Capa da publicação STF contra Lava Jato? A decisão sobre a competência nos crimes comuns conexos com eleitorais
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Caixa 2 e o Supremo: (des)acertos e efeitos da decisão

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O julgamento sobre a competência da Justiça Eleitoral para julgar crimes comuns conexos com eleitorais nada mais fez do que reaplicar o posicionamento que já era adotado há décadas pelo STF, sob a mais tranquila leitura da lei. O erro seria entender diversamente apenas porque os procuradores da Lava Jato assim o queriam.

Pôde-se perceber que a decisão do Supremo Tribunal Federal, que manteve com a Justiça Eleitoral a competência para julgar crimes conexos aos eleitorais, proferida na data de 14/03/2019, causou certo alvoroço social, notadamente àquelas pessoas que não são versadas nas ciências jurídicas e acompanham comentários de “especialistas de Facebook” ou de sofistas formadores de opinião.[1]  

Na ocasião, mais uma vez, foi necessário que um Ministro da mais alta Corte do país dissesse o óbvio: “Compete à justiça eleitoral julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos”.[2] Trata-se de fundamento basilar do processo penal brasileiro, ensinado já nos primeiros semestres da faculdade de Direito: havendo concorrência entre a justiça comum e a justiça especializada (eleitoral), os crimes conexos são “atraídos” para a competência especializada.

Como o STF disse o óbvio, o presente artigo não pretende ser exauriente, tanto que não serão aprofundadas as questões ligadas à jurisdição (juris dictio), como a atividade “dizer o direito”, tampouco à competência (parcela e limite do poder jurisdicional.

Embora não seja objeto direto do artigo, para se falar em atração ou deslocamento de competência, há, necessariamente, que se ter a mínima noção do que seja a jurisdição. E quanto a essa última, é preciso que se abandone a visão reducionista de que o “Poder Jurisdicional” seria, apenas, um “poder-dever” de punir, tal como assente na doutrina tradicional.

Evidente que se trata, sim, de um “poder-dever” do Estado, mas não se resume somente a isso, tampouco tem por escopo unicamente a punição. É preciso encarar a jurisdição como um verdadeiro direito fundamental[3], do qual emanam diversos outros, todos integrantes do devido processo legal e seus corolários. Assim, vista como um direito fundamental, “consagrado que está na Constituição, ela passa a exigir uma nova estrutura de pensamento, como instrumento a serviço da tutela do indivíduo”.[4]

Outrossim, impõe-se consignar que a jurisdição é sobremodo ampla (nacional), razão pela qual, para ser efetivamente desenvolvida, precisa de limites e medidas; daí falar-se que a competência é a estruturação, divisão e limitação da jurisdição. Aury Lopes Jr., ao dissertar sobre o tema, observa que:

A competência impõe severos limites ao poder jurisdicional (es la medida de jurisdicción, sintetiza LEONE) e, por sua vez, está estreitamente disciplinada por regras que, em última análise, asseguram a própria qualidade e legitimidade da jurisdição. Ao final de tudo, está a garantia de ter um juiz natural, imparcial, e cuja competência está claramente definida por lei anterior ao fato criminoso.[5]

Destarte, não se pode fazer uma análise sensacionalista da decisão do Supremo Tribunal Federal, ao argumento de que as razões de decidir teriam finalidades escusas e não abarcadas pelo direito posto. O fato precisa ser encarado com seriedade e ética e, para tanto, o primeiro passo para entendê-lo é se desvencilhar da famigerada “Teoria da Conspiração”, segundo a qual tudo que vai contra o os anseios do Ministério Público Federal, notadamente dos órgãos ministeriais de Curitiba/PR, é uma tentativa de acabar com a “Operação Lava Jato” e pôr fim ao “combate à corrupção”. Ademais, não se pode perder de perspectiva que o Direito não gira em torno apenas da “Operação Lava Jato” e dos anseios ministeriais. Todo o oposto! Estes é que deveriam observar (e obedecer) àquele.

