado para vagas de Ministros nos Tribunais, demonstra que o exercício liberal da advocacia por um advogado público pode congregar o notório saber jurídico e a reputação ilibada exigida para o posto (art. 101 da CF), sem incidir em qualquer situação de conflito de interesses ou em vedações legais. Na verdade, a proibição parece adotar uma presunção de má-fé seletivamente direcionada aos advogados públicos federais.

Logo, a própria Constituição reconhece que o desempenho da advocacia privada pelo advogado público pode ocorrer licitamente, uma vez que as situações de conflito de interesses no exercício da advocacia estão bem traduzidas nas incompatibilidade e impedimentos dos arts. 28 a 30 do Estatuto da OAB. Quem perde com a proibição não é apenas a advocacia, mas a sociedade. A esse respeito, o Ministro Marco Aurélio Mello, na decisão do RE nº 603.583/RS, entendeu que “a garantia constitucional de acesso à Justiça e à tutela jurisdicional efetiva, prevista no inciso XXXV do art. 5º da Carta Federal, além de exigir o aparelhamento do Poder Judiciário, também impõe que seja posto à disposição da coletividade corpo de advogados capazes de exercer livre e plenamente a profissão”.

No particular, a natureza jurídica da competência da OAB – que não está expressa no texto da Constituição – traz consequências distintas sobre a vigência da legislação anterior ao Estatuto, bem como sobre a validade da legislação posterior que trata do exercício da advocacia liberal, que é matéria sujeita a sua exclusiva autorregulamentação.

Com efeito, uma lei é revogada por outra quando assim dispõe expressamente, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente matéria de que tratava lei anterior. É essa a regra enunciada pelo art. 2º, §1º da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro.

A primeira hipótese é de fácil constatação, quando uma lei nova aponta qual legislação é por ela revogada. No entanto, a segunda hipótese, quando a sucessão de leis implica tratamento diferente aos mesmos fatos, há espaço para divergência, uma vez que se adentra ao terreno da interpretação, dos quais é possível extrair do texto legal diferentes normas que podem regular de forma diferente o mesmo fato.

É o que acontece com o Estatuto da OAB. O art. 87 da Lei nº 8.906/94, a par de indicar as leis que foram por ele revogadas, também enuncia que “revogam-se as disposições em contrário”. Houve, portanto, a revogação do art. 28, I da LC nº 73/93 pelos arts. 3º, §1º, art. 30, I e art. 87 do Estatuto da OAB.

A Advocacia-Geral da União e seus órgãos vinculados são tratados pelo art. 131 §§ 1º a 3º da Constituição Federal, in verbis:

“Art.131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.

§ 1º A Advocacia-Geral da União tem por chefe o Advogado-Geral da União, de livre nomeação pelo Presidente da República dentre cidadãos maiores de trinta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada.

§ 2º O ingresso nas classes iniciais das carreiras da instituição de que trata este artigo far-se-á mediante concurso público de provas e títulos.

§3º Na execução da dívida ativa de natureza tributária, a representação da União cabe à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, observado o disposto em lei”.

A Constituição disciplinou que compete à AGU a representação judicial e extrajudicial da União, a consultoria e assessoramento do Poder Executivo, bem como a execução da dívida ativa de natureza tributária e remeteu à Lei Complementar apenas as questões relativas à organização e ao funcionamento da Advocacia-Geral da União.

No julgamento do RE n º 539.370/RJ, o Supremo Tribunal Federal decidiu, expressamente, que a Lei Orgânica da AGU tratou de matérias que não são reservadas à lei complementar. No caso, o STF entendeu que temas atinentes aos direitos e deveres dos membros da Advocacia-Geral da União, a exemplo da quantidade de dias de férias, não dizem respeito à organização e funcionamento do órgão. Assim, o Supremo aceitou que Lei Ordinária (art. 77 da Lei nº 8.112/90), que reduzisse de 60 para 30 dias o período de férias de Procurador da Fazenda Nacional, reconhecendo assim a revogação art. 30 do Decreto-lei nº 157/67, que havia sido recepcionado pela Constituição Federal com natureza de Lei Complementar (art. 34 § 5º do ADCT). Para o Supremo, nem o argumento de que o Decreto-lei nº 157/67 seria uma lei especial em face à Lei nº 8.112/91 prevaleceu: em matéria de direitos e deveres, os integrantes da AGU deveriam ter tratamento, num regime jurídico único, com os demais servidores do Poder Executivo.

