SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO; 2 A FALÊNCIA DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO E O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL – ECI; 3 A ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL Nº 347; 4 ATIVISMO JUDICIAL NO PANORAMA POLÍTICO-DEMOCRÁTICO BRASILEIRO FRENTE AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SEPARAÇÃO DE PODERES; 5 CONCLUSÃO.
1 INTRODUÇÃO
Em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou que o sistema penitenciário brasileiro se encontrava em um estado de inconstitucionalidade, leia-se, reconheceu que havia um persistente quadro de violações massivas e generalizadas de direitos fundamentais dos detentos. Percebida, portanto, a vigência de um Estado de Coisas Inconstitucional (ECI), fazia-se necessária a utilização de técnicas efetivas no afã de suplantar esse quadro de descalabro que atingia os presídios de todo país.
Com efeito, mais do que a identificação de uma realidade inconstitucional, o Estado de Coisas Inconstitucional apresenta uma proposta decisória complexa e coordenativa. Trata-se, pois, de uma inovação na jurisdição constitucional pátria, que fora importada da Corte Constitucional colombiana, na busca da superação desse quadro de inconstitucionalidade que é assaz complexo e envolve assuntos polêmicos, tais como democracia e ativismo do Judiciário.
Assim, o presente artigo tem por objetivo identificar, de forma sintetizada, o que é e quais são os pressupostos de um ECI e relacioná-los ao sistema carcerário brasileiro. Indaga-se, no panorama político-democrático brasileiro: qual a conformidade desta nova ferramenta na tutela dos direitos fundamentais com o princípio da separação de poderes estatuído no artigo 2º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988? Eis o problema a ser enfrentado nos tópicos que seguem.
2 A FALÊNCIA DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO E O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL (ECI)
Expressão de origem da Corte Constitucional colombiana, muito embora o procedimento não seja originário da Colômbia, o ECI releva uma inovação na moderna jurisdição constitucional (CAMPOS, 2016, p.20). Dirley da Cunha Jr (2015) conceitua o instituto como sendo um cenário de “violações generalizadas, contínuas e sistemáticas de direitos fundamentais”. Assim, deve haver uma letargia estatal, vinculando a inação política e administrativa à contrariedade das determinações constitucionais (CAMPOS, 2016, p.16). Decerto que não se trata de um instituto fluido que se caracterize simplesmente pela ineficiência das políticas públicas ou por mera omissão inconstitucional. Há requisitos a serem observados para sua configuração.
Carlos Alexandre de Azevedo Campos (2016, p.177) apresenta quatro pressupostos para o reconhecimento do ECI, a saber: a) a verificação de um quadro não apenas de tutela deficitária, mas de lesões massivas a inúmeros direitos fundamentais, prejudicando um sem número de pessoas; b) uma insistente negligência das autoridades públicas no cumprimento de seus deveres na proteção dos direitos fundamentais; c) a probabilidade de que um número amplo de afetados transforme a violação a seus direitos em demandas judiciais, sobrecarregando ainda mais a máquina judiciária; e d) a necessidade de que o STF expeça ordens dirigidas a mais de um órgão e entidade para conseguir superar o inconstitucional estado de coisas.
Ainda segundo Campos (2016. p.96-97), a finalidade é guiar o Estado no caminho do respeito às garantias dos direitos fundamentais quando verificadas sérias lesões a tais direitos por negligência dos poderes públicos, deixando a Corte de limitar-se ao mister de guardiã dos direitos individuais em casos particulares, para assumir uma postura proativa no combate a esse quadro de inconstitucionalidade.
Quanto à realidade aviltante a que se submete a enorme população carcerária brasileira há uma correlação com o primitivismo que merece destaque. Isso porque o Estado, a pena e o Direito Penal estão de tal modo associados que é possível afirmar que a história do Direito Penal está relacionada ao surgimento da pena e aos primeiros grupamentos humanos, de modo que nos Estados mais primitivos concebia-se o Direito Penal da vingança.
Em um Estado Democrático de Direito, contudo, esta não deve mais ser a tônica justificadora de qualquer sanção penal. Entretanto, a pena privativa de liberdade no Brasil parece não ter se distanciado tanto daquelas aplicadas quando das incipiências da vida gregária, tendo em vista que em um sistema penitenciário completamente falido, a prisão não constitui medida efetiva no problema da criminalidade, mas apenas pune e retira temporariamente do convívio supostos inimigos da lei e da sociedade.
