1. INTRODUÇÃO
O maior volume de ações judiciais em trâmite na Justiça Federal, principalmente nos Juizados Especiais, é incontestavelmente relativo a concessão de benefícios por incapacidade. Os motivos dessa demanda se justificam estatisticamente em razão da grande quantidade de benefícios requeridos junto ao INSS e do caráter temporário desses benefícios.
Por natureza, o auxílio-doença e até mesmo as aposentadorias por invalidez são consideradas benefícios temporários, pois só devem durar enquanto persistir a incapacidade. É isso que se retira da Lei 8.213/91 e é o que vigora para a maioria dos segurados que têm o seu benefício concedido administrativamente.
O problema ocorre quando a decisão administrativa é revista pelo Judiciário e o auxílio-doença ganha a rubrica de “concedido judicialmente”. Nesse caso, a característica da temporariedade tem se perdido em meio ao trâmite das ações judiciais. E o resultado são auxílios-doença que se mantêm por mais tempo do que dura a incapacidade.
2. O AUXÍLIO-DOENÇA NÃO FOI FEITO PARA DURAR: A MANUTENÇÃO ADMINISTRATIVA DO BENEFÍCIO CONCEDIDO PELO INSS
A Lei 8.213/91 prevê o óbvio, o auxílio-doença e aposentadoria por invalidez serão mantidos enquanto o segurado permanecer incapaz (art. 60) e enquanto durar a impossibilidade de reabilitação para função que garanta a subsistência (art. 42).
Art. 42. A aposentadoria por invalidez, uma vez cumprida, quando for o caso, a carência exigida, será devida ao segurado que, estando ou não em gozo de auxílio-doença, for considerado incapaz e insusceptível de reabilitação para o exercício de atividade que lhe garanta a subsistência, e ser-lhe-á paga enquanto permanecer nesta condição.
Art. 60. O auxílio-doença será devido ao segurado empregado a contar do décimo sexto dia do afastamento da atividade, e, no caso dos demais segurados, a contar da data do início da incapacidade e enquanto ele permanecer incapaz.
A Lei de benefícios ainda ressalta que o segurado em gozo de auxílio-doença e de aposentadoria por invalidez deve se submeter às perícias administrativas sob pena de ter o benefício suspenso.
Art. 101. O segurado em gozo de auxílio-doença, aposentadoria por invalidez e o pensionista inválido estão obrigados, sob pena de suspensão do benefício, a submeter-se a exame médico a cargo da Previdência Social, processo de reabilitação profissional por ela prescrito e custeado, e tratamento dispensado gratuitamente, exceto o cirúrgico e a transfusão de sangue, que são facultativos. (Redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995)
Na prática, todo benefício previdenciário por incapacidade é concedido com prazo para terminar. Uma vez reconhecida a incapacidade na perícia administrativa, é fixada uma data futura de cessação do benefício (DCB ou alta programada), de acordo com prazo estipulado pelo perito para a recuperação. A partir daí, fica a cargo do segurado pleitear a manutenção do benefício através do pedido de prorrogação e do pedido de reconsideração.
Trata-se de prática concebida pelo INSS desde 2005, com a criação do programa COPES (Cobertura Previdenciária Estimada). Embora esse programa tenha gerado muita reclamação por parte dos segurados, o que se refletiu em ações judiciais questionando a sistemática, a jurisprudência se definiu pela legalidade da alta programada[1].
Apenas a Ação Civil Pública – ACP nº. 2005.33.00.020219-8 (14ª. Vara da Justiça Federal de Salvador/BA) em decisão com abrangência nacional, adaptou a regra para determinar que INSS mantenha o auxílio-doença ativo até o resultado do pedido de prorrogação, para evitar que o segurado tenha o benefício cessado antes da realização de novo exame pericial.
Com isso, o segurado goza do benefício até a data da alta programada. Caso a recuperação não ocorra dentro do prazo estipulado pelo perito, o segurado pode discordar da data e fazer um pedido de prorrogação dentro de 15 antes da DCB, quando permanecerá recebendo o benefício até a conclusão do seu pedido.
A alta programada foi criada para tornar mais eficiente o processo de concessão e facilitar da vida dos segurados. Como a maior parte dos benefícios é concedida para doenças simples e de prognóstico fácil, não haveria necessidade de se condicionar a alta a um exame pericial em todos os casos, o que só serviria para atrasar a agenda de perícias. Essa sistemática também diminui o tempo de duração dos benefícios, pois transfere ao segurado a responsabilidade de comprovar que permanece incapacitado e que deve seguir gozando o benefício por mais tempo[2].