A Lei Orgânica da AGU trata de diversos temas sobre os quais poderiam existir discussões sobre a natureza da regra: se complementar ou ordinária. Sobre três matérias, no entanto, não há essa dúvida. São tratadas inegavelmente por regras de natureza ordinária: (1) as férias do procurador; (2) a idade mínima para assumir a Consultoria de Ministério; e (3) a proibição do exercício da advocacia.

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 A questão das férias foi decidida pelo STF no julgamento do RE n º 539.370/RJ e do RE nº 602.381/AL, que entendeu que “questões funcionais” são da alçada de lei ordinária.

Já a questão do limite etário para assumir cargo de Consultor de Ministério na estrutura da Advocacia-Geral da União foi abordada pela Medida Provisória nº 2180-35/2001[7] que revogou o art. 55 da LC nº 73/93, que fixava idade mínima para o advogado assumir o cargo.

Por sua vez, a proibição da advocacia foi objeto do art. 38 §1º, I da Medida Provisória nº 2.229-43/2001, que repetiu a vedação, em caráter absoluto, em desfavor dos procuradores federais.

Ora, se a exigência de idade mínima ou a proibição da advocacia fossem realmente matérias de lei complementar, jamais poderiam ser veiculadas por Medidas Provisórias porque elas não podem tratar, dentre outros temas, sobre matéria reservada à lei complementar, conforme art. 62 § 1º, III da CF/88, in verbis:

 “Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.

§ 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria:

(...)

III - reservada a lei complementar;”

Se tantas Medidas Provisórias modificaram validamente a Lei Complementar nº 73/93, está claro que assuntos como a proibição de advogar, férias e idade mínima para assumir cargo consultor – ou seja, direitos e vedações ou questões funcionais de uma forma geral – não são temas sujeitos à reserva do legislador complementar.

Nessa perspectiva, o art. 30, I da Lei nº 8.906/94, que trata de servidores de uma forma geral, por ser lei posterior, revogou o art. 28, I da LC nº 73/93 porque regulou, de forma diferente, a mesma matéria tratada pela lei anterior. Lex posterior derrogat priori (art. 2º § 1º da LINDB). Nesse sentido:

 "Art. 3º O exercício da atividade de advocacia no território brasileiro e a denominação de advogado são privativos dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB),

§ 1º Exercem atividade de advocacia, sujeitando-se ao regime desta lei, além do regime próprio a que se subordinem, os integrantes da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria da Fazenda Nacional, da Defensoria Pública e das Procuradorias e Consultorias Jurídicas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas entidades de administração indireta e fundacional.

(...)

Art. 30. São impedidos de exercer a advocacia:

I - os servidores da administração direta, indireta e fundacional, contra a Fazenda Pública que os remunere ou à qual seja vinculada a entidade empregadora;”

Se não houver vedação expressa na Constituição Federal, como aconteceu com o Ministério Público e a Defensoria Pública (art. 128, II, “b” e art. 134, §1º da CF/88), somente haverá o impedimento – e não a vedação completa – de advogar estabelecido no Estatuto da OAB, uma vez que a matéria não está reservada à lei complementar. Como à OAB foi reconhecida a competência exclusiva para autorregulamentar a advocacia (ADI 3026-4/DF e no RE nº 603.583/RS), qualquer intrusão nessa esfera de competência, ainda por cima, pode ser tida como inconstitucional, por usurpar a atribuição desse ente sui generis, que presta um serviço público independente.

Esse raciocínio sobre a submissão da advocacia fora das atribuições funcionais a Estatutos próprios da OAB foi ratificado em diversos diplomas legislativos posteriores. Dispondo sobre atos atentatórios à dignidade da Jurisdição, a Lei nº 10.538/2001 excluiu expressamente os advogados da incidência do art. 14, V do CPC, in verbis:

“Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo:

(...)

V - cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final. 

Parágrafo único. Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB, a violação do disposto no inciso V deste artigo constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado. (Incluído pela Lei nº 10.358, de 2001)

O dispositivo foi objeto da ADI nº 2652/DF, no qual o seu Relator, o Ministro Maurício Corrêa, entendeu que os advogados públicos também estão incluídos no alcance da norma, que não poderia discriminá-los com relação aos direitos do Estatuto da OAB. Em composição mais recente, o STF no julgamento das Reclamações nº 5.133 e nº 7.181, Relª Min. Carmen Lúcia e Reclamação nº 13.195, Rel. Min, Dias Tóffoli, afirmaram os procuradores federais, carreira que inexistia quando julgada aquela ADI, também estão incluídos nessa ressalva.  

