A imunidade parlamentar formal constante do art. 53, § 2º, da CF (também chamada de freedom from arrest), apesar de muito criticada, possui sua gênesis em princípios bastante salutares, baseados na independência do Poder Legislativo frente aos demais Poderes.
Assim dispõe o referido dispositivo:
Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. (...)
§ 2º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.
Segundo Alexandre de Moraes, “imunidade formal é o instituto que garante ao parlamentar a impossibilidade de ser ou permanecer preso ou, ainda, a possibilidade de sustação do andamento da ação penal por crimes praticados após a diplomação.”. Seguindo adiante, Alexandre de Moraes acrescenta que “os parlamentares, salvo nas hipóteses anteriormente estudadas de imunidade material, estão submetidos às mesmas leis que os outros indivíduos em face do princípio da igualdade, tendo de responder como estes por seus atos criminosos, mas, no interesse público, convém que eles não sejam afastados ou subtraídos de suas funções legiferantes por processos judiciais arbitrários ou vexatórios, emanados de adversário político, ou governo arbitrário. Consequentemente, esta prerrogativa protegerá os parlamentares contra a violência dos demais poderes constitucionais ou dos indivíduos em geral.” (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 27ª Ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 464-465).
Pedro Lenza complementa o esboçado acima afirmando que “os parlamentares passam a ter imunidade formal para a prisão a partir do momento em que são diplomados pela Justiça Eleitoral, portanto, antes de tomarem posse (que seria o ato público e oficial mediante o qual o Senador ou Deputado se investiria no mandato parlamentar).” (LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 15ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 477).
Em verdade, para o bom e independente desempenho do seu cargo, o parlamentar (guardados os princípios da proporcionalidade e razoabilidade) deve estar devidamente assegurado do seu direito de liberdade. E, para isso, a Constituição Federal prevê algumas imunidades materiais e formais. Aqui trataremos especificamente da imunidade formal referente à prisão, pois é esta que se relaciona com a eventual prisão civil por dívida de alimentos.
Em que pese a clareza do texto e a interpretação majoritária tanto da doutrina como da jurisprudência, recentemente tivemos notícia do encarceramento de um Deputado Estadual sob o argumento de que o mesmo não havia adimplindo algumas parcelas de pensão alimentícia devidas à ex-mulher.
Neste momento abrimos um pequeno parêntesis apenas para esclarecer que os Deputados Estaduais estão acobertados das mesmas garantias previstas para os congressistas federais – inteligência do art. 27, §1º, da CF:
Art. 27. (...) § 1º Será de quatro anos o mandato dos Deputados Estaduais, aplicando-se-lhes as regras desta Constituição sobre sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades, remuneração, perda de mandato, licença, impedimentos e incorporação às Forças Armadas.
Voltando à prisão civil por dívida de alimentos, o Código de Processo Civil Brasileiro de 1973 previu uma modalidade específica de execução quando a quantia devida diz respeito à prestação alimentícia. Mais especificamente no art. 733 do CPC temos a normatização da situação que poderá culminar em prisão, vejamos:
Art. 733. Na execução de sentença ou de decisão, que fixa os alimentos provisionais, o juiz mandará citar o devedor para, em 3 (três) dias, efetuar o pagamento, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo.
§ 1o Se o devedor não pagar, nem se escusar, o juiz decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses.
§ 2o O cumprimento da pena não exime o devedor do pagamento das prestações vencidas e vincendas.
§ 3o Paga a prestação alimentícia, o juiz suspenderá o cumprimento da ordem de prisão.
Pois bem, tendo a credora de alimentos ajuizado execução nos moldes acima delineados, o congressista estadual foi enquadrado como incurso no referido dispositivo, sendo-lhe decretada a prisão pelo prazo de um mês.
Com a devida vênia, o e. Juiz de Direito que decretou a prisão civil empreendeu manifesta ilegalidade, pois, a pretexto de dar cumprimento à norma legal, olvidou a norma constitucional – a qual embasa todo o ordenamento jurídico.
A qualidade pessoal de parlamentar não serve como privilégio, mas como prerrogativa inerente à natureza do cargo ocupado.
De maneira ainda mais grave, é sabido que o Tribunal de Justiça não deferiu o Habeas Corpus pleiteado, sendo necessária a impetração em Tribunal Superior – local onde o mandamus foi concedido de ofício por razões outras, alheias à imunidade formal. Ou seja, com a ressalva de entendimento pessoal do relator, concedeu-se a liminar de soltura por circunstâncias específicas do caso concreto que não diziam respeito com o art. 53, § 2º, da CF.
Nesse sentido, acredita-se que, por se tratar de situação pouco usual no Judiciário, a questão merece melhor estudo com o intuito de aprimorar eventual fundamentação em eventual caso análogo que venha a ocorrer.
