2) INVIOLABILIDADE DOMICILIAR
Entende-se por domicílio, nas corretas palavras de Alexandre de Moraes, todo local, delimitado e separado, porque alguém ocupa com exclusividade, a qualquer título, inclusive profissionalmente, pois nessa relação entre pessoa e espaço, preserva-se, mediatamente, a vida privada do sujeito.[48]
O direito à inviolabilidade do domicílio é, dessa forma, um dos mais importantes direitos relativos à segurança da pessoa humana.[49] Consiste, segundo a Constituição, em afirmar que o domicílio é o asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem o devido consentimento de seu morador.
Mesmo sendo constitucionalmente declarado como um direito básico do indivíduo, a inviolabilidade do domicílio jamais poderá ser utilizada para a garantia de impunidade de crimes. Desse modo, a Constituição também estabelece que o domicílio possa ser adentrado sem o consentimento do morador para os casos de flagrante de delito ou, durante o dia, de determinação judicial, além dos casos de desastre e de prestação de socorro (art. 5º, XI).
Diferentemente do que ocorre com a interceptação de comunicações telefônicas, a CF não abre exceção à inviolabilidade somente para fins de investigação criminal e instrução processual penal. Efeito disso é que a inviolabilidade de domicílio é afastada pelo Poder Judiciário também em causas cíveis para a efetivação de diligências como arrestos, buscas e apreensões, etc.
É evidente que a inviolabilidade de domicílio não visa somente à proteção da privacidade, mas também do próprio indivíduo e de sua liberdade de locomoção. Todavia, o que nos interessa neste trabalho é abordar os aspectos relativos à intimidade.
O direito de inviolabilidade domiciliar está expressamente previsto no art. 5º, XI, da CF, no art. 17 do PIDCP e no art. 11 da CADH. O agente público que, no exercício de suas funções, viole domicílio alheio está sujeito às sanções previstas na Lei de Abuso de Autoridade (Lei Federal nº 4.898/1965).[50] As sanções podem ser de natureza administrativa, civil e penal e estão previstas no art. 6º da lei.
Já o particular que viole a privacidade de domicílio, além de ter de indenizar a vítima (sanção civil), também poderá responder criminalmente, na forma no art. 150 do Código Penal (Decreto-lei nº 2.848/1940):[51]
Violação de domicílio
Art. 150 - Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências:
Pena - detenção, de um a três meses, ou multa.
§ 1º - Se o crime é cometido durante a noite, ou em lugar ermo, ou com o emprego de violência ou de arma, ou por duas ou mais pessoas:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, além da pena correspondente à violência.
Como exposto acima, o inciso XI do art. 5º da CF, admite quatro hipóteses de ingresso e/ou permanência não consentidos em domicílio alheio: 1) em caso de flagrante delito; 2) em caso de desastre; 3) para prestar socorro; e 4) durante o dia, por determinação judicial. O STF também considerou lícito o ingresso, com autorização judicial, de autoridade policial em domicílio, durante o período noturno, para a instalação de equipamento de escuta ambiental e exploração do local.[52]
O STF entendeu que, mesmo no exercício da atividade de fiscalização tributária, a autoridade necessita de ter autorização judicial para apreender livros contábeis e documentos fiscais.[53]
As determinações judiciais para ingresso em domicílio privado podem ter como finalidade realizar busca e apreensão, efetuar a prisão de indivíduos ou instalar equipamentos de escuta e monitoramento. A busca e apreensão, se determinada por juiz da esfera cível (não criminal), é regulada pelos art.s 839 a 843 do Código de Processo Civil; se ocorrer num processo criminal, obedecerá aos comandos dos arts. 240 a 250 do Código de Processo Penal. É preciso salientar que as ordens de busca e apreensão devem ser específicas, com objeto bem delimitado, não podendo converter-se numa carta branca para a autoridade devassar toda a intimidade do acusado ou indiciado.[54]
O conceito de “casa” é entendido em sentido amplo pelo STF como espaços privados não abertos ao público, incluindo escritórios profissionais.[55] O Código Penal assim o traduz:
Art. 150. (...)
§ 4º - A expressão "casa" compreende:
I - qualquer compartimento habitado;
II - aposento ocupado de habitação coletiva;
III - compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.
§ 5º - Não se compreendem na expressão "casa":
I - hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta, salvo a restrição do n.º II do parágrafo anterior;
II - taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero.
Embora as CPIs, por força do art. 58, § 3º, da CF, gozem de “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”, o STF vem entendendo que há “reserva de jurisdição” para a busca domiciliar, isto é, apenas magistrado pode decretar medida de busca e apreensão.[56]
3) INVIOLABILIDADE DAS COMUNICAÇÕES
Nos dias de hoje, com o avanço da tecnologia, multiplicaram-se as formas de comunicação, e nem todas têm tratamento legal específico. E mesmo com relação às que têm regramento próprio, há muitas controvérsias, seja pela deficiência dos instrumentos normativos, seja pela sensibilidade do tema, que toca diretamente o direito fundamental da intimidade.