A lei mais importante que confirmou a revogação do art. 28, I da LOAGU foi a Lei nº 11.890/2008, cujo art. 6º permitiu ao membro da Advocacia-Geral da União o exercício de profissões liberais. A propósito:

“Art. 6º  Aos titulares dos cargos de que tratam os  incisos I a V do caput e o  § 1º do art. 1º da Lei nº 11.358, de 19 de outubro de 2006, aplica-se o regime de dedicação exclusiva, com o impedimento do exercício de outra atividade remunerada, pública ou privada, potencialmente causadora de conflito de interesses, ressalvado o exercício do magistério, havendo compatibilidade de horários”.  

Assim, procurador federal está impedido do “exercício de outra atividade remunerada, pública ou privada, potencialmente causadora de conflito de interesses, ressalvado o exercício do magistério, havendo compatibilidade de horários”. Podem ser professores, empresários, músicos, membros de conselhos de administração de sociedades anônimas, corretores de imóveis, donos de cartório[8] ou até mesmo conferencista de cargas em portos[9]. Em resumo, não havendo conflito de interesses, o advogado público pode ser tudo, menos advogado. 

Essa é a interpretação dada pela Advocacia-Geral da União ao dispositivo legal, conforme no Parecer nº 22/2012/DEPCONS/PGF/AGU, aprovado em 23.04.2012 pelo Procurador-Geral Federal, no processo administrativo nº 00407.004734/2011-56, no qual se assentou que “ainda que a redação do caput do art. 6º citado produza certas perplexidades - já que cria um regime de ‘dedicação exclusiva’ que, na verdade, inclui a possibilidade de uma imensa e variada gama de atividades para além do magistério, quais sejam, todas aquelas atividades remuneradas que não gerem, ainda que potencialmente, conflito de interesses com o cargo e suas atribuições (...)”.

Na verdade, essa interpretação não é inovação da Lei nº 11.890/2008. Ela já existia no âmbito privado. Segundo o TST, a dedicação exclusiva do advogado empregado não o impede, fora do horário de trabalho contratado, de exercer seu mister para outra pessoa. Nesse sentido:

TST: “HORAS EXTRAORDINÁRIAS. ADVOGADO BANCÁRIO. DEDICAÇÃO EXCLUSIVA. CONFIGURAÇÃO. JORNADA CONTRATUAL DE 8 HORAS DIÁRIAS e CONTRATAÇÃO ANTERIOR À LEI 8.906/94. ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL 403 DA SBDI-1/TST. Esta c. Corte estabeleceu o entendimento de que o regime de dedicação exclusiva não deriva do fato de o advogado empregado não poder prestar serviços a outros empregadores; a dedicação exclusiva decorre, em verdade, da jornada prevista no contrato de trabalho. Assim, se o advogado empregado tiver sido admitido para cumprir jornada de 8 horas diárias ou 40 horas semanais, trabalhará em regime de dedicação exclusiva, enquadrando-se na exceção contida no art. 20 da Lei 8.906/94, pelo que não fará jus à jornada reduzida de 4 horas diárias e 20 semanais. Conforme delimitação regional, a reclamante ingressou no banco reclamado, em 1977, como escriturária, e, em 1984, assumiu o cargo de advogada. Destacou ainda o eg. TRT ser incontroverso que a jornada de trabalho diária praticada pela reclamante sempre foi de 8 horas. Nesses termos, verifica-se que de fato a reclamante estava submetida ao regime de dedicação exclusiva, com jornada de 8 horas diárias por dois motivos: 1) em razão da contratação para jornada de 8 horas diárias e 40 horas semanais antes do advento da Lei 8.906/94 (incidência da Orientação Jurisprudencial 403 da SBDI-1/TST); e 2) ante o próprio cumprimento da jornada contratual de 8 horas diárias, independentemente da possibilidade de prestação de serviços a outros empregadores. Assim, aplica-se à autora a jornada de 8 horas diárias e 40 horas semanais, não se cogitando do pagamento de horas extraordinárias excedentes à 4ª diária, nos termos do art. 20 da Lei 8.906/94. Recurso de revista conhecido e provido. (...)” (Recurso de Revista nº 1209-53.2011.5.08.0007 , Rel. Min. Aloysio Corrêa da Veiga, Data de Julgamento: 21/11/2012, 6ª Turma, Data de Publicação: 01/03/2013) (grifos nossos)

Até mesmo a lei que tratou do regime de dedicação exclusiva não albergou tamanha castração pretendida pelo art. 28, I da LOAGU. Nesse sentido, reza o art. 12, parágrafo único, inciso II da Lei nº 4.345/64:

“Art. 12. Considera-se regime de tempo integral o exercício da atividade funcional sob dedicação exclusiva, ficando o funcionário proibido de exercer cumulativamente outro cargo, função ou atividade particular de caráter empregatício profissional ou pública de qualquer natureza.

