O extraordinário desenvolvimento tecnológico verificado no nosso século, propiciando ao homem o acesso a bens materiais cada vez mais sofisticados, tem trazido, em contrapartida, sérios riscos à preservação de valores indispensáveis à felicidade da pessoa humana. Por isso, torna-se cada vez mais desafiadora, para o Direito, a tarefa de tutelar qualidades, atribuições ou projeções da personalidade, que constituem objeto dos chamados “direitos da personalidade”, numa discussão que desperta interesse de diversos juristas. [1]
O acesso a mensagens, áudios ou outros arquivos contido em celulares apreendidos pela polícia, só é permitido mediante autorização judicial, nas hipóteses da Lei nº 9.296/96 (Lei de Interceptação Telefônica)[2], havendo discussão doutrinária e divergência jurisprudencial quanto à possibilidade de interceptação telefônica ou utilização de interceptações já produzidas em outras áreas do direito. [3]
Acontece que o sigilo dos dados e das comunicações telefônicas é bem jurídico tutelado pela Constituição no art. 5º XII, como forma de proteger a intimidade das pessoas, outro bem jurídico protegido constitucionalmente, agora no art. 5º, X da Constituição.
Art 5º, X, CF - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
Art. 5º, XII, CF - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;
Vale citar a fina análise de Agapito Machado, ponderando as posições doutrinárias e jurisprudenciais a respeito:
“... no sentido de que afirma o Des. Sérgio Pitombo que “o sistema de informática e telemática, protegido, em razão de seu conteúdo, pelo sigilo das comunicações fora dos estados de defesa e de sítio (art. 5º, XII, CF/1988).
Embora comente que o art. 5º, XII, CF/1988 comporte também a interceptação de que ali não são 4 (quatro), mas sim 2 (duas) hipóteses , a maior jurista deste País, Ada Pellegrine, que entende que o “dados” são absolutamente invioláveis e que a relatividade aplica-se apenas às comunicações telefônicas.
(...)
Permita-me, com o devido respeito, não propriamente discordar do ponto de vista dos ilustres Juristas ao defenderem que o art. 5º, XII da CF/19888 comporte 4 (quatro) hipóteses e, por isso, a Lei 9.296/96 seria inconstitucional em seu art. 1º, ao admitir a quebra do sigilo também no fluxo de comunicações em sistema de informática e telemática, mas de lembrar que o STF já decidiu essa matéria (do art. 5º, XII da CF/1988), afirmando que ali são apenas 2 (duas) hipóteses, cada uma divida em dois grupos, e não 4 (quatro) hipóteses. O 1º grupo, absolutamente inviolável (correspondência e comunicações telegráficas) e o 2º grupo, relativamente violáveis, depender de lei, autorização judicial e apenas para efeitos penais (dados e comunicações telefônicas).” [4]
Logo tratando-se de averiguação policial, ou mesmo de prisão em flagrante, não cabe à polícia, indevidamente, devassar o histórico de ligações, arquivos ou conversas contidas no celular do suspeito. Salvo, se tratar-se de diligência de busca e apreensão do aparelho predeterminada, onde tal sigilo tenha sido devidamente derrogado, por decisão judicial fundamentada, nas hipóteses da Lei nº 9.296/96.
O acusado pode, por livre e espontânea vontade, abrir mão de tal sigilo, contudo, pode negar-se a autorizar a verificação de seu celular como base no seu direito ao silêncio e no direito de não produzir prova contra si mesmo.
Tais direitos são basilares em qualquer civilização e devem ser garantidos ao cidadão, tendo suas origens na idade média. Estando hoje positivados de forma esparsa no art. 5º, LXIII da Constituição, art. 8, 2, g da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), promulgada pelo Decreto 678/92 e art. 14, 3, g do Pacto Internacional sobre Direitos Civil e Políticos (PIDCP), promulgado pelo Decreto nº 592/92. [5]
Suas raízes remontam a vários séculos passados, com mais amplo desenvolvimento no “ius commune” e no processo penal canônico, em que se assentava no regramento, “nemo tenetur podere sepsum, quia nemo tenetur detegere turpitudinem suam” (livremente traduzido como: “ninguém pode ser compelido a depor contra si próprio, porque ninguém é obrigado a autoincriminar-se), consistindo ao mesmo tempo, na proteção ao direito ao silêncio do imputado, e, consequentemente, estabelecida contra a autoincriminação. [6]
Art. 5º, LXIII, CF - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;
Art. 8.2. CADH. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
(...)
g. direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada;
Art. 143. PIDCP. Qualquer pessoa acusada de uma infracção penal terá direito,
em plena igualdade, pelo menos às seguintes garantias:
(...)
g) A não ser forçada a testemunhar contra si própria ou a confessar-se culpada
O corolário é que, caso dados e arquivos do celular, incluindo conversas de WhatsApp e Facebook, colhidas sem autorização judicial, constitui prova ilícita, por violar os preceitos constitucionais e internacionais supra citados, podendo, inclusive, resultar na nulidade de todo o processos, atingindo outras provas por derivação, conforme teoria do fruto da árvore envenenada – “fruit of the poison tree doctrine”.
Art. 5º, LVI, CF - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;
A violação de direitos do cidadão, principalmente aqueles embasados em garantias constitucionais e de tratados internacionais de direitos humanos, para produção de provas, resulta numa prova ilícita, o que não deve ser aceita de maneira alguma, sem exceções ou mitigações, quando visam prejudicar o acusado.