O sigilo das comunicações está previsto no art. 5º, XII, da CF, mas não encontra proteção expressa nos tratados internacionais sobre direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. Todavia, pode-se dizer que a privacidade nas comunicações também está resguardada pelas cláusulas gerais de proteção dos indivíduos contra as “ingerências arbitrárias” em sua vida privada previstas no art. 17 do PIDCP e art. 11 da CADH.
Antes de adentrarmos na análise de cada tipo de comunicação e de sua respectiva proteção jurídica, cabe mencionarmos uma controvérsia acerca da incidência do inciso XII do art. 5º da CF. O dispositivo estatui ser “inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. Mas qual compreensão deve ter a expressão de dados? A questão é controvertida.
Há quem entenda que a expressão de dados se refira a sigilo (sigilo de dados), e os que crêem que a expressão se refira a comunicações (sigilo das comunicações de dados). Parece uma filigrana, mas a diferença é relevante, pois no primeiro caso, o sigilo do art. 5º, XII, recairia sobre os dados em si, armazenados física ou eletronicamente, e não apenas sobre a sua transmissão, o que significa dizer que só poderia ser afastado por ordem judicial em investigação criminal ou instrução processual penal.
Entendemos que a conjunção “e” após “correspondência” indica que se trata de duas categorias de sigilo: da correspondência e das comunicações. O termo comunicações foi repetido para manter a coerência, pois não há uma forma adjetiva para o complemento nominal de dados.[57]
Como se não bastasse essa confusão oriunda da má redação do dispositivo, há ainda outra divergência no tocante ao significado da expressão no último caso. Uns entendem que ela se refere a comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas (grupo comunicações), outros afirmam referir-se apenas a de dados e das comunicações telefônicas, e ainda há quem creia que a expressão último caso refere-se apenas a comunicações telefônicas.[58]
Na primeira hipótese, o sigilo dos dados (ou da comunicação dos dados) poderia ser violado mediante autorização judicial em investigação criminal ou instrução processual penal. Nas outras, esse sigilo seria inviolável de forma absoluta, o que, todavia, vem sendo rechaçado pelo STF, não apenas nesse particular como no tocante a todo direito fundamental.[59] Sendo assim, o que seria a vedação absoluta passaria para uma proteção mais branda, pois a autorização judicial não estaria restrita à esfera criminal. Parece-nos, contudo, que essa não foi a intenção do legislador constituinte.
Resta evidente que o propósito do inciso XII é tratar da privacidade das comunicações em geral. E, como não haveria sentido em permitir a interceptação telefônica e em vedar a interceptação telegráfica ao mesmo tempo, entendemos que estamos diante de dois grandes grupos de sigilo: das [comunicações por] correspondências e das comunicações [em tempo real] por telégrafo, por transmissão de dados[60] e por telefone.[61]
Nas comunicações em tempo real, a interceptação seria admitida; nas comunicações por correspondência, não. Aí a distinção faz sentido, pois a interceptação postal interfere na comunicação, enquanto que a interceptação das comunicações em tempo real apenas afeta a inviolabilidade, e não a comunicação em si. Ademais, a correspondência é um documento, o qual pode ser acessado posteriormente, diferentemente do que ocorre, por exemplo, com conversações telefônicas, que não têm seu conteúdo registrado – ao menos por enquanto. Assim, entendemos que os dados, sejam eles financeiros, fiscais ou de qualquer natureza, por si sós, não estão amparados pelo inciso XII, mas, sim, pela cláusula geral de proteção da intimidade prevista no inciso X do art. 5º da CF.
Superada essa questão, é preciso distingüir os tipos de captura de comunicações. Uma distinção diz respeito ao meio de comunicação envolvido. A captura pode ser de comunicação ambiental, telefônica, informática ou telemática, postal e telegráfica. A outra distinção diz respeito à participação de um ou mais dos interlocutores na captura, de modo que dividimos a captura em interceptação, escuta e gravação.[62] Por ora, passaremos à análise das comunicações segundo o meio envolvido.
Comunicações telefônicas, telemáticas, telegráficas e radioelétricas
A Lei Geral das Telecomunicações (Lei Federal nº 9.472/1997) prevê a proteção da privacidade das comunicações dos usuários de serviços de telecomunicações.
Art. 3° O usuário de serviços de telecomunicações tem direito:
(...)
V - à inviolabilidade e ao segredo de sua comunicação, salvo nas hipóteses e condições constitucional e legalmente previstas;
O Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei Federal nº 4.117/1962) define os serviços de telecomunicações da seguinte forma:
Art. 4º Para os efeitos desta lei, constituem serviços de telecomunicações a transmissão, emissão ou recepção de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza, por fio, rádio, eletricidade, meios óticos ou qualquer outro processo eletromagnético. Telegrafia é o processo de telecomunicação destinado à transmissão de escritos, pelo uso de um código de sinais. Telefonia é o processo de telecomunicação destinado à transmissão da palavra falada ou de sons.