É dizer, defender a existência das penitenciárias é sustentar que elas sirvam à reabilitação do cidadão-preso, de forma que apenas poderia ele ser reinserido no convívio social quando capacitado para a convivência harmônica em sociedade. Pensa-se, pois, a pena privativa de liberdade como um instrumento de transformação do indivíduo encarcerado. Na prática, no entanto, os abarrotados e ineficazes presídios apenas acentuam os aspectos mais negativos dos custodiados e, posteriormente, os lança de volta à sociedade, agravando assim o problema da criminalidade.
Para se ter uma ideia, a Câmara dos Deputados (BRASIL, 2009) instaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar a realidade do sistema carcerário brasileiro e verificou que os detentos, de um modo geral, cotidianamente, presenciam assassinatos e se submetem a violências diversas. No Estado do Espírito Santo, por exemplo, a CPI contabilizou 4.819 vagas nas penitenciárias capixabas para 14.062 presos, o que revela uma superlotação de quase 200%.
Registre-se que este é apenas um exemplo de uma realidade que alcança toda a Federação. Tanto é verdade que, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347, em que se reclamou o reconhecimento do ECI no sistema penitenciário, o Ministro Marco Aurélio (BRASIL, 2015) destacou que “salta aos olhos o problema da superlotação, que pode ser a origem de todos os males”. Aduziu que “celas superlotadas ocasionam insalubridade, doenças, motins, rebeliões, mortes, degradação da pessoa humana”. Salientou que as mulheres presidiárias, muitas vezes, precisam se valer de miolos de pão “para contenção do fluxo menstrual”.
Dessa forma, para além de uma tutela deficitária na proteção dos direitos fundamentais dos presos, verifica-se induvidosa letargia estatal na concretização das determinações da Carta Magna, bem como que as causas do problema penitenciário não se restringem à responsabilidade de uma única pessoa, entidade ou governo, mas deve-se a uma inação de todo o poder público, em todos os níveis da federação e de todos os poderes, havendo, por isso, evidente descompasso entre as intenções constitucionais e o cotidiano experimentado pelos presos, de modo que o núcleo essencial do instituto do ECI encontra-se tranquilamente adequado ao sistema penitenciário brasileiro.
3 A ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL Nº 347
O assunto foi levado ao STF pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que reclamava providências sobre a realidade inconstitucional no tratamento dispensado ao preso em todo o país. O PSOL (UERJ, 2015) demonstrou que a referida inconstitucionalidade decorria de uma “multiplicidade de atos comissivos e omissivos dos Poderes Públicos”, (BRASIL, 2015) em todos os níveis da federação, em dissonância com os vetores da Carta Federativa.
Evidenciou que a União “vem reiteradamente contingenciando os recursos do Fundo Penitenciário – FUNPEN, frustrando o repasse de valores vultosos aos Estados, e dificultando, com isso, a adoção das medidas necessárias à melhoria das condições carcerárias no país”. Disse que “apesar da situação calamitosa do sistema penitenciário brasileiro, a maior parte dos recursos disponíveis do FUNPEN não é efetivamente gasta”. apontou que “no ano de 2013, calcula-se que menos de 20% dos gastos orçamentariamente autorizados do referido fundo foram efetivamente realizados” (BRASIL, 2015).
Asseverou a existência de “excesso de rigidez e de burocracia da União para liberação de recursos aos demais entes federativos, para que desenvolvam medidas voltadas à melhoria do sistema carcerário”, o que revela verdadeiro descompasso entre a União Federal e os Estados Federativos, bem como que o “uso de recursos necessários à garantia do mínimo existencial não pode se submeter à pura discricionariedade governamental” (BRASIL, 2015).
Salientou a culpa também do legislador, que “tem estabelecido políticas criminais absolutamente insensíveis ao drama carcerário brasileiro, que agravam a superlotação dos presídios e não geram a almejada segurança para a sociedade” (BRASIL, 2015). Reclamou a “elaboração e implementação de planos pela União e Estados, sob monitoramento judicial”, para a superação desse quadro inconstitucional do sistema carcerário (BRASIL, 2015). Pleiteou, cautelarmente, uma série determinações do STF, sendo que tais pedidos não foram totalmente deferidos.