Nesse contexto, percebe-se que são sofismas sobremaneira reprováveis as recentes notícias e opiniões, sugerindo que a decisão do Supremo Tribunal Federal, proferida em 14 de março de 19, seria um “ponto fora da curva”, ou mesmo “um atentado ao combate da corrupção”, como defendeu Dallagnol, coordenador da multicidada Operação Lava Jato.[6]

A bem da verdade, nada mais fez o STF do que cumprir com a sua função institucional, qual seja, a de julgar, e o fazê-lo em consonância com a lei. Como é cediço, diante de um caso concreto, cabe ao Estado-Juiz decidir. Dessa forma, espera-se que, num Estado Democrático de Direito, incumba aos juízes decidirem de acordo com a Constituição e as Leis; do contrário, transmuda-se de Estado de Direito, o qual tem como premissa o império da lei, para Estado de Despotismo, cujo império exercita-se pelo déspota, que não precisa ser necessariamente um homem, mas também uma instituição incontrolável e/ou “infiscalizável”.

Ressalte-se que não se está a defender, aqui, a ideia de que o juiz deve ser simples e meramente “a boca da lei’, tal qual ensinava a Escola da Exegese[7], nos idos do Século XIX, inspirada no Código de Napoleão; entretanto, tampouco se está a dizer que os julgadores são “livres” para julgar contrário à lei vigente, em verdadeiro exercício de poder legiferante e consequente violação à separação dos Poderes.

No caso objeto do presente artigo – Inq 4.435/STF, que discutiu a competência da justiça eleitoral para julgar crimes comuns conexos a crimes eleitorais –, a questão posta para análise resulta, basicamente, em duas indagações, quais sejam: (i) existe conexão entre os crimes comuns (v.g. corrupções, ativa e passiva, lavagem de dinheiro, etc.) com o “crime” de “Caixa 2"? Em sendo positiva a resposta, cabe indagar ainda: (ii) neste caso, a quem compete o julgamento desses crimes conexos?

Para responder a essas questões, deve-se advertir, primeiro, que a expressão “Caixa 02” foi uma nomenclatura “inventada”, sabe-se lá por quem, com finalidade nitidamente midiática, visando a fomentar os debates políticos, sobretudo em períodos eleitorais (ou eleitoreiras) nos quais os candidatos, na maioria das vezes, por não terem boas propostas, empreendem seu tempo na desqualificação dos adversários políticos. É como se falassem:  “Já eu não tenho nada bom para falar sobre mim, vou dizer que os outros são desonestos”. A obrigação (ser honesto) passa a ser uma “rara qualidade”, muitas vezes efêmera.

Há que se ter em mente, todavia, que o dito e multicitado “Caixa 02” nada mais é, na verdade, do que uma espécie de falsidade ideológica eleitoral (artigo 350, do Código Eleitoral[8]) e, por estar positivada em código específico, é especial em relação à falsidade ideológica “comum”, cuja previsão encontra-se no artigo 299, do Código Penal[9].

Com efeito, é justamente essa “especialidade” do artigo 350, do Código Eleitoral, que “atrai” a competência do julgamento para a Justiça Eleitoral, nos moldes do artigo 121, caput, da Constituição Federal de 1988, disciplinado pela da Lei nº 4.737, originada ainda na década de 60, notadamente no artigo 35, inciso II:

Constituição: Art. 121. Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais.

Código Eleitoral: Art. 35. Compete aos juízes:

II - processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos, ressalvada a competência originária do Tribunal Superior e dos Tribunais Regionais.

Outrossim, no pleno processual, dispõe o artigo 364, do Código Eleitoral, que, “no processo e julgamento dos crimes eleitorais e dos comuns que lhes forem conexos, assim como nos recursos e na execução, que lhes digam respeito, aplicar-se-á, como lei subsidiária ou supletiva, o Código de Processo Penal”.