“(...) a problemática em trono da prova ilícita e da prova ilegítima deve ser analisada neste contexto. Importante destacar, novamente, que não se podem fazer analogias ou transmissão mecânica das categorias do processo civil para o processo penal, pois , aqui, partimos da inafastável premissa de que a forma dos atos é uma garantia, na medida em que implica limitação ao exercício do poder estatal de perseguir e punir. Portanto, desde logo, em que pesem as devidas manifestações do senso comum teórico e jurisprudencial, devem ser repelidas as noções de prejuízo e finalidade que têm conduzido os tribunais brasileiros a absurdo níveis de relativização das nulidades (e, portanto, das próprias regras e garantias do devido processo).
(...)
A Constituição prevê no seu art. 5º, LVI, que são “inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Estamos diante de uma norma geral, que simplesmente menciona “processo”, sem fazer qualquer distinção entre processo civil e penal, exigindo assim uma interpretação adequada à especificidade do processo penal e às exigências das demais normas constitucionais que o disciplinam.” [7]
Agora, passamos ao posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça sobre o tema em questão, da utilização de conversas de WhatsApp, Facebook Messenger e outros aplicativos no processo penal, observando os seguintes julgados:
INFORMATIVO 603 STJ – Publicado em 7 de junho de 2.017
Tráfico de drogas. Prova obtida de conversa travada por função viva-voz do aparelho celular do suspeito. Dúvidas quanto ao consentimento. Inexistência de autorização judicial. Ilicitude constatada.
PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. PROVA OBTIDA DE CONVERSA TRAVADA POR FUNÇÃO VIVA-VOZ DO APARELHO CELULAR DO SUSPEITO. DÚVIDAS QUANTO AO CONSENTIMENTO. INEXISTÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. ILICITUDE CONSTATADA. AUTOINCRIMINAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. DESCOBERTA INEVITÁVEL. INOCORRÊNCIA. PLEITO ABSOLUTÓRIO MANTIDO. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. 1. O Tribunal de origem considerou que, embora nada de ilícito houvesse sido encontrado em poder do acusado, a prova da traficância foi obtida em flagrante violação ao direito constitucional à não autoincriminação, uma vez que aquele foi compelido a reproduzir, contra si, conversa travada com terceira pessoa pelo sistema viva-voz do celular, que conduziu os policiais à sua residência e culminou com a arrecadação de todo material estupefaciente em questão. 2. Não se cogita estar diante de descoberta inevitável, porquanto este fenômeno ocorre quando a prova derivada seria descoberta de qualquer forma, com ou sem a prova ilícita, o que não se coaduna com o caso aqui tratado em que a prova do crime dependeu da informação obtida pela autoridade policial quando da conversa telefônica travada entre o suspeito e terceira pessoa. 3. O relato dos autos demonstra que a abordagem feita pelos milicianos foi obtida de forma involuntária e coercitiva, por má conduta policial, gerando uma verdadeira autoincriminação. Não se pode perder de vista que qualquer tipo de prova contra o réu que dependa dele mesmo só vale se o ato for feito de forma voluntária e consciente. 4. Está-se diante de situação onde a prova está contaminada, diante do disposto na essência da teoria dos frutos da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree), consagrada no art. 5º, inciso LVI, da Constituição Federal, que proclama a nódoa de provas, supostamente consideradas lícitas e admissíveis, mas obtidas a partir de outras declaradas nulas pela forma ilícita de sua colheita. 5. Recurso especial desprovido.
(STJ - REsp: 1630097 RJ 2016/0260240-6, Relator: Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, Data de Julgamento: 18/04/2017, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 28/04/2017)
CONCLUSÃO
Salvo por autorização judicial, decorrente de decisão motivada, as mensagens de WhatsApp, Facebook Messenger ou qualquer outro aplicativo, bem como os arquivos e dados contidos num celular não podem ser averiguados pela polícia, e nem utilizados contra um Réu, no processo penal ou em qualquer outro processo administrativo ou cível, entendimento corroborado pela atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (REsp: 1630097 RJ, julgado em 28/04/2017).
Logicamente que o acusado pode espontaneamente abrir mão do sigilo e exibir os dados solicitados, contudo, mantê-los em sigilo é um direito que lhe é garantido constitucionalmente.
Notas
[1] GOMES, Orlando. Direitos da Personalidade in RF 216/5-10, 1996
[2] JUSUS, Damásio de, Interceptação de Comunicações Telefônicas – Notas às Lei 9.296 de 24.07.1996 in Coleção doutrinas essenciais : processo penal, v3 Processo em geral II, Org. Guilherme de Souza Nucci e Maria Thereza Rocha de Assis Moura – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p.p.231/252
[3] FERNANDES, Antonio Scarace, GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Os resultados da interceptação telefônica como prova penal in Coleção doutrinas essenciais : processo penal, v3 Processo em geral II, Org. Guilherme de Souza Nucci e Maria Thereza Rocha de Assis Moura – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p.p.231/252
[4] MACHADO, Agapito. Dados: inviolabilidade absoluta ou relativa in Coleção doutrinas essenciais : processo penal, v3 Processo em geral II, Org. Guilherme de Souza Nucci e Maria Thereza Rocha de Assis Moura – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p.p.173/177
[5] GOMES, Luis Flávio. Principio da não autoincriminação significado, conteúdo, base jurídica e âmbito de incidência - https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/2066298/principio-da-nao-auto-incriminacao-significado-conteudo-base-juridica-e-ambito-de-incidencia)
[6] TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal, 4 ed. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p.p. 307/308
[7] LOPES JR., Aury. Direito processual penal, 11 ed. – São Paulo: Saraiva, 2014, p.p. 606/607