De toda sorte, ao decidir, o Supremo inexoravelmente adentraria em searas eminentemente orçamentárias e administrativas, com reflexos em todos os níveis da federativos. Evidente que problemas estruturais exigem soluções complexas e igualmente estruturais. Atento a isso é que os ministros do STF concordaram “que, ante a violação massiva de direitos fundamentais, o Tribunal deveria intervir, inclusive, sobre a escolha orçamentária de contingenciamento de recursos” (BRASIL, 2015).
Assente-se, outrossim, que a Constituição Federal garante ao cidadão preso a integridade física e moral, também proíbe o tratamento desumano e veda a aplicação de penas cruéis etc. Assim, para que tais direitos não se resumissem ao mero reconhecimento frio da Lei Maior, o STF guiou-se pela dignidade da pessoa humana, sobre a qual a República Federativa do Brasil se constitui, para implementar um necessário processo estrutural destinado a remodelar a funcionalidade dos poderes públicos em prol do sistema penitenciário brasileiro.
4 ATIVISMO JUDICIAL ESTRUTURAL DIALÓGICO: RISCOS AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES NO ATUAL ESTÁGIO POLÍTICO-DEMOCRÁTICO BRASILEIRO
Cumpre, neste tópico, analisar se a implementação desta nova ferramenta na jurisdição constitucional pátria oferece ou não riscos ao princípio da separação de poderes, estatuído no artigo 2º da Constituição Federal. Como expendido inicialmente, o ECI é uma técnica processual complexa, típica das cortes constitucionais contemporâneas. O STF, portanto, aplica o denominado litígio estrutural, ao reconhecer o ECI no sistema penitenciário brasileiro, na tentativa de “reduzir os problemas da superlotação dos presídios e das condições degradantes do encarceramento” (CAMPOS, 2015).
Notadamente, o ECI revela uma baixa deferência judicial às arbitrariedades das instâncias políticas eminentemente representativas. Daí se dizer que “propor a aplicação do ECI, como técnica de decisão voltada à tutela de direitos fundamentais, máxime os sociais, é defender a intervenção judicial no ciclo das políticas públicas” (CAMPOS, 2016, p.16).
Para Campos (2015), o processo estrutural é qualificado por abarcar um grande número de pessoas e organismos, exigindo do STF a adoção de instrumentos igualmente estruturais, voltados “ao redimensionamento dos ciclos de formulação e execução de políticas públicas”, o que seria inalcançável “por meio de decisões ortodoxas”. Para Ronaldo Jorge Araujo Vieira Junior (BRASIL, 2016), o referido instituto revela uma mudança do perfil “jurisprudencial de grande impacto que está a suscitar a preocupação de parlamentares, juristas e agentes públicos”.
Lenio Luiz Streck (2015) aduz temer a expressão estrutural, pois isso pode ser uma espécie de “guarda-chuva debaixo do qual será colocado tudo” o que os defensores de uma ilegítima expansão do judiciário pretenderem. Em sentido contrário, porém, Campos (2016, p.293) esclarece que, se os pressupostos do ECI forem severamente respeitados, este risco de arbitrariedade não existirá.
Críticos argumentam que esses processos estruturais violam o princípio da Separação de Poderes, pois interferem em questões orçamentárias, administrativas e, por mais das vezes, de opções políticas. Entretanto, o ativismo do STF, neste caso do sistema penitenciário brasileiro, não deve ser considerado a priori como ilegítimo, mormente porque, consoante escólio de Elival da Silva Ramos (2015, p.135), “a expressão ‘ativismo judicial’ possui uma carga valorativa positiva ou negativa dependendo do enfoque teórico de quem realiza a avaliação das decisões judiciais”.
Lenio Luiz Streck (2016) posiciona-se no sentido de que “o ativismo sempre é ruim para a democracia, porque decorre de comportamentos e visões pessoais de juízes e tribunais”. Para Luís Roberto Barroso (2015, p.318), no entanto, esta expressão apenas envolve uma “participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois poderes”.
Com efeito, por interferir em assuntos de natureza administrativa, orçamentária e eminentemente políticos, a decisão do Supremo foi reputada ilegítima e ativista. Em última análise, a crítica perpassa pela noção de que agentes públicos não eleitos e não submetidos ao crivo do voto popular estariam fazendo as vezes da política representativa, colocando em xeque os pilares da democracia.