Aqui reside o ponto nevrálgico da discussão: o Código Eleitoral, desde os longínquos anos 1965, já previa a competência da Justiça Eleitoral – que é especializada – para julgar os crimes eleitorais e os que lhes são conexos, bem como a aplicação subsidiária ou supletiva do Código de Processo Penal, no que dissesse respeito a processos e julgamentos.

O Código de Processo Penal, por sua vez, que se aplica subsidiária ou supletivamente ao Código Eleitoral, ao tratar da matéria de fixação competência, em seu artigo 78, inciso IV, (com redação dada pela Lei nº 263, de 23.2.1948 – portanto, bem antes de o Daltan e a Lava Jato existirem), não deixa qualquer brecha para interpretação dúbia, porquanto positiva, de forma clara, que:

Art. 78. Na determinação da competência por conexão ou continência, serão observadas as seguintes regras:     

[...]

IV - no concurso entre a jurisdição comum e a especial, prevalecerá esta.  

Observe-se, assim, que nada está fora do plano legal/legislado. Muito pelo contrário! O entendimento do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal já eram nessa mesma linha, em absoluta atenção à norma extraída do artigo 35, inciso II, do Código Eleitoral, combinado com o artigo 78, inciso IV, do Código de Processo Penal.[10]

A comprovar que o julgado de 14/03/2019 nada tem a ver com a “Operação Lava Jato” ou com o “combate à corrupção”, como muitos querem fazer crer[11], leia-se precedente do pleno do Supremo Tribunal Federal, proferido na década de noventa, pelo então Ministro Sydney Sanches:

“(...) em se verificando (...) que há processo penal, em andamento na Justiça Federal, por crimes eleitorais e crimes comuns conexos, é de se conceder habeas corpus, de ofício, para anulação, a partir da denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal, e encaminhamento dos autos respectivos à Justiça Eleitoral de primeira instância

(CC 7033/SP, Rel. Min. SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, de 2/10/1996 – grifou-se).

Mais recentemente, já no âmbito da “Operação Lava Jato”, o Supremo Tribunal Federal reafirmou, no bojo da PET 6820 AGR-ED / DF, esse mesmo entendimento:

De fato, o MPF foi categórico ao classificar o item 8.7 do referido depoimento como “DOAÇÕES, COM RECURSO DE CAIXA 2, AO PT E AO PSB (2010)”. Ocorre que, somente no momento de ofertar as contrarrazões ao agravo regimental, o Parquet, inovando com relação ao seu entendimento anterior, passou a sustentar que “a narrativa fática aponta, em princípio, para eventual prática de crimes, tais como corrupção passiva (art. 317 do Código Penal) e falsidade ideológica eleitoral (art. 350 do Código Eleitoral)”. Neste contexto, convém relembrar que o Código Eleitoral, em seu título III, o qual detalha o âmbito de atuação dos juízes eleitorais, é cristalino ao estabelecer, no art. 35, que: “Compete aos juízes (…) II - processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos, ressalvada a competência originária do Tribunal Superior e dos Tribunais Regionais”. Ora, como se sabe, o denominado “Caixa 2” sempre foi tratado como crime eleitoral, mesmo quando sequer existia essa tipificação legal. Não se olvide, ademais, que, recentemente, a Lei 13.488/2017 incluiu o art. 354-A no Código Eleitoral para punir com reclusão de dois a seis anos, mais multa, a seguinte conduta: “Apropriar-se o candidato, o administrador financeiro da campanha, ou quem de fato exerça essa função, de bens, recursos ou valores destinados ao financiamento eleitoral, em proveito próprio ou alheio”. Ainda que se cogite, apenas para argumentar, da hipótese aventada pelo MPF, a posteriori, segundo a qual também teriam sido praticados delitos comuns, dúvida não há, a meu ver, de que se estaria, em tese, diante de um crime conexo, nos exatos termos do art. 35, II, do referido Codex.

[...]

A mesma orientação se vê em julgados mais recentes, a exemplo da Pet 5700/DF, rel. Min. Celso de Mello, na qual a colaboração descrevia um suposto pagamento de “Caixa 2” para as campanhas, ao Senado, de Aloysio Nunes (PSDB) e Aloizio Mercadante (PT), ambos por meio de recursos de origem alegadamente ilícita da UTC Engenharia.