3. O QUE ACONTECE QUANDO O BENEFÍCIO POR INCAPACIDADE É CONCEDIDO JUDICIALMENTE: A INVERSÃO DO ÔNUS.
Muitos segurados preferem recorrer ao Judiciário com o intuito de fugir da alta programada e ter o benefício concedido por mais tempo. Não são raros os casos em que o segurado sequer faz o requerimento administrativo depois de um evento incapacitante, mesmo quando a concessão é certa (p. ex. uma cirurgia)[3].
Isso porque os auxílios-doença concedidos judicialmente costumam se manter ativos por períodos mais longos, justamente por não ter a DCB previamente fixada na data de reavaliação prevista pelo perito, como ocorre na concessão administrativa. Dessa forma, os papéis se invertem, pois não cabe aos segurados provar que ainda estão incapacitados (regra), mas sim ao INSS provar que eles se recuperaram.
O problema é mais sério quando a sentença concede a antecipação dos efeitos da tutela, o que implica no recebimento do benefício mesmo após a alta médica fixada no laudo. Ou seja, mesmo potencialmente recuperada, a parte autora vai receber auxílio-doença por prazo indeterminado.
Diante disso, não pode haver tamanha discrepância de procedimentos. A concessão judicial não deve transferir ao INSS o ônus de provar que a parte autora já se recuperou. Se o auxílio-doença pressupõe provisoriedade, a sua concessão deve ter data para terminar, cabendo ao segurado a comprovação de que a incapacidade persiste, quando então será concedido novo prazo.
4. COMO IMPEDIR QUE OS BENEFÍCIOS POR INCAPACIDADE DUREM ETERNAMENTE
A situação se complica ainda mais quando a data prevista para a alta (de acordo com a própria perícia judicial) se encerra ainda durante a instrução. Não que o processo seja demorado, mas em muitos casos as doenças são simples e com prazos curtos, de dois a quatro meses de recuperação.
Assim, algumas medidas seriam necessárias para se combater o prolongamento indevido do benefício, tais como: a realização de novo exame pericial antes da sentença, a intimação da parte autora para que comprove por documentos a persistência da incapacidade ou, até mesmo, a fixação da DCB na sentença.
Uma nova perícia antes da sentença seria a situação ideal para se evitar a concessão de um benefício sem prazo definido para um segurado já apto ao trabalho. No entanto, bastaria que a parte autora juntasse aos autos provas de que permanece em tratamento, sem condições de retornar ao trabalho (prontuários, atestados, exames etc.).
Quando as sentenças são proferidas quando o segurado já poderia ter alta, há negligência do julgador, que analisa fatos ultrapassados e que sentencia fundamentado em uma presunção (da incapacidade) que não cabia ao INSS afastar. Cabe à parte autora provar que permanece incapacitada após a data prevista para a alta. A única presunção no caso é de que o auxílio-doença é temporário e que deve ser tratado como tal, inclusive perante o Judiciário.
Mesmo que se admitisse o raciocínio reverso e que o INSS tivesse que provar que o segurado se recuperou, isso só seria possível através de uma perícia administrativa. Porém, até que a ação judicial chegue ao fim ou que o benefício seja, de fato, concedido por antecipação de tutela, não haveria sequer um benefício a ser cessado, o que inviabiliza o próprio agendamento de uma perícia administrativa. Além disso, se o juiz não está adstrito nem ao laudo do perito judicial[4], o laudo administrativo não teria muita utilidade como prova nesse caso.
Qualquer alteração no estado de saúde da parte autora que ocorra durante a instrução deve ser de conhecimento do juízo, para que a decisão final esteja mais próxima da realidade de um benefício temporário. Também não se pode falar em "fato superveniente" se ele ocorreu durante a instrução.
O argumento de que a realização de um novo exame causaria o prolongamento indefinido da demanda também não procede, pois normalmente são acolhidos pedidos de complementação de perícia e até de realização de novo exame quando feitos pela parte autora. Ou seja, um novo exame a pedido do INSS não seria prejudicial ao processo, pois, se feito ao final da instrução, permitiria que a sentença fosse proferida de forma mais acertada.
Se o tempo da instrução for superior ao próprio prazo concedido pela perícia, há um grande risco de que os pressupostos que ensejam a concessão não estejam mais presentes no momento da sentença. Mesmo que se trate de mero prognóstico, não se deve presumir a permanência da incapacidade, pois se deve ter por princípio a provisoriedade do benefício, e não a sua permanência indefinida.