Assim, no nosso entender, o art. 53, § 2º, da CF prevê a regra geral de que “os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos”, especificando qual seria a única exceção: “flagrante de crime inafiançável".
O que levou o Judiciário a decretar a prisão do parlamentar estadual foi o argumento de que a referida imunidade formal apenas dizia respeito ao cometimento de crimes. Ou seja, apenas teria aplicação no âmbito do Direito Penal – portanto, não albergaria a situação da prisão civil. Esdruxulamente, protege-se o “mais”, mas esquece-se do “menos”.
Conforme se observa, trata-se de interpretação restritiva. Os hermeneutas do caso específico criaram empecilhos onde a Constituição não previa, sendo esta uma visão míope do nosso ordenamento jurídico.
Aliás, esta interpretação é uma completa subversão da própria origem do instituto que previa a imunidade para a prisão civil, mas não para a prisão pela prática de crimes. Vejamos o que Alexandre de Moraes fala a respeito:
“No tocante à freedom from arrest norte-americana e inglesa, a praxe, a jurisprudência e a doutrina alienígenas são pacíficas no sentido ser ela impeditiva somente de prisão civil, não tutelando ‘as prisões em razão da prática de crimes ou, pelo menos, em relação aos crimes mais graves, nem tampouco quanto às prisões preventivas ou prisão sem julgamento, por determinação do governo por motivo de segurança, nos termos da lei de defesa do país, podendo-se concluir que a instituição da imunidade teve fundamentalmente o objetivo de impedir a prisão por dívidas, frequentes antigamente no direito inglês’.” (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 27ª Ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 466)
Portanto, no sistema pátrio (diferentemente do Direito estrangeiro), se a imunidade formal alcança a prisão pelo cometimento de crime (salvo o flagrante em crime inafiançável), com muito mais propriedade deve albergar também a prisão civil por dívida de alimentos. Sem esquecer que, para a cobrança desta, existem outros meios muito menos gravosos que possibilitam o mesmo resultado prático, tais como o desconto em folha de pagamento/contracheque, penhora etc.
Assim, em que pese decisões destoantes da melhor interpretação do Direito Pátrio, necessário salientar que a doutrina é, em sua maioria, adepta da teoria de que os parlamentares “não poderão ser presos, seja a prisão penal (englobando aí a prisão temporária, em flagrante delito de crime afiançável, por pronúncia, preventiva...) ou a prisão civil (nos termos do art. 5.º, LXVII).” (LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 15ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 477).
A jurisprudência, por sua vez, é bastante escassa, porém vejamos o seguinte precedente que trata de situação similar:
EMENTA CONSTITUCIONAL. CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DEPOSITÁRIO INFIEL. PRISÃO CIVIL. COMPETÊNCIA DO JUÍZO CIVIL. IMUNIDADE PARLAMENTAR. IMPOSSIBILIDADE DA PRISÃO. GARANTIA INERENTE AO MUNUS PÚBLICO DO DEPUTADO. A prisão civil, decorrente de depósito civil, tem natureza eminentemente coercitiva, de modo que, não possuindo caráter penal, sua decretação é de competência do Juízo civil. Em virtude da imunidade parlamentar, esta decorrente do munus público desempenhado pelo deputado ou senador, não se permitem atos prisionais à pessoa de seu titular sem licença da Casa em que atua, sendo única exceção a prisão em flagrante de crime inafiançável. Sendo, na hipótese, o executado deputado estadual, aplica-se a imunidade parlamentar por força do art. 27, § 1º, da Constituição Federal. Agravo improvido.
(Agravo de Instrumento nº 8.236-PE Relator: Juiz Petrucio Ferreira, Julgado em 05 de novembro de 1996, por unanimidade)
Por fim, “a garantia pátria, consagrada constitucionalmente, difere de suas origens históricas, por sua maior abrangência, pois a imunidade formal abrange prisão penal e a civil, impedindo sua decretação e execução em relação ao parlamentar, que não pode sofrer nenhum ato de privação de liberdade, exceto o flagrante de crime inafiançável. Assim, mesmo a prisão civil do parlamentar, nas hipóteses constitucionalmente permitidas do devedor de alimentos e do depositário infiel, para compeli-lo à restituição dos objetos ou à satisfação dos alimentos, não poderá ser decretada.” (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 27ª Ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 466).
Quanto à passagem acima, importante fazer uma única ressalva concernente ao fato de que o STF entende não mais ser cabível a prisão civil do depositário infiel com base no Pacto de São José da Costa Rica.
Desse modo, conclui-se que o art. 53, § 2º, da CF engloba tanto a prisão penal como a prisão civil.