Naquele feito, o próprio Procurador-Geral da República à época opinou pelo desmembramento e remessa dos autos à Justiça Eleitoral por constatar a eventual prática do crime de “Caixa 2”, enquadrado no art. 350 do Código Eleitoral, em conexão com o crime de lavagem de dinheiro (art. 1°, § 1º, da Lei 9.613/98), ambos descritos na inicial da mencionada Pet 5700/DF. (Grifou-se)

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De igual maneira, ainda da lavra do Supremo Tribunal Federal, colhe-se o seguinte precedente, julgado em 27 de março de 2018:

Agravo regimental. Petição. Doações eleitorais por meio de caixa dois. Fatos que poderiam constituir crime eleitoral de falsidade ideológica (art. 350 do Código Eleitoral). Competência da Justiça Eleitoral. Crimes conexos de competência da Justiça Comum. Irrelevância. Prevalência da Justiça Especial (art. 35, II, do Código Eleitoral e art. 78, IV, do Código de Processo Penal). Precedentes. Remessa dos termos de colaboração premiada ao Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo. Determinação que não firma, em definitivo, a competência do juízo indicado. Investigação em fase embrionária. Impossibilidade, em sede de cognição sumária, de se verticalizar a análise de todos os aspectos concernentes à declinação de competência. Agravo regimental provido.

1. A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que, nos casos de doações eleitorais por meio de caixa 2 - fatos que poderiam constituir o crime eleitoral de falsidade ideológica (art. 350, Código Eleitoral) -, a competência para processar e julgar os fatos é da Justiça Eleitoral (PET nº 6.820/DF-AgR-ED, Relator para o acórdão o Ministro Ricardo Lewandowski, DJe de 23/3/18).

2. A existência de crimes conexos de competência da Justiça Comum, como corrupção passiva e lavagem de capitais, não afasta a competência da Justiça Eleitoral, por força do art. 35, II, do Código Eleitoral e do art. 78, IV, do Código de Processo Penal.

3. Tratando-se de investigação em fase embrionária e diante da impossibilidade, em sede de cognição sumária, de se verticalizar a análise de todos os aspectos concernentes à declinação de competência, o encaminhamento de termos de colaboração não firmará, em definitivo, a competência do juízo indicado, devendo ser observadas as regras de fixação, de modificação e de concentração de competência, respeitando-se, assim, o princípio do juiz natural (Inq nº 4.130/PR-QO, Pleno, de minha relatoria, Dje de 3/2/16).

4. Agravo regimental provido, para se determinar a remessa dos termos de colaboração premiada ao Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, para posterior encaminhamento ao juízo de primeiro grau competente.

(STF - Acórdão Pet 7319/DF - Distrito Federal, Relator (a): Min. Edson Fachin, data de julgamento: 27/03/2018, data de publicação: 09/05/2018, 2ª Turma) (grifou-se)

Assim, a fim de afastar do julgamento midiatizado – que sedimentou, acertadamente, conquanto de forma demorada, a competência da justiça eleitoral para julgar os crimes eleitorais e os que lhes forem conexos – qualquer pecha de ilegalidade, veja-se recente decisão monocrática do Ministro Ribeiro Dantas, do Superior Tribunal de Justiça, na qual faz menção a outros julgamentos, bem anteriores à “Operação Lava Jato” e ao nascimento do Procurador Dallagnol, dando conta de que entendimento não era controvertido, e decisão da Corte Suprema não foi fruto, valendo-se de expressão utilizada por Lenio Streck, de um “ativismo-decisionismo-falta-de-democracia”[12]:

Há muito firmou-se jurisprudência nesta Corte Superior acerca do tema, consolidando o entendimento de que em havendo conexão entre crimes comuns e eleitorais a competência para seu julgamento e processamento será da Justiça Eleitoral.