Parágrafo único - Não se compreendem na proibição dêste artigo:

(…)

II. as atividades que, sem caráter de emprêgo, se destinam à difusão e aplicação de idéias e conhecimentos, excluídas as que impossibilitem ou prejudiquem a execução das tarefas inerentes ao regime de tempo integral;”

Pelo visto, o art. 28, I da LC nº 73/93, que já foi revogado pelos arts. 3º,§1º e 30, I do Estatuto da Advocacia, tentou dar ao regime de dedicação exclusiva restrições que nunca teve e, o que é pior, criando um regime de “dedicação exclusiva” de apenas uma atividade, afinal, depois da Lei nº 11.890/2008, é possível ao procurador da União o exercício de qualquer profissão no meio privado.

Efetivamente, depois do regime inaugurado pelo art. 6º da Lei nº 11.890/2008, o procurador, como servidor do Executivo, teve reconhecida a possibilidade de exercer, no meio privado, qualquer profissão que não causa conflito ou incompatibilidade com o serviço público. Assim, entender pela validade do art. 28, I da LOAGU é concluir que na Advocacia-Geral da União existe um regime de dedicação exclusiva de uma atividade só.

Ao contrário Ao contrário do que fez com os Membros da Magistratura, do Ministério Público e da Defensoria Pública, a Constituição Federal não vedou o exercício da advocacia pelos membros da AGU e, ainda por cima, reconheceu o direito adquirido dos Procuradores da República que optaram pelos direitos e vedações do regime anterior, quando eram encarregados da representação judicial da União, hoje a cargo da AGU (art. 128, II, “b”, art. 134, §1º da CF/88 e art. 29, §3º do ADCT). E não faz o menor sentido reconhecer o direito de advogar dos antigos advogados públicos e deixar de fazê-lo para quem atualmente exerce esse papel.

Como o texto constitucional não contém palavras inúteis, a ausência da proibição do exercício da advocacia sobre as carreiras que compõem advocacia pública não é mera lacuna: trata-se de silêncio eloquente[10]. Não se quer dizer que todo regramento da carreira deva estar na Constituição. A lei tem liberdade para conformá-lo, mas dentro dos limites trazidos pelo próprio texto constitucional.

Essa omissão não ocorreu à toa. O regime jurídico único dos servidores do Poder Executivo, diante do atual texto constitucional, é o critério definidor de quais direitos e obrigações criadas por leis para os advogados públicos são compatíveis com a Constituição.

Com efeito, decidiu o Min. Joaquim Barbosa, na ADI nº 291/MT, que “as atribuições dos Procuradores de Estado não guardam pertinência com a dos membros dessas instituições [Ministério Público e Defensoria Pública], que têm deveres e atribuições próprios, inconfundíveis com as de agentes sujeitos ao princípio hierárquico”. Se são tolhidos direitos dos advogados públicos que destoam desse parâmetro, devem ser tolhidas obrigações que também não se adequam a ele, sob pena de consagrar dois pesos e duas medidas. Por essa razão, não faz sentido, em nível infraconstitucional, criar uma vedação equiparada àquela que existe no Ministério Público e na Defensoria Pública. A proibição do exercício da profissão de advogado, que é um direito fundamental e uma função essencial à Justiça, só se justificaria se estivesse presente na própria Constituição.

No mesmo sentido, as lições de Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires e Gustavo Gonet Branco. Segundo eles “[a] Constituição não assegura independência funcional ao advogado público, e o STF já estimou contrária à Constituição norma estadual que o estabelecia (ADI 470, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 11-10-2002). No precedente, não se negou a importância da independência profissional do advogado público, sobretudo em atuação de consultoria, mas se assinalou que as prerrogativas próprias de todo advogado seriam bastantes, não se justificando, como afirmou o voto vogal do Ministro Sepúlveda Pertence, a ‘assimilação completa do advogado público ao membro do Ministério Público’”.

Não faz sentido, assim, criar uma vedação equiparada àquela existente na disciplina constitucional do Ministério Público e na Defensoria Pública, que têm direitos e deveres amparados numa disciplina constitucional distinta, ceifando os advogados públicos das prerrogativas inerentes à sua condição de advogados.