A Lei de Uso da Internet, especificamente no tocante à comunicação realizada através da rede mundial de computadores, estabelece o seguinte:
Art. 7º O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:
(...)
II - inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei;
O Código Penal prevê, de forma bastante ampla, o crime de violação do sigilo das comunicações telefônicas, telegráficas ou radioelétricas, a saber:[63]
Art. 151. (...)
§ 1º - Na mesma pena [de detenção, de um a seis meses, ou multa] incorre:
II - quem indevidamente divulga, transmite a outrem ou utiliza abusivamente comunicação telegráfica ou radioelétrica dirigida a terceiro, ou conversação telefônica entre outras pessoas;
III - quem impede a comunicação ou a conversação referidas no número anterior;
No caso violação cometida por autoridade, com abuso de função, a pena é superior, nos termos do parágrafo 3º do mesmo art. 151.
§ 3º - Se o agente comete o crime, com abuso de função em serviço postal, telegráfico, radioelétrico ou telefônico:
Pena - detenção, de um a três anos.
Ocorre que, com o propósito de regulamentar o art. 5º, XII, da CF, foi promulgada a Lei das Interceptações (Lei Federal nº 9.296/1996), que dispôs também sobre as comunicações telemáticas. Essa lei trouxe o crime específico de interceptação das comunicações telefônicas, telemáticas e de informática, que independe do fato de o autor do crime ser autoridade ou não.
Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.
Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.
Há quem diga que a provisão do Código Penal sobre divulgação, transmissão e utilização abusivas de conversação telefônica foi revogada pela Lei das Interceptações[64], mas entendemos, juntamente com o jurista Guilherme Nucci[65], que o objeto de cada dispositivo legal é diferente, tendo permanecido integralmente a vigência do art. 151, § 1º, II, do Código Penal, devendo-se aferir, no caso concreto, qual a norma aplicável.
Para compreendermos melhor a questão, é preciso distingüirmos interceptação de escuta e gravação. Interceptação é quando nenhum dos interlocutores está ciente da captura, que é feita por terceiro alheio à conversa; na escuta, a captura também é feita por terceiro, mas um dos interlocutores tem ciência dela e com ela colabora; e gravação acontece quando um dos próprios interlocutores faz a captura, sem o conhecimento da outra parte.[66]
De um modo geral, o STF entende que a gravação e a escuta sem autorização judicial são lícitas quando feitas por vítima de investida criminosa ou como meio de defesa.[67] O STJ também excluiu a filmagem de depoimento do regime das interceptações telefônicas.[68]
Não obstante essa orientação jurisprudencial, há juristas que rechaçam completamente a validade de quaisquer gravações clandestinas sem autorização judicial[69] e que identificam as escutas às interceptações.[70] De nossa parte, entendemos que as escutas e gravações se enquadrariam no art. 151, § 1º, II, do Código Penal, mas apenas se fossem utilizadas “abusivamente”, como diz a lei. Assim, entendemos que as escutas e gravações sem autorização judicial podem ser lícitas mesmo fora das hipóteses admitidas pelo STF, isto é, aquelas feitas por vítima de investida criminosa ou como meio de defesa.
Parece-nos que a revelação da gravação se assemelharia à hipótese de depoimento testemunhal do confidente sobre conversa privada. A partir do momento em que alguém conta algo a outrem, essa informação passa a ser do outro, que pode dispor dela livremente, exceto nas hipóteses de segredo profissional e de segredo particular, aplicável somente a correspondências e documentos confidenciais.
Quanto à escuta, esta não é nada mais que a transmissão instantânea, por um ou mais dos interlocutores, da comunicação a terceiro. Em que tal situação diferiria de outra em que um dos interlocutores gravasse a conversa e a entregasse a terceiro? Não há razão para que manejo técnico do aparato de captação das comunicações tenha relevância do ponto de vista jurídico. Sustentamos que a situação jurídica daquele que escuta uma gravação de uma conversa e daquele que a escuta em tempo real com consentimento de um dos interlocutores é exatamente a mesma.
Ademais, quanto ao segredo particular, vimos que este só se aplica a documentos particulares e correspondências confidenciais, não podendo ser estendido a gravações em razão da proibição de incriminação por analogia in malam partem (para prejudicar o réu), decorrente do princípio da reserva legal, insculpido no art. 5º, XXXIX, da CF e art. 1º do Código Penal.
Resumindo, a jurisprudência do STF não estende aplicação da Lei das Interceptações às escutas e gravações telefônicas, embora haja juristas que o defendam.
A Lei das Interceptações só admite a medida se autorizada por juiz criminal, a pedido da autoridade policial ou do representante do Ministério Público, satisfeitos os seguintes requisitos: 1) havendo indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal; 2) quando a prova não puder ser feita por outros meios disponíveis; 3) quando o fato investigado constituir infração penal punida com pena mais grave que a de detenção.[71]
Igualmente ao que ocorre com as buscas e apreensões domiciliares, não é reconhecido às CPIs o poder de decretar interceptações telefônicas, cabendo somente ao Poder Judiciário autorizar a medida.[72]
A interceptação realizada fora dos parâmetros da lei e da Constituição, além de sujeitar seu autor à pena do art. 10 da Lei das Interceptações, tornará inválida a prova baseada nela. Em outras palavras, num processo criminal, a provas obtidas por interceptação ilegal deverão ser desconsideradas, se destinadas à incriminação do réu.