Outra forma de se evitar o prolongamento indevido do benefício seria pleitear a fixação da DCB na data da reavaliação prevista no laudo. Todavia, a jurisprudência tem se posicionado no sentido de permitir essa conduta apenas nos casos em que o laudo é enfático quanto à certeza da alta dentro do prazo estipulado, o que ocorre com mais frequência em casos de cirurgias simples e de complicações decorrentes da gravidez.
INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO REGIONAL. PREVIDENCIÁRIO. AUXÍLIO-DOENÇA. ALTERAÇÃO DA DATA DE INÍCIO DA INCAPACIDADE FIXADA POR PERÍCIA JUDICIAL. IMPOSSIBILIDADE. REEXAME DE PROVA. FIXAÇÃO DA DATA DE CESSAÇÃO DO BENEFÍCIO NA SENTENÇA. POSSIBILIDADE. MATÉRIA UNIFORMIZADA. INCIDENTE NÃO CONHECIDO. 1. A instância de origem, para fundamentar seu juízo acerca da data de início da incapacidade, assim procedeu a partir da análise conjunta do laudo pericial e das demais provas dos autos. Não se poderia, em incidente de uniformização, rever esse exame (IUJEF n. 0002396-23.2007.404.7059, relator para o acórdão Juiz Federal Leonardo Castanho Mendes, D.E. 16/11/2012). 2. Esta Turma Regional entende que 'não há óbice que o magistrado, baseado em laudo médico conclusivo que estabeleça período de convalescença, fixe prazo para a fruição do benefício de auxílio-doença.' (IUJEF 5000658-68.2012.404.7210, relatora Juíza Federal Marina Marques Duarte de Barros Falcão, D.E. 28/02/2013) 3. Aplicação, por analogia, da Questão de Ordem n. 13, da TNU, para não conhecer do incidente. (5002556-53.2011.404.7210, Turma Regional de Uniformização da 4ª Região, Relator p/ Acórdão André de Souza Fischer, D.E. 31/05/2013)
INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO REGIONAL. PREVIDENCIÁRIO. AUXÍLIO-DOENÇA. FIXAÇÃO DA DATA DE CESSAÇÃO DO BENEFÍCIO NA SENTENÇA. POSSIBILIDADE. 1. Não há óbice que o magistrado, baseado em laudo médico conclusivo que estabeleça período de convalescença, fixe prazo para a fruição do benefício de auxílio-doença. 2. Precedentes da TRU-4ª Região 3. Incidente conhecido e improvido. (5000736-96.2011.404.7210, Turma Regional de Uniformização da 4ª Região, Relator p/ Acórdão Gerson Luiz Rocha, D.E. 26/04/2013)
A pura e simples fixação da DCB em qualquer caso pode ter o efeito inverso, pois pode encerrar prematuramente um auxílio-doença de quem necessitaria de mais prazo para se recuperar. De qualquer forma, o segurado poderia requerer novo benefício perante o INSS a fim de comprovar a manutenção da incapacidade.
5. A CONDUTA DO INSS
Quando um auxílio-doença é concedido judicialmente, não há qualquer previsão de alta que possibilite o INSS de controlar objetivamente o tempo de duração desses benefícios. Diferente da alta programa, o INSS fica totalmente às escuras, pois qualquer iniciativa no sentido de cessar o benefício deve passar por uma análise processual caso a caso para que se evite questionamentos futuros quanto à eventual ofensa à coisa julgada.
Na prática, por falta de estrutura, todos os esforços do INSS estão concentrados nas concessões administrativas, em que o próprio segurado solicita o agendamento da perícia, seja no momento do requerimento, seja na data da alta programada. A política atual é de que a ineficiência da autarquia não se volte contra os segurados, pois é melhor pagar além do devido do que deixar alguém que realmente precise sem receber.
O problema é que a falta de controle dos benefícios por incapacidade concedidos judicialmente pode provocar distorções muito graves. Há casos de benefícios que permaneceram ativos por quase uma década e, com eles, segurados que se acomodam e não têm como se reinserir no mercado de trabalho depois de tanto tempo afastados. Ou seja, o benefício acaba criando uma dependência maléfica para a sociedade.
Por outro lado, qualquer revisão de um benefício por incapacidade concedido judicialmente passa necessariamente por uma análise processual prévia, o que torna a tarefa complexa e dispendiosa.
Isso demandaria uma atuação conjunta da Procuradoria Federal, responsável pelo contencioso previdenciário, e do INSS. Nesse sentido, foi editada recentemente a Portaria Conjunta INSS/PGF nº 4, de 10 se setembro de 2014 - DOU de 11/09/2014.