Quando a Constituição se calou sobre a permissão do exercício da advocacia fora das atribuições funcionais pelos advogados públicos, mas proibiu expressamente outras categorias, ela quis dizer que estava vedado ao constituinte ou ao legislador ordinário estabelecer esse tipo de restrição aos advogados públicos. Silêncio eloquente é norma constitucional proibitiva obtida, a contrario sensu, de interpretações segundo as quais a simples ausência de disposição constitucional significa a proibição de determinada prática por parte dos órgãos constituídos, incluindo o próprio legislador infraconstitucional, no caso, a proibição de vedar o exercício da profissão dos advogados públicos fora de suas atribuições funcionais.

Sobre o assunto, leciona Carlos Maximiliano[11] que o silêncio também pode ser interpretado de modo a revelar o conteúdo da norma. Assim, o silêncio da Constituição importa a impossibilidade de se restringir o livre exercício profissional do advogado público, fora de suas atribuições funcionais, além daquilo que sejam “qualificações profissionais” mencionadas na parte final do art. 5º, XIII da CF.

Recentemente, ao apreciar o caso do Vice-Governador de São Paulo, que assumiu o Ministério da Micro e Pequena Empresa no Governo Federal, a Advocacia-Geral da União, no Parecer ASMG/CGU/AGU/04/2013, defendeu a mesma tese: a inexistência de vedação na Constituição Federal para o exercício do múnus público de Ministro de Estado por um Vice-Governador significa a proibição de fazê-lo. Segundo o parecer oficial, “[n]ão há rol de impedimentos para o exercício do múnus de chefe da pasta ministerial. Atendida a regra do art. 87 da Constituição, que exige brasileiros maiores de vinte e um anos e exercício dos direitos políticos, não se pode criar constrangimento ou limitação, que não os já referidos na citada norma constitucional”.

Já no que diz respeito à possibilidade de ocorrência de conflito de interesses, a Advocacia-Geral da União, no mesmo parecer, esclareceu uma série de dúvidas sobre a regra. Calha transcrever os seguintes trechos, que têm identidade com o caso em apreço:

“4. Ainda que matizada por intensa altercação política (no contexto da democracia enquanto ideal também normativo), por alguma inquirição ética, e por muita animosidade partidária e midiática, a questão também é jurídica, resolvida por simples operação de subsunção, de vinculação dos fatos questionados com as normas constitucionais e legais aplicáveis à espécie.

(...)

8. Alguma literalidade é necessária na compreensão do presente problema, dado que – como se verá – a chave interpretativa da questão é objetivamente de leitura de lei, ainda que substancializada por forte ingrediente histórico.

(...)

15. Há um debate jurídico, a partir da Constituição Federal, bem como há uma discussão política, centrada em hipóteses que só o tempo pode confirmar (ou não), a exemplo, principalmente, do imaginário fenômeno da incompatibilidade funcional.

(...)

30. Houve demanda presidencial, no sentido de que Vice-Governador assumisse Ministério, de superlativa importância para o País, situação que enseja que se discuta a questão, do ponto de vista constitucional, à luz de um método hermenêutico-concretizador, centrado na pré-compreensão do intérprete, a quem compete concretizar a norma a partir de dada situação histórica, que outra coisa não é senão o ambiente em que o problema é posto a exame, para que se resolva à luz da Constituição e não segundo critérios pessoais de justiça”

(...)

38. (...) Por outro lado, haveria suposta preocupação junto à Assembleia Legislativa de São Paulo, no que se refere a eventual dissenso entre a chefia desta Pasta, por parte do Vice-Governador, em face do supremo dogma da impessoalidade na atuação pública, situação que se tentou ilustrar por argumento relativo à suposta antinomia entre decisão que oponha a Pasta Ministerial e a Junta Comercial do Estado de São Paulo.

(...)

39. O exemplo da Junta Comercial transita no campo do pressuposto, do imaginário, de situação pendente de ocorrência empírica, ainda não ocorrida. Tem-se como premissa imaginário e incontornável conflito federativo vertical, com base em permanente e não menos imaginária guerra entre unidade federada e governo central. Distancia-se do jurídico, centra-se no político e no regime de presunções”.

A lei define conflito de interesses como “a situação gerada pelo confronto entre interesses públicos e privados, que possa comprometer o interesse coletivo ou influenciar, de maneira imprópria, o desempenho da função pública”. Mas, como disse o parecer da AGU, esse conflito não é presumido. Precisa de base empírica que comprove o prejuízo ao serviço público federal, a intenção de lesar a coisa pública mediante o exercício profissional.