Ressalte-se que o sigilo das comunicações telefônicas e telemáticas não se confunde com o sigilo dos dados telefônicos e registros de conexão e aplicação da internet, conforme já mencionado.
Conversas ambientais
As conversas ambientais são aquelas que se dão sem a intervenção de nenhum meio de comunicação. A privacidade dessas conversas não é assegurada pelo art. 5º, XII, da CF, que, como expusemos acima, aplica-se às comunicações por correspondência, por telefone, por transmissão de dados e por telégrafo. Desse modo, as conversas ambientais seriam resguardadas pela cláusula geral de proteção da intimidade inserta no inciso X, de maneira que a sua violação pode ensejar a responsabilidade civil, no caso de dano moral ou material, além de ser admitida a tutela inibitória, prevista no art. 21 do Código Civil.
Não há, na legislação penal comum, a previsão de crime de captação ou interceptação ilegal de conversas ambientais. Contudo, no tocante à legislação castrense, encontramos o tipo penal de violação de recato no Código Penal Militar, abrangendo a interceptação de conversações ambientais. Vejamo-no:
Violação de recato
Art. 229. Violar, mediante processo técnico o direito ao recato pessoal ou o direito ao resguardo das palavras que não forem pronunciadas publicamente:
Pena - detenção, até um ano.
Parágrafo único. Na mesma pena incorre quem divulga os fatos captados.
Por força do art. 231 do referido diploma legal, essa conduta só será considerada criminosa se for praticada por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar nas mesmas condições.
Embora interceptação ambiental desautorizada não constitua ilícito segundo a legislação penal comum, pode constituir ilícito civil e causar nulidade processual, isto é, pode gerar o dever de indenizar, no caso de dano moral e/ou material, e gerar o descarte da prova embasada nela em processo judicial.
A nova Lei de Organizações Criminosas (Lei Federal nº 12.850/2013) mencionou a captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos e acústicos como meios admissíveis de prova em qualquer fase da persecução penal.
Art. 1º Esta Lei define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal a ser aplicado.
(...)
Art. 3º Em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da prova:
(...)
II - captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos;
Essa provisão difere da constante na lei anterior sobre organizações criminosas (Lei Federal nº 9.034/1995), que exigia autorização judicial circunstanciada (art. 2º, IV). A outorga do magistrado, na hipótese, garantia a licitude da diligência e, ato contínuo, a sua admissibilidade como meio de prova no processo criminal.
Atualmente, a autorização judicial não é mais exigida expressamente, contudo, é provável que a maioria dos doutrinadores e dos juízes se posicione no sentido de entendê-la necessária para a validade da interceptação ambiental. De nossa parte, cremos que a necessidade da outorga do magistrado deverá ser aferida caso a caso, podendo em algumas hipóteses, ser dispensada. Por exemplo, a instalação de uma escuta ou a captação à distância de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos em recintos privados deve ser precedida de autorização do juiz. Por outro lado, se o que foi captado partiu de ambiente aberto ao público, não haveria sentido em exigir tal autorização.
Como já mencionado, o STF admite até o ingresso clandestino, durante o período noturno, em domicílio privado para a instalação de equipamento de captação de sinais ópticos e acústicos, desde que devidamente autorizado pelo juiz.[73]
Inviolabilidade de correspondência
O direito de proteção à privacidade relativa às correspondências está expressamente previsto no art. 5º, XII, da CF, no art. 17 do PIDCP, no art. 11 da CADH e no art. 5º da Lei de Serviços Postais (Lei Federal nº 6.538/1978). Assim como ocorre com o domicílio, a violação do sigilo de correspondência praticada por agente público enquadra-se na Lei de Abuso de Autoridade (art. 3º, ‘c’), sujeitando o responsável às penas do art. 6º. O particular, por sua vez, está sujeito às penas do art. 40 da Lei de Serviços Postais, que dispõe o seguinte:[74]
Violação de correspondência
Art. 40 - Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada dirigida a outrem:
Pena: detenção, até seis meses, ou pagamento não excedente a vinte dias-multa.
A própria Lei de Serviços Postais traz, contudo, algumas exceções à proteção do sigilo das correspondências, a saber:
Art. 10 - Não constitui violação de sigilo da correspondência postal a abertura de carta:
I - endereçada a homônimo, no mesmo endereço;
II - que apresente indícios de conter objeto sujeito a pagamento de tributos;
III - que apresente indícios de conter valor não declarado, objeto ou substância de expedição, uso ou entrega proibidos;
IV - que deva ser inutilizada, na forma prevista em regulamento, em virtude de impossibilidade de sua entrega e restituição.
