6) O DESVIO DE FINALIDADE E AS CONSEQUÊNCIAS NEFASTAS PARA O SISTEMA DE SEGURANÇA PÚBLICA NACIONAL E PARA A SOCIEDADE DE MANEIRA GERAL
Ao editar a Resolução nº 213/2015, o CNJ, por todas as razões expostas, ainda incorreu no desvio de finalidade.
Sob o pretexto de garantir direitos humanos e aplicar normas internacionais, o Conselho Nacional de Justiça e seu, então, presidente, editaram regras sobre direito penal e processo penal, além de invadir competências alheias, para, na verdade, de forma, paliativa, reduzir a população carcerária.
Ocorre que isso caracteriza, como dito, patente desvio de finalidade do ato administrativo.
E neste ponto, não é demais colacionar os ensinamentos do mestre Hely Lopes Meirelles[129]:
“...O ato praticado com desvio de finalidade – como todo ato ilícito ou imoral – ou é consumado às escondidas ou se apresenta disfarçado sob o capuz da legalidade e do interesse público. Diante disto, há que ser surpreendido e identificado por indícios e circunstâncias que revelem a distorção do fim legal, substituído habilidosamente por um fim ilegal ou imoral não desejado pelo legislador(...)
A lei regulamentar da ação popular (lei 4.717, de 29.6.65) já consigna o desvio de finalidade como vício nulidificador do ato administrativo lesivo do patrimônio público e o considera caracterizado quando o “agente pratica o ato visando a fim daquele diverso do previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência” (art. 2º, “e”, e parágrafo único, “e”). Com essa conceituação legal, o desvio de finalidade entrou definitivamente para nosso Direito Positivo como causa de nulidade dos Atos da Administração...”
Entretanto, diversamente do pretendido, o STF e o CNJ não alcançaram seus intentos.
Na realidade, novamente invocando um velho dito popular, qual seja, o de que “...a emenda saiu pior do que o soneto...”, o STF e o CNJ acabaram por criar novos problemas no cenário nacional.
Isto porque, na prática as “audiências de custódia” não foram integralmente implementadas e nem têm como sê-las. A dependência (inclusive financeira) de outras instituições para efetiva implantação, aliada à falta de estrutura das entidades públicas envolvidas impedem, por completo, a pretensão desses órgãos do Poder Judiciário.
Aliás, o próprio Poder Judiciário, não possui estrutura material e humana para tanto. Não é por outra razão, que em inúmeras comarcas do interior dos mais variados Estados do país, sequer juiz há.
Em outros tantos locais, objetiva-se limitar períodos nos fóruns para realização das “audiências de custódia”, o que contraria, totalmente, a intentio legis das normas internacionais (que frise-se bem, como dito, no Brasil são cumpridas através do Delegado de Polícia) e a suposta intenção da Resolução nº 213/2015 do CNJ.
Como se não fosse suficiente, em várias Comarcas, a “audiência de custódia” só é realizada depois de dias, obrigando policiais e/ou agentes penitenciários a retirar e, posteriormente, quando não ocorre a libertação, retornar com os presos para o sistema penitenciário. Nesses sítios, portanto, as audiências não servem para os fins para os quais foram realizadas.
A impossibilidade de implantação das “audiências de apresentação”, culminaram por colocar os comandos contidos nas decisões do STF e o normativo do CNJ em descrédito, o que é um grande prejuízo para a nação.
Com efeito, até mesmo os Tribunais estão relativizando a obrigatoriedade introduzida pela Resolução nº 213/2015 do CNJ, como demonstrado pelos julgados mencionados ao longo desse estudo.
Mas não é só, pois parte dos próprios magistrados se insurgiram contra a descabida audiência de apresentação, chegando ao ponto de propor a Ação Direta de Inconstitucionalidade, autuada sob o nº 5.448, contra a citada Resolução.
Na peça exordial da referida demanda, a entidade autoria, qual seja, a Associação nacional dos Magistrados Estaduais (ANAMAGES), dentre outras alegações, corrobora parte do da inconstitucionalidade esposada no presente trabalho, pois sustenta que o CNJ, ao editar a Resolução nº 213/2015, “...usurpou a competência privativa do Congresso Nacional, ante o caráter normativo-abstrato e a inovação no ordenamento jurídico causada pelo referido ato...”[130]
Independentemente do resultado do julgamento da referida ADI, certo é, que foi manifestada a intenção de não cumprir a Resolução nº 213/2015 do CNJ, bem como as decisões proferidas pelo STF nos autos das ações antes mencionadas.