Nesse contexto, oportunas são as lições de Barroso (2015) para quem a democracia contemporânea compreende três dimensões que devem ser bem delineadas, a saber: a) a representativa, que tem como atores principais os parlamentares e os chefes do executivo; b) a constitucional, comandada principalmente pelo Poder Judiciário e, especialmente, pelo STF; e c) a deliberativa, capitaneada pelas entidades da sociedade civil.
Assim, para o referido doutrinador,
esse movimento de ampliação do Poder Judiciário, particularmente no Supremo Tribunal Federal, tem sido contemporâneo da retração do Legislativo, que passa por uma crise de funcionalidade e de representatividade. Nesse vácuo de poder, fruto da dificuldade de o Congresso Nacional formar maiorias consistentes e legislar, a Corte Suprema tem produzido decisões que podem ser reputadas ativistas. (BARROSO, 2015, p.465-466)
Forçoso concluir, assim, que a representatividade, tanto dos chefes do executivo quanto dos parlamentares, em todas as esferas da federação, encontra-se em uma situação delicada e precária no atual estágio democrático brasileiro. Certamente, com isso, não se pretende conferir uma legitimação apriorística e irrefutável à toda e qualquer atuação proativa do poder judiciário, mas, obviamente, cria espaços para que algumas minorias possam se socorrer do STF na qualidade de instituição democrática que zela pela adequada aplicação da Constituição Federal.
Nessa toada, Christine Oliveira Peter da Silva (2014) sugere um “deslocamento do ativismo judicial [...] para o ativismo constitucional, a partir de uma afirmação já repetida inúmeras vezes por Ayres Britto: ‘O ativismo no Brasil é da Constituição’”. Para Silva (2014), a proposta colabora na compreensão de que o ativismo, na proteção de direitos fundamentais, é ontológico do Estado Constitucional e dever de todos os Poderes, não um fenômeno que se resume ao judiciário.
Assim, não há que se falar em prejuízo à representatividade democrática sob a justificativa de que juízes e tribunais não se submetem ao crivo do voto popular e, portanto, não deveriam interferir em questões eminentemente políticas, eis que também a estes se confere o caráter da representatividade, já que a República Federativa do Brasil se constitui em um Estado Democrático de Direito, no qual todo o poder, que é uno e indivisível, emana do povo. Para Campos (2016, p.307), “incluir na agenda tema de direito anteriormente ignorado em favor de classe politicamente sub-representada [...] pode promover ganhos democráticos-deliberativos, em vez de ameaçar a democracia”.
Uadi Lammêgo Bulos (2012, p.523) adverte que, para que o princípio da separação de poderes “seja permanente e atual, é preciso que ele seja submetido a temperamentos e reajustes, levando em conta a realidade das constituições contemporâneas”. Daí afirmar que as pretensões transformativas da Carta Magna exigem uma remodelação do princípio da separação de poderes que, “cada qual com ferramentas próprias, deve compartilhar autoridade e responsabilidades em favor da efetividade da Constituição e do seu núcleo axiológico e normativo: os direitos fundamentais” (CAMPOS, 2016, p.307).
Frente a tais considerações, “apenas o ativismo judicial antidialógico pode ser considerado ilegítimo” e, a contrario sensu, o ativismo judicial legítimo deve catalisar o diálogo entre os poderes e destes com a sociedade (CAMPOS, 2016, p.240). O ativismo oriundo do reconhecimento do ECI tem como substrato de sua legitimidade a “proteção de direitos de classes de pessoas que, via de regra, não possuem voz junto aos representantes políticos. No caso da ADPF nº 347, presos não exercem qualquer participação política” (CAMPOS, 2016, p.303).
Em suma, o ECI e o ativismo judicial estrutural dialógico só se mostram necessários em democracias caracterizadas por sub-representações e por ostensiva inércia das autoridades públicas na concretização das pretensões constitucionais, e visam harmonizar e coordenar os poderes do Estado. Decerto que constituem medidas extremadas, mas justificadas, sobretudo ante a complexidade das causas dessa realidade inconstitucional. Portanto, na qualidade de principal guardião da dimensão constitucional da democracia, cabe ao STF alinhar as instituições dos poderes públicos no caminho do respeito à dignidade humana, como última trincheira de parcela significativa de pessoas ignoradas socialmente e vítimas de um sistema penitenciário falido, que mais degenera o preso do que auxilia no combate à criminalidade.