Esse regulamento prevê regras que devem ser seguidas pelos Procuradores Federais para auxiliar o INSS a efetuar a revisão administrativa dos benefícios concedidos judicialmente.
A maior dificuldade é definir o momento em que o INSS pode convocar o segurado para uma perícia de revisão e, eventualmente cessar o benefício, sem descumprir a decisão judicial. Como regra geral, foi fixado um prazo de 6 meses da concessão ou do trânsito em julgado para auxílios-doença e 2 anos para as aposentadorias por invalidez. No entanto, se a sentença tiver definido um outro prazo (normalmente o prazo fixado na perícia judicial), este deve prevalecer.
Quanto à possibilidade de cessação do benefício, a portaria traz as seguintes hipóteses:
Art. 11. A cessação do benefício concedido judicialmente pode ocorrer nas seguintes hipóteses:
I - cumprimento de decisão judicial que a determine;
II - fixação expressa da Data de Cessação do Benefício - DCB na decisão judicial;
III - em cumprimento de orientação exarada em manifestação jurídica do órgão de execução da PGF, na hipótese tratada no art. 14; e
IV - nos casos em que houver trânsito em julgado e que a revisão administrativa concluir pela recuperação da capacidade laborativa/cessação do impedimento de longo prazo, bem como a superação das condições que ensejaram a concessão do benefício judicial.
Os dois primeiros incisos, são os casos já analisados anteriormente. Já o inciso III contempla as hipóteses em que é constatada uma causa impeditiva para a manutenção do benefício (recuperação da capacidade ou retorno ao trabalho), mas ainda não houve transito em julgado. O art. 14 determina que a Procuradoria deverá ser comunicada para que se posicione quanto à possibilidade de cessação no caso concreto, seja autorizando de pronto o encerramento do benefício (se este for o posicionamento do judiciário local), seja peticionando em juízo para autorização.
A maior dificuldade é que, diante de tantas variáveis, cada processo e cada benefício concedido tem suas próprias regras, de acordo com a decisão proferida. Tem sentença que afirma expressamente que o INSS pode cessar o benefício uma vez constatada a recuperação da capacidade, mas tem julgado que exige ao menos o resguardo do segurado dentro do prazo concedido pela perícia judicial. A Portaria tentou fixar regras gerais, mas também foi obrigada a contemplar exceções conforme o caso, o que dificulta o processo de revisão administrativa.
6. CONCLUSÃO
Existem várias formas de se evitar que os benefícios por incapacidade concedidos pelo Judiciário durem eternamente. Antes, é preciso que os juízes tenham consciência do caráter especial do auxílio-doença, que demanda rapidez no julgamento e avaliação periódica do estado de saúde do demandante. O provimento jurisdicional não encerra a questão, nem impossibilita a sua posterior revisão, mas é preciso conferir ao auxílio-doença a precariedade que lhe é natural.
Não há ação judicial tão rápida quanto a recuperação de um segurado em alguns casos. Assim, a sentença não pode ser proferida com base em um laudo ultrapassado, que já não reflete mais a realidade do estado de saúde do segurado.
Por mais que o INSS e a Procuradoria Federal se esforcem para tentar acompanhar esses benefícios e prevenir casos de manutenção além da incapacidade, seria necessário um trabalho de conscientização do judiciário para o problema existente.
Se o benefício não deve durar além da incapacidade, é certo que a responsabilidade do Judiciário não se encerra na sentença. Por isso, deveria existir um cuidado maior no momento de se conceder um beneficio por incapacidade a um segurado potencialmente recuperado, pois ele irá usufruir do benefício muito além do que lhe é devido.
7. BIBLIOGRAFIA
GOUVEIA, Carlos Alberto Vieira de. Benefício por Incapacidade & Perícia Médica. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2014.
IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 19ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2014.
LAZZARI. João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 8a Ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2007.
MARTINEZ, Wladimir Novaes. Curso de Direito Previdenciário. 3ª ed. São Paulo: LTr, 2010.
Notas
[1] TRF4. AC-5000176-18.2010.404.7202. UF: SC. Quinta Turma. Relator: Ricardo Teixeira do Valle Pereira. Data da Decisão: 11/03/2014.
[2] Em sentido contrário: LAZZARI. João Batista. Manual de Direito Precidenciário. 8a Ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2007. p 529.
[3] IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de direito previdenciário. 19ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2014. p. 653
[4] “nas ações em que se objetiva auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez o julgador firma seu convencimento, via de regra, com base na prova pericial” (AC 20050401027845-8/PR - Rel. Des. Federal Ricardo Teixeira do Valle Pereira - DJU de 21.09.2005).