É interessante que os argumentos em favor da proibição ignoram que a própria Constituição, no que tange à nomeação de advogados da União e procuradores de Estado para vagas de Desembargadores e Ministros nos Tribunais mostra que o livre exercício da advocacia por um advogado público pode congregar o notório saber jurídico e a reputação ilibada exigida para o posto (art. 101 da CF), sem incidir numa situação de conflito de interesses ou em vedações legais. Na verdade, a proibição parece adota uma presunção de má-fé seletivamente direcionada aos advogados públicos.

Esse é outro grave defeito dos argumentos que defendem a validade da proibição. Alegar, sem base empírica, que o exercício de uma profissão liberal pode causar conflitos de interesses equivale a presumir a má-fé, desconsiderando que a advocacia pode ser exercida, licitamente, nos espaços permitidos pela lei, sem que haja qualquer conflito. Quem age fora da lei não se intimida com uma proibição legal: sua ação está fora da licitude. O art. 28, I da LC nº 73/93 pune os bons, querendo atingir os maus, numa tentativa autoritária de levar para o texto legal discurso do “politicamente correto”.

A esse respeito,o professor Elias Thomé Saliba, titular de História da USP, ensina que “(o politicamente correto) é uma criação ideológica característica de sociedades que perderam o norte dos padrões morais e acabaram por impor regras casuísticas tópicas, que só conseguem estabelecer limites arbitrários. Batizado com outros nomes ou disfarçado de alguma forma de censura, o ‘politicamente correto’ sempre existiu em sociedades que viveram momentos distópicos, quando a ausência de cenários futuros deixou de ensejar padrões morais estáveis. O resultado é um moralismo nervoso que se manifesta aqui e ali, meio esquizofrênico, tópico, que não sabe bem a que veio e, na história, nunca resultou em boa coisa”.

Numa sociedade democrática e pluralista, sempre existirão desacordos morais. Questões como eutanásia, aborto, divórcio e uniões homoafetivas serão, em dado momento histórico, controvertidas. A proibição da advocacia infligida ao procurador federal quer dar, artificialmente, essa mesma impressão de tema controverso ao exercício lícito de uma profissão liberal, que foi considerada, segundo nota oficial divulgada pelo Advogado-Geral da União[12], como uma “atividade paralela” que já ocorria “historicamente na Instituição”. De acordo com o texto oficial daquela nota, “o exercício de advocacia privada por advogados públicos é tema que transcende a esfera da Advocacia-Geral da União, pois é prática comum e menos restrita em pelo menos 24 Procuradorias Estaduais”.

O art. 28, I da LC nº 73/93 e o art. 38, §1º, I da Medida Provisória nº 2.229-43/2001 impuseram, respectivamente, aos advogados da União e aos procuradores federais, sem qualquer respeito aos direitos fundamentais, a escolha de um lado numa disputa fomentada, camufladamente, por questões de rivalidade e corporativismo entre carreiras. Nesse tema, segundo o Ministro Luís Roberto Barroso[13],

“o papel do Estado ao interpretar valores comunitários é acolher aqueles que são mais genuinamente compartilhados pelas pessoas e evitar, sempre que possível, escolher lados em disputas moralmente divididas. Uma boa razão para essa abstenção é que permite que um grupo imponha suas concepções morais sobre outros representa uma afronta ao ideal segundo o qual todos os indivíduos são livres e iguais (...). Mas sempre que uma questão moral estiver presente, a melhor atitude que o Estado pode tomar é estabelecer um regime jurídico que permita aos indivíduos dos dois lados em disputa exercer a sua autonomia pessoal”.