Parágrafo único - Nos casos dos incisos II e III a abertura será feita obrigatoriamente na presença do remetente ou do destinatário.
Além dessas exceções, há outra prevista na Lei de Execuções Penais (Lei Federal nº 7.210/1984) relativa a detentos do sistema carcerário, senão vejamos:
Art. 41 - Constituem direitos do preso:
(...)
XV - contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes.
(...)
Parágrafo único. Os direitos previstos nos incisos V, X e XV poderão ser suspensos ou restringidos mediante ato motivado do diretor do estabelecimento.
O STF entendeu que a permissão de violação do sigilo de correspondência de detentos acima referida não viola a Constituição Federal.[75]
SITUAÇÃO DO ESTRANGEIRO
Os direitos e garantias do art. 5º da CF são destinados a brasileiros e estrangeiros residentes, segundo a redação do próprio dispositivo. Contudo, a doutrina jurídica e da jurisprudência estendem indiscriminadamente a aplicação desse dispositivo também aos estrangeiros não-residentes, o que para nós, merece alguns reparos e considerações.
Na década de 1950, o STF já havia se pronunciado favoravelmente à extensão dos direitos fundamentais dos brasileiros e estrangeiros residentes aos estrangeiros não-residentes.[76] Em seguida, muitos julgados reiteraram esse entendimento.[77] No mesmo sentido se posiciona a doutrina jurídica brasileira.[78] Todavia, ousamos discordar desse entendimento.
Não pretendemos afirmar, contudo, que estrangeiros não-residentes não gozem de qualquer proteção a garantias e direitos fundamentais perante o Estado brasileiro. Por outro lado, é de se ressaltar que a incidência dos direitos e garantias do art. 5º não pode ser direta, pois, do contrário, estar-se-ia violando a literalidade do dispositivo, além, em alguns casos, da própria razoabilidade, como veremos.
As normas de proteção dos direitos fundamentais dos estrangeiros não-residentes são aquelas previstas nos tratados sobre direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, dentre os quais, destacam-se os já citados PIDCP e CADH. Ambos, como vimos acima, prevêem a proteção à intimidade em seus arts. 17 e 11, respectivamente. Como se deduz da redação dos próprios dispositivos, a proteção neles prevista se dirige a todas as pessoas, indistintamente. Aí repousa, portanto, o direito à privacidade dos estrangeiros não-residentes no ordenamento jurídico brasileiro.
Não obstante, certas garantias do art. 5º podem – e devem – ser aplicadas aos estrangeiros não-residentes, não como base normativa de seus direitos fundamentais, e, sim, como instrumentalização destes, isto é, por via reflexa. Por exemplo, a Constituição prevê o direito de habeas corpus como meio idôneo para proteger brasileiros e estrangeiros residentes contra prisões arbitrárias (art. 5º, LXVIII).[79] Paralelamente, tanto o PIDCP quanto a CADH trazem dispositivos que proíbem as prisões arbitrárias (art. 9º e art. 7º, respectivamente).[80] Assim, a aplicação do habeas corpus previsto no art. 5º da CF a estrangeiros não-residentes não será direta, e, sim, reflexa, como meio de instrumentalização dos direitos previstos nesses tratados internacionais.
No tocante à proteção à intimidade, como já afirmamos diversas vezes, existe previsão genérica tanto no PIDCP quanto na CADH. Todavia, a proteção lá prevista não é tão detalhada quanto a dos incisos X, XI, e XII da CF. Pode-se dizer que a proteção constitucional é qualificada, pois traz mais requisitos para a sua violação. Por exemplo, as interceptações telefônicas, para serem lícitas, não apenas devem ser autorizadas por juiz, mas também devem sê-lo em procedimento criminal. Assim, bastante restrita é a hipótese de afastamento da inviolabilidade das comunicações. O mesmo se pode dizer quanto à inviolabilidade domiciliar que, para seu afastamento em certa hipótese, requer, além da autorização judicial, que a diligência se cumpra durante o período diurno.
Mas seria o caso de o Estado ser “menos exigente” ao excepcionar alguns direitos fundamentais dos estrangeiros não-residentes do que em relação a brasileiros e estrangeiros residentes? Todos ou quase todos os ordenamentos jurídicos do mundo dão tratamento diferenciado aos estrangeiros. A origem dessa distinção pode ser vista já no direito romano, que tinha corpos de leis e institutos jurídicos diferenciados para cidadãos romanos e estrangeiros, o ius civile e o ius gentium.[81] E atualmente a situação não é diferente. É muito comum o tratamento diferenciado para estrangeiros, mesmo nos países democráticos, no tocante à propriedade fundiária, à privacidade, aos direitos políticos, etc.