Diversos órgãos governamentais também têm se manifestado contrários às obrigações impostas pelo aludido normativo.
Exemplificativamente, pode-se citar a Corregedoria Geral da Polícia Federal que, ao analisar minuta de acordo de cooperação técnica para implementação das audiências de custódia no âmbito da Justiça Federal da 3ª Região (lastreada na Resolução nº 213/2015 do CNJ), dentre outras colocações, assim dispôs:
“...O Exmo. Superintendente Regional da PF em São Paulo encaminhou minuta de acordo de cooperação técnica e proposta de plano de trabalho entre a SR/SP, TRF-3a Região, MPF e DPU que visa a implantação das audiências de custódia no âmbito da JF da 3a Região e determinou que se encaminhasse o termo de cooperação para apreciação da Corregedora-Geral da PF "por, em tese, haver desvio de finalidade desta Polícia Federal com o transporte de presos"
(...)
III - DO NÃO CABIMENTO DE CUSTÓDIA E TRANSPORTE DE PRESOS PELA POLÍCIA FEDERAL
É bom lembrar que não há celas para custódia de presos na Polícia Federal. A Direção-Geral do DPF expediu a Mensagem OficialCircular nº 27/2010-DG/DPF de 30/04/2010, publicada no Boletim de Serviço nº 083, de 04/05/2010, pela qual informa a extinção dos núcleos de custódia e determinando providências imediatas para a sua desativação, nos seguintes termos:
“Com a publicação da Portaria no. 3961/MJ, de 24 de novembro de 2009, na seção 1 do DOU. no. 225, de 25 de novembro de 2009, entrou em vigor o novo regimento interno do DPF, com o escopo de corrigir alguns artigos que se encontravam redigidos de forma inadequada ou com conteúdo irregular. Cumpre esclarecer que as alterações propostas começaram a ser encaminhadas ao Ministério da Justiça no ano de 2006, e somente foram incluídas no regimento interno do DPF em 2009, após detalhada análise da consultoria jurídica daquele órgão.
Ainda, com a finalidade de adequar a polícia federal às suas atribuições constitucionais e aplicação efetiva da lei de execução penal, foram extintos os núcleos de custódia da estrutura orgânica do DPF. desta forma, é imprescindível que os responsáveis por tais núcleos adotem as medidas necessárias para sua desativação".
O Ministério da Justiça, por sua Consultoria Jurídica, exarou o Parecer CEP/CGLEG/CONJUR/MJ nº 296/2009, no processo nº 08004.001930/2007-37 pela extinção de núcleos de custódia na PF, cuja ementa foi lavrada nos seguintes termos:
“Análise da nova versão da minuta de Regimento Interno do Departamento de Polícia Federal – DPF. Sugestões de caráter formal, em atendimento ao disposto na Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, e no Decreto nº 4.176, de 28 de março de 2002. Constitucionalidade e legalidade do ato normativo proposto, observadas as correções de forma destacadas no parecer. Manifestação favorável à extinção dos Núcleos de Custódia, tendo em vista o disposto no § 1º do art. 144 da Constituição Federal e na legislação ordinária em vigor que rege as competências da Polícia Federal. Sugestão de providências do DPF junto ao Conselho Nacional de Justiça, à Justiça Federal de Primeiro Grau da Terceira Região e ao Departamento Penitenciário Nacional”.
Quanto à legislação federal, dispõe o art. 85 da Lei nº. 5.010/66:
“Art. 85. Enquanto a União não possuir estabelecimentos penais, a custódia de presos à disposição da Justiça Federal e o cumprimento de penas por ela impostas far-se-ão nos dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios”.