Existe um espaço em que o servidor público pode exercitar a advocacia de forma lícita (arts. 28 à 30 do Estatuto da OAB). Apenas usando os paradigmas do plano federal, percebe-se que o exercício da advocacia, sem gerar uma situação de incompatibilidade ou de conflito, é reconhecido em favor 1) dos Procuradores da República optantes do antigo regime, quando faziam justamente o papel que hoje é da AGU (art. 29, § 3º do ADCT); 2) dos Advogados do Senado, que são advogados públicos, à semelhança dos procuradores da AGU, porém ligados ao Poder Legislativo (art. 64 do Regimento Interno do Senado Federal); 3) em favor de qualquer servidor do Poder Executivo regidos pelo regime jurídico único (Parecer/2012/DEPCONS/PGF/AGU, aprovado em 23.04.2012 pelo PGF, no processo administrativo nº 00407.004734/2011-56); 4) em favor dos analistas das agências reguladoras e do Banco Central do Brasil, que trabalham exatamente nos mesos processos que se debruçam os advogados públicos (Parecer nº 455/2013/PF-ANP/PGF/AGU); 5) em favor dos próprios Advogados da União, Procuradores da Fazenda e Procuradores Federais quando agraciados mediante uma licença discricionária concedida pelo Chefe da Instituição (despacho do AGU no processo administrativo nº 00400.023223/2009-89); 6) em favor de advogados que compõem o tribunais ou conselhos administrativos de órgão do Poder Executivo, a exemplo do CARF da Receita Federal, onde têm assento os procuradores da Fazenda Nacional (decisão do Conselho Federal da OAB na consulta feita pelo MDA, j. 06.08.2013); 7) em favor dos analistas da Controladoria-Geral da União e do Tribunal de Contas da União (TRF-5: AC 200982000004493. Rel. Des. Federal Desembargador Federal Francisco Cavalcanti, 06.05.2011); 8) em favor dos Deputados Federais e Senadores da República (art. 30, II da Lei nº 8906/94); 9) em favor dos advogados das empresas públicas estatais como BNDES, Valec e Caixa Econômica Federal, desde que não ocupem cargo de gerência ou direção (Recurso nº 0462/2006/PCA, DJ, 29.06.2007, p. 2371, S.1); 10) Até mesmo os juízes que representam a advocacia, ao serem apontados como juízes dos Tribunais Regionais Eleitorais, não precisam deixar de exercê-la, como decidiu o STF no julgamento da ADI nº 1.127, ressalvado o impedimento de advogar perante a Justiça Eleitoral.

A situação se tornou tão esdrúxula que até mesmo o servidor da AGU, que não ocupa o cargo de advogado, pode advogar. Só não pode o advogado ou procurador. Segundo o Parecer/2012/DEPCONS/PGF/AGU,aprovado em 23.04.2012 pelo Procurador Geral Federal no processo administrativo nº 00407.003228/2011-40, “[d]e fato, o artigo 117 da Lei nº 8.112/1990 estabelece várias proibições aos servidores públicos federais, dentre as quais a de exercer quaisquer atividades que sejam incompatíveis com o exercício do cargo ou função e com o horário de trabalho (inciso XVIII). Se na sua dicção direta tal normativo se apresenta como uma proibição, lido a contrario sensu carrega uma permissão, qual seja, a de exercer quaisquer atividades, desde que haja compatibilidade com o cargo/função e com seu horário de trabalho - e desde que, obviamente, essas atividades sejam lícitas e não estejam proibidas por outras normas específicas (o que determinaria, de pronto, uma incompatibilidade a priori com o cargo/função). É, assim, nesses termos e com essas limitações, que a advocacia pode ser vista como uma das possíveis atividades admitidas (pelo inciso XVIII do artigo 117 da Lei nº 8.112/1990) aos servidores do INSS em exercício ou não em órgãos de execução da PGF”.

No Supremo, o Ministro Maurício Corrêa, no julgamento da ADI nº 2652/DF, decidiu que “o tratamento jurídico diferenciado existente entre as pessoas de direito público e privado, não pode extrapolar o âmbito das partes atingindo seus procuradores. Ademais, as normas que regulam o exercício da advocacia, impõem a sujeição dos advogados públicos ao regime jurídico disciplinar do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, demonstrando a falta de razoabilidade da diferenciação pretendida”.

No caso dos procuradores federais, não é sequer necessário compará-los aos procuradores de particulares, cuja discriminação foi tida como inconstitucional pelo Supremo. Basta compará-los a seus pares licenciados ou a outros advogados públicos federais (advogados do Senado, consultores da Câmara, advogados de estatais e procuradores da República optantes do antigo regime) para perceber a distorção.

Em resumo: ressalvados os cargos cujo exercício resulta no desempenho de atos de polícia (p. ex. o cargo de auditor fiscal ou de delegado da Polícia Federal), a quaisquer outros é reconhecida a possibilidade de exercício da advocacia fora das atribuições funcionais. Nesse contexto, os advogados públicos se tornaram uma penosa exceção.

Defender que a liberdade de exercício da advocacia implicaria deixar em segundo plano as atribuições do cargo público é adotar uma presunção de má-fé contra os procuradores da União e desconsiderar as experiências bem sucedidas dos Estados.