No Brasil, de um modo geral, não se questionam as restrições que o Estatuto do Estrangeiro (Lei Federal nº 6.815/1980) impõe em relação à circulação e trânsito, ao exercício de atividade profissional, política ou jornalística, à navegação doméstica marítima ou aérea, à exploração de jazidas minerais, entre outras, para não falarmos das restrições no tocante à aquisição de imóveis, rurais[82] e urbanos.[83]
Essa discriminação se justifica porque, além de ser oriundo de outra cultura e de estar presumidamente atado a outros laços de lealdade nacional, o estrangeiro não-residente pode facilmente regressar ao seu país de origem, saindo do alcance da jurisdição brasileira.
Também não se pode negar que a disputa entre nações é uma constante na história mundial. Presume-se que cada súdito seja leal a seu governo. Essa presunção baliza as legislações de todos ou praticamente todos os Estados nacionais modernos. Por essa razão que o constituinte originário, no art. 5º, caput, da CF tratou deliberadamente dos brasileiros e estrangeiros residentes no País, sendo até generoso com estes últimos, na esteira da tradição nacional de hospitalidade.
Essa discriminação de tratamento entre nacionais, estrangeiros residentes e estrangeiros não-residentes está presente mesmo em países com espírito democrático mais profundamente enraizado. A diferenciação se faz necessária, pois, no jogo entre as nações, cada uma protege seus cidadãos e se defende dos cidadãos das outras. As convenções de direitos humanos encarregam-se de garantir a proteção mínima ao ser humano, segundo os critérios de humanidade virtualmente consensuais entre as nações. Afinal, como dispõe o art. 5º, § 2º, da CF, os direitos e garantias expressos nela não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais de que for parte a República Federativa do Brasil.
Portanto, somos do entendimento de que o art. 5º da CF nem sempre deverá ser aplicado a estrangeiros não-residentes. Nesses casos, a proteção a essa categoria de indivíduos deverá ser buscada nas leis ordinárias e nos tratados internacionais. O PIDCP e a CADH protegem todo ser humano das interferências e ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada; o simples conhecimento de algo da vida privada de alguém não configura ingerência nem tampouco interferência, pois estas pressupõem alteração do estado de coisas provocadas por um agente externo.
E, se a conduta do agente público for abusiva, serão cabíveis todos os meios de controle judicial repressivo, a posteriori, previstos na CF e nas leis, como o direito a indenização e a punição do agente. Com isso, não deixa, portanto, de haver proteção; só que, como é de se supor, num grau menos rigoroso do que aquele conferido ao nacional ou ao estrangeiro residente.
Deve-se ter em mente que nenhuma constituição impõe – nem poderia impor – que estrangeiros, em trânsito no país ou mesmo no exterior, recebam o mesmo tratamento dispensado aos seus nacionais. Ademais, por força do princípio da reciprocidade, o estrangeiro aqui deve receber o mesmo tratamento que o nacional brasileiro recebe no exterior, desde que o tratamento não seja desumano e fira a moral e os bons costumes. E, com relação ao poder de interceptação das comunicações, é comum haver diferenciação entre nacionais e estrangeiros.
Entendemos, pois, que o Brasil possui dois regimes de interceptações das comunicações: um para brasileiros e estrangeiros residentes e outro para estrangeiros não-residentes. Vimos que, para primeiro, há a Lei das Interceptações e o inciso XII do art. 5º da CF. Mas qual seria o regramento do segundo regime, isto é, o regramento da interceptação das comunicações dos estrangeiros não-residentes? Cremos que o regime seria praticamente o mesmo, aplicando-se a própria Lei das Interceptações, por ser a única existente. No entanto, haveria uma diferença fundamental, no tocante à responsabilização penal pela interceptação indevida.
Ao tipificar o crime de interceptação ilegal, a Lei das Interceptações, em seu art. 10, traz dois elementos normativos excludentes da ilicitude: a existência de 1) autorização judicial e de 2) objetivos autorizados em lei.[84] O referido artigo define como crime a interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou a quebra de segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei. Dessa forma, a interceptação será lícita se tiver autorização judicial ou objetivos autorizados em lei.
Suponhamos que uma lei autorize a interceptação, sem autorização judicial, e para fins outros que não a persecução penal. Essa lei violaria o art. 5º, XII, da CF. Todavia, se fosse destinada a estrangeiros não-residentes, poderia ser válida, pois a Constituição silenciou sobre a inviolabilidade das comunicações de estrangeiros não-residentes. A conjunção coordenativa alternativa “ou” não deixa dúvidas quanto ao fato de que, pela Lei das Interceptações, nem toda interceptação de comunicaçõesprecisa ser autorizada judicialmente para ser lícita.
Mas, então, a prova obtida por interceptação não-autorizada judicialmente poderia ser utilizada em inquérito policial ou em ação penal? Certamente que não, por força do próprio art. 1º da Lei das Interceptações. Todavia, caso fosse efetuada com mandato legal e contra estrangeiros não-residentes, não constituiria conduta delituosa, ou seja, não configuraria crime de interceptação ilegal.