A Primeira Turma do TRF5, em acórdão da lavra do Des. Federal Francisco de Barros e Silva, no AGEXP 200985000016672, publicado no DJE de 08/03/2010, p. 156, decidiu que:
"PROCESSUAL PENAL. AGRAVO (ART. 197 DA LEI No 7.210, DE 11 DE JULHO DE 1984 - LEI DE EXECUÇÃO PENAL). CONDENADO PELA JUSTIÇA FEDERAL. EXECUÇÃO DA PENA. 1. A Lei no 5.010, de 30 de maio de 1966, que organizou a Justiça Federal de primeira instância, previu que enquanto "a União não possuir estabelecimentos penais, a custódia de presos à disposição da Justiça Federal e o cumprimento de penas por ela impostas far-se-ão nos dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios" (art. 85). A União ainda não criou unidades prisionais para presos comuns. (...)".
A Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça já firmou o entendimento de que o transporte de presos para audiência na Justiça Federal é atribuição do Departamento Penitenciário Nacional (Parecer 135/2010/CEP/CGLEG/CONJUR/MJ, de 6/10/2010, processo 08000.011018/2010-29):
"I - Consulta referente ao procedimento de escoltas de presos para participar de audiência.
II - Inquérito civil instaurado pelo Ministério Público Federal para apurar qual é o órgão responsável pela realização de escolta de presos federais (DEPEN ou DPF).
III - Competência do DEPEN nos termos da legislação aplicável à espécie".
IV- DAS RESTRIÇÕES DA LEI DE EXECUÇÃO PENAL À CUSTÓDIA DE PRESOS EM DELEGACIAS
Quanto à execução penal, estatuem os arts. 82, 83 e 102 da LEP:
"Art. 82. Os estabelecimentos penais destinam-se ao condenado, ao submetido à medida de segurança, ao preso provisório e ao egresso".
"Art. 83. O estabelecimento penal, conforme a sua natureza, deverá contar em suas dependências com áreas e serviços destinados a dar assistência, educação, trabalho, recreação e prática esportiva".
"Art. 102 - A cadeia pública destina-se ao recolhimento dos presos provisórios".
As carceragens de Polícia Judiciária não são estabelecimentos penais, não se destinam a condenados, sentenciados e presos provisórios, mas aos atos de polícia judiciária para formalização da prisão em flagrante delito efetuada, na maior parte das vezes, por Policiais Militares, Policiais Rodoviários, Policiais Civis e Policiais Federais.
A custódia e o cumprimento de penas em estabelecimentos prisionais são obrigações constituídas em lei federal, cuja inobservância gera responsabilidade civil, administrativa e penal...”[131]
Ante os entraves enfrentados na implementação do “projeto” do CNJ, a probabilidade da Resolução virar letra morta é deveras significativa.
Mas mesmo levando todos esses fatores em conta de consideração, nada se compara à nefasta consequência que a mencionada Resolução trouxe para a segurança pública e para a paz social, nos locais em que houve o engajamento ao “projeto”.
Com efeito, nessas localidades, escambou-se, trocou-se, a possibilidade de superlotação dos presídios, pelo aumento da insegurança e da violência, ou seja, pelo aumento da criminalidade.
Nesses locais, foram mantidos criminosos nas ruas, de modo que eles pudessem continuar apavorando a população e aumentando, ainda mais, a insegurança da sociedade.
São inúmeros os relatos de cidadãos presos pelas polícias que foram soltos nas audiências de custódia e que voltaram a delinquir, inclusive, cometendo homicídios.
Atrelado a tais fatos, tem-se a pior consequência, qual seja, o aumento da desmotivação policial.
Nas redes sociais, circulam, diuturnamente, relatos de policiais que bem demonstram o fato, como, exemplificativamente, o que segue abaixo:
Esse golpe na segurança pública, gerou o desânimo dos agentes policiais, causando a redução das prisões.
O desdobramento dessa situação inusitada está sendo sentido e será sentido com mais intensidade no futuro.
E, aqui, para finalizar, pede-se vênia para retranscrever um parágrafo já constante do presente trabalho:
“...Um Estado sem força coativa não é capaz de fazer valer o direito, elemento fundamental para a convivência harmônica da sociedade. Um Estado sem sua longa manus de coerção, se torna anárquico. É o começo do fim. É a involução. Não é Estado. Não é democracia...”
Em síntese, pode-se dizer que na tentativa de resolucionar um problema de forma paliativa, o STF e o CNJ acabaram por criar problemas maiores para a nação brasileira.