Cabe à Advocacia-Geral da União, como órgão do Poder Executivo, apenas analisar se há, ou não, o conflito, o que, no caso da advocacia privada, já está previsto em lei. Se não fosse assim, admitir-se-ia que o regime estatutário poderia dispor sobre aspectos mais comezinhos da vida de um indivíduo, aniquilando seu direito fundamental de liberdade. É como se a Administração, a pretexto de controlar o horário de chegada do servidor ao trabalho, dispusesse que ele só poderia frequentar bares à noite ou viajar nos finais de semana. Nada mais autoritário. É o que, infelizmente, o que se faz com a advocacia, aniquilando completamente a liberdade de seu exercício.

Já alertava o Ministro Celso de Mello, no julgamento do RE nº 414.426/SC, que

“[a] excessiva intervenção do Estado, no âmbito das atividades profissionais, notadamente naquelas de natureza intelectual e artística, além do perigo que essa instrução governamental significa para as liberdades do pensamento, também pode constituir indício revelador de preocupante tendência autocrática em curso no interior do próprio aparelho estatal”.

A particularidade do modelo a ser adotado pela Advocacia-Geral da União é que o próprio art. 6º da Lei nº 11.890/2008 prevê que o exercício de outras atividades deve se dar mediante “compatibilidade de horários”. Como a atividade do advogado público não se submete a controle de horários, o termo “compatibilidade de horário” mostra-se um verdadeiro conceito jurídico indeterminado, o que abre margem para sua regulamentação, em ato infralegal, explicitando as hipóteses em que a regra seria infringida, como, por exemplo, participar de audiências durante o horário de trabalho ou manter vínculo de emprego com empresas, de modo a permitir apenas o exercício da advocacia em caráter eminentemente liberal, mantendo-se sempre a primazia do serviço público.

Seja como for, a proibição do art. 28, I da LC nº 73/93 não se sustenta mais. A correção dessa injustiça, tomando por base essas premissas, pode ser feita independente de lei, pois lei já existe. Basta parecer da Consultoria-Geral da União, manifestação do Conselho Federal da OAB ou mesmo decisão do Poder Judiciário, nos casos que forem a ele submetidos, interpretando, dentro da capacidade expressiva da linguagem (“möglich Wortsinn”) o sentido possível da aplicação das diferentes leis sobre o assunto, afinal “o intérprete pode entender a lei melhor do que a entenderam os seus criadores e a lei pode ser mais inteligente que o seu autor”[14].

Aliás, se valer do método sistemático para atingir resultados objetivos foi uma escolha utilizada, recentemente, em decisão do Supremo Tribunal Federal que redefiniu conceito de “miserabilidade” para fins de concessão de benefícios assistenciais.  Para o Supremo, o critério de “miserabilidade” previsto na Lei nº 8.742/93 estava defasado, pois leis posteriores adotaram outros critérios. Na Reclamação nº 4.374 e nos Recursos Extraordinários nº 567.985 e 580.963, o STF, revendo posicionamento anterior, concluiu, diante da “proliferação de leis que estabeleceram critérios mais elásticos para a concessão de outros benefícios assistenciais”, que se impunha ao Poder Judiciário o dever de revisão do parâmetro legislativo anterior que, em tempos atuais, se mostrou inadequado. A vedação do art. 28, I da LC nº 73/93, com base nas razões aqui expostas, também se mostra inadequada.

Diante do regime inaugurado pelo art. 6º da Lei nº 11.890/2008, que ratificou, numa interpretação autêntica, a revogação do art. 28, I da LOAGU pelos arts. 3º,§1º e 30, I do Estatuto da OAB, não há mais espaço para entender que apenas a atividade de advogado estaria proibida, enquanto se reconhece ao procurador da AGU a possibilidade de exercer qualquer outro ofício ou profissão no ambiente privado, desde que não haja conflito ou incompatibilidade com o serviço público.

Portanto, a partir da regulamentação da competência constitucional da OAB pela Lei nº 8.906/94, que também é uma forma de expandir-lhe a eficácia[15], operou-se a revogação do art. 28 da LC nº 73/93, ao mesmo tempo em que, qualquer interferência estatal, na competência exclusiva de autorregulamentar a advocacia liberal pela OAB, será tida como inválida porque inconstitucional. 

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Sobre o autor
Ricardo Marques de Almeida

Procurador Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Ricardo Marques. A revogação do art. 28, I da Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4237, 6 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30923. Acesso em: 19 abr. 2024.

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