E se houvesse lei permitindo a interceptação das comunicações de brasileiros e estrangeiros residentes, independentemente de autorização judicial ou para fins diversos da investigação criminal e da instrução processual penal? Incidiria, então, a excludente de tipicidade de objetivos autorizados em lei? Não, pois uma lei que permitisse a interceptação nesses moldes para brasileiros e estrangeiros residentes seria inconstitucional, por afronta ao art. 5º, XII.
Assim, a diferença entre esses dois regimes de interceptação das comunicações é que, no caso dos brasileiros e estrangeiros residentes, as interceptações só podem ser feitas mediante autorização judicial, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, quando se tratar de apuração de infração penal punível com reclusão e quando a prova não puder ser obtida por outro meio; no caso de estrangeiros não-residentes, a interceptação só deverá preencher todos esses requisitos se se destinar à investigação criminal ou à instrução processual penal, podendo, contudo, ser feita em outras hipóteses, sem que configure o crime de interceptação ilegal.
Poderíamos conjecturar, a título de exemplo, a hipótese de a Polícia Federal realizar interceptações telefônicas preventivas contra um traficante de drogas estrangeiro que estivesse de passagem pelo Brasil, prescindindo, para tanto, de autorização judicial.[85] As gravações obtidas não poderiam ser utilizadas como prova em inquérito policial ou ação penal, evidentemente; mas poderiam ser um valioso instrumento para prevenir a ocorrência de ilícitos. A conduta dos agentes policiais tampouco poderia ser caracterizada como criminosa, conforme o art. 10 da Lei das Interceptações, dado que a conduta careceria do elemento normativo “com objetivos não autorizados em lei”. Na espécie, o objetivo de prevenção do tráfico ilícito de entorpecentes está autorizado pela própria Constituição Federal.
Outro exemplo seria a atuação do serviço de inteligência fora do país. A ABIN tem como objetivos empreender ações sigilosas para assessorar o presidente da República, conforme dispõe o art. 4º, I, da Lei do SISBIN (Lei Federal nº 9.883/1999). A mesma lei, em seu art. 1º, § 2º, define a inteligência como a “atividade que objetiva a obtenção, análise e disseminação de conhecimentos dentro e fora do território nacional sobre fatos e situações de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório e a ação governamental e sobre a salvaguarda e a segurança da sociedade e do Estado”. Dessa forma, uma interceptação telefônica promovida pela ABIN no exterior, sem autorização judicial, contra um estrangeiro não-residente no Brasil, desde que tivesse seus objetivos autorizados por lei, não poderia ser considerada criminosa, ainda que seus resultados não pudessem ser utilizados como prova em investigação criminal ou instrução processual penal. O mesmo seria válido para uma ação dentro do território nacional.
Isso nos permite, então, concluir pela existência de dois tipos de interceptações lícitas das comunicações no ordenamento jurídico brasileiro: as judiciais e as administrativas. Essa situação pode parecer estranha, mas é a realidade em diversas democracias modernas.
Nos Estados Unidos da América há dois marcos legais para interceptação de comunicações: um para crimes comuns cometidos no território nacional por nacionais[86]; e outro para acompanhar estrangeiros, a Lei de Vigilância de Inteligência Externa (Foreign Intelligence Surveillance Act – Fisa), de 1978. De acordo esse diploma legal, o presidente da república pode autorizar, por intermédio do procurador-geral, vigilância eletrônica de estrangeiros por períodos de até um ano, prescindindo da outorga judicial. Não obstante, a Fisa também criou uma côrte administrativa[87] especificamente para tratar de tais questões, concedendo mandados para a realização de vigilâncias eletrônicas, entre as quais está a interceptação das comunicações. Mais recentemente, a Fisa foi alterada e complementada por outras leis que concederam mais poderes de investigação às autoridades norte-americanas.[88]
Na França, há, igualmente, dois tipos de interceptação telefônica: a interceptação mediante autorização judicial e a interceptação administrativa, levada a cabo pela Comissão Internacional de Controle das Interceptações de Segurança (Commission Internacionale de Contrôle des Interceptions de Sécurité – CNCIS). As interceptações que demandam autorização judicial são reguladas pelo Código de Processo Penal francês e se aplicam para crimes cuja pena seja igual ou superior a dois anos. As interceptações telefônicas administrativas, chamadas pela lei de interceptações de segurança, são autorizadas em caráter excepcional por decisão motivada do primeiro-ministro ou de uma entre duas pessoas especialmente designadas por ele para tanto, nos casos de busca de informações de interesse da segurança nacional, da salvaguarda de elementos essenciais de potencial científico ou econômico para a França, e da prevenção ao terrorismo, ao crime organizado e ao combate de milícias privadas.[89]
Na Alemanha, o regime também é misto, havendo interceptações deferidas por autoridades administrativas e judiciais. As autoridades administrativas competentes para conceder autorização de interceptações são os chefes dos serviços de proteção à constituição em cada unidade federativa, os ministros de interior e o ministro da justiça, em casos que envolvam ameaça à ordem democrática e liberal, segurança do Estado, interna e externamente, e estrangeiros.[90] Com alterações promovidas na lei posteriormente, as autoridades podem ainda recorrer ao “controle estratégico”, sempre que houver ligações com o exterior envolvendo agressão armada, terrorismo, tráfico de armas de destruição em massa, tráfico de drogas e lavagem e falsificação de dinheiro. Todavia, algumas das possibilidades trazidas pelas alterações foram consideradas inconstitucionais pelo Conselho Constitucional.[91]
Na Suécia, a controvertida Lei da Autoridade Nacional de Rádio-Defesa (FRA, sigla da Försvarets radioanstalt, em sueco), aprovada em 2008, permite que essa entidade monitore todas as comunicações internacionais feitas na Suécia, sem a necessidade de outorga judicial.
No Reino Unido, o regime não é misto, como nos exemplos anteriores, mas toda interceptação é autorizada pelo ministro de interior, autoridade administrativa, não havendo, pois, controle judicial prévio. Para que haja interceptação, a lei exige que se esteja diante de interesse de segurança nacional, prevenção ou descoberta de um crime grave e salvaguarda da prosperidade econômica do país.[92] O controle judicial realiza-se a posteriori, punindo excessos e abusos.
Um breve olhar sobre outros regimes democráticos, portanto, revela-nos ser comum haver mais de um sistema de interceptação de comunicações por agentes do Estado: um para a criminalidade comum e outros para graves ameaças ao Estado e à sociedade. Em sistemas como o norte-americano e o alemão o envolvimento de estrangeiros é o fato diferenciador. O fato é que, diante das ameaças de terrorismo e da internacionalização e aprimoramento das organizações criminosas, instrumentos diferenciados de investigação para prevenção e repressão começam a se fazer necessários.
ESTADO DE EXCEÇÃO
Determinadas circunstâncias, previstas pela própria Constituição, permitem aos governantes atuar de maneira excepcional, no sentido da proteção do Estado de Direito e do regime democrático. Isso ocorre não para o benefício do poder constituído ou para que ele venha a se tornar um governo ditatorial, mas fundamentalmente no sentido da própria preservação do ordenamento jurídico-constitucional, que em nosso caso se faz, antes de tudo, legitimado pelos princípios maiores da soberania popular e da dignidade da pessoa humana.
Assim, para determinadas situações verdadeiramente atípicas, em que a ordem constitucional consagradora do Estado de Direito se encontra ameaçada, o governo fica autorizado a agir além dos limites constitucionais previstos para situações de normalidade. Nesses casos, faculta-se ao governante, em virtude de expressa autorização constitucional, restringir temporariamente os direitos e garantias individuais, quando a nação e o próprio Estado estejam passando por momentos de grave agitação ou desordem, e que não podem ser eliminados mediante a simples adoção de medidas ordinárias.
Disposto no art. 136 da CF, o estado de defesa pode ser decretado para a preservação ou o restabelecimento, em locais restritos e determinados, da ordem pública ou da paz social, ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza. Já o estado de sítio, medida de alto impacto prevista no art. 137 da CF, pode vir a ser decretado na ocorrência de comoção grave de repercussão nacional ou de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa, ou de declaração do estado de guerra ou agressão armada estrangeira.
A decretação das medidas cabe ao presidente da República, que somente agirá após a oitiva do Conselho da República e do Conselho de Defesa Nacional. O parecer desses órgãos, todavia, não é vinculante. No caso do estado de defesa, o presidente o decreta ad referendum do Congresso Nacional; no do estado de sítio, a chancela do Poder Legislativo deve preceder a medida.
No estado de defesa, a restrição ao sigilo de correspondência e de comunicações telegráficas e telefônicas está expressamente prevista, a ver:
Art. 136 (...)
§ 1º O decreto que instituir o estado de defesa determinará o tempo de sua duração, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos termos e limites da lei, as medidas coercitivas a vigorarem, dentre as seguintes:
I - restrições aos direitos de:
(...)
b) sigilo de correspondência;
c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica; (...)
É importante salientar que a restrição, nessa hipótese, deve obedecer aos termos e limites da lei. Entretanto, até o momento não foi editada lei regulamentando essa questão.
Já quanto ao estado de sítio, ele pode ser de dois tipos: 1) fundado em comoção grave de repercussão nacional ou na ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; ou 2) baseado em declaração de estado de guerra ou em resposta a agressão armada estrangeira.
Para o primeiro tipo de estado de sítio, a Constituição prevê, taxativamente, as hipóteses de restrição a direitos fundamentais, entre as quais está a restrição à inviolabilidade de correspondência e ao sigilo das comunicações (art. 139, III), nos termos da lei. À semelhança do que ocorre com o estado de defesa, a norma regulamentadora também não foi editada, havendo, contudo, alguns projetos de lei nesse sentido.[93]
Na segunda hipótese de estado de sítio, envolvendo declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira, não há, em tese, limitações ao Poder Público. De todo modo, no decreto de estado de sítio deve constar quais direitos sofrerão restrição e como ela se dará (art. 138, da CF).