Destaco:

"PENAL E PROCESSO PENAL - CRIME ELEITORAL E COMUM -CONEXÃO - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ELEITORAL.

- Ocorrendo crime eleitoral e comum (conexos), a competência para processar e julgar ambos os delitos é da Justiça Eleitoral.

- Precedentes (CC 16.316/SP, Rel. Min. Felix Fischer).

- Conflito conhecido, declarando competente o Juízo Eleitoral da 15ª Zona de Caiçara/PB."

(CC 28.378/PB, Rel. Ministro JORGE SCARTEZZINI, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 13/09/2000, DJ 27/11/2000).

In casu, em análise perfunctória restrita, própria dessa via e desse momento processual, houve motivo eleitoreiro nas ofensas e demais condutas típicas descritas quando da abertura do IPL, tornando a Justiça Eleitoral competente para o processamento e melhor exame dos fatos.

[...]

Ante o exposto, conheço do conflito para declarar a competência do Juízo Eleitoral da 1ª Zona Eleitoral de Maceió - AL, o suscitante.

(STJ - CC: 144322 AL 2015/0300993-7, Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Publicação: DJ 18/06/2018) (Grifou-se)

Dessa forma, tendo em vista os variados julgamentos colacionados, tanto anteriores quanto posteriores à “Operação Lava Jato”, é notório que a espetacularização política feita em cima da decisão do Supremo Tribunal Federal, em 14 de março de 2019, para além de ser infundada, mostra-se totalmente leviana, típica de uma dialética sofística, cuja forma é falsa, a despeito de aparentar-se verdadeira.[13]

Como se pode constatar, o julgamento em foco nada mais fez do que sedimentar um posicionamento que já era adotado há décadas (inclusive citado nos votos dos Ministros) pelo Supremo Tribunal Federal, razão pela qual o erro seria, como dito alhures, entender diversamente, apenas porque os procuradores da Lava Jato assim o queriam.

Nada obstante, conquanto se possa dizer, por um lado, que o Supremo acertou ao decidir como o fez, por outro, visualiza-se campo para a crítica, decorrente demora na “pacificação” de tema tão sensível e com efeitos tão amplos e polêmicos, notadamente nos tempos atuais de polarização política.

Diante desse cenário, o próprio Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, relator do caso em questão, já se pronunciou vaticinando que sentenças poderão ser anuladas por força do entendimento atual[14]. Malgrado o entendimento do Eminente Ministro, a seguir uma teoria séria e própria do direito processual penal acerca das nulidades, a mácula da incompetência não atingirá apenas as sentenças, como atos decisórios últimos dos processos em primeira instância.

Assim se argumenta, na medida em que, em se tratando do tema competência material, a nulidade gerada reveste-se de caráter absoluto e não só pode como deve ser reconhecida a qualquer tempo, em qualquer grau de jurisdição, inclusive ex officio. Disso deflui que, se houve corrupção ou lavagem de dinheiro, por exemplo, atreladas ao “crime de caixa 2”, o processo conduzido pelo juízo comum restará absolutamente nulificado, haja vista que, na esteira de Nestor Távora e Rosmar Rodrigues, “a incompetência absoluta reconhecida impõe, segundo o STF a jurisprudência majoritária, a nulidade dos atos decisórios”.[15]

De acordo com o artigo 567, do Código de Processo Penal, “A incompetência do juízo anula somente os atos decisórios, devendo o processo, quando for declarada a nulidade, ser remetido ao juiz competente”. Contundo, a despeito da tentativa, por parte do legislador, de restrição do alcance dos efeitos decorrentes das nulidades, com claro escopo de preservação dos atos processuais despidos de carga decisória, tem prevalecido:

[...] o entendimento de que, em que pese a lei não ter distinguido entre competência absoluta ou relativa, há de se reconhecer que, em se tratando de incompetência absoluta, não só os atos decisórios, mas também os atos instrutórios devem ser anulados, já que, nesse caso, a prova produzida se deu perante juiz diverso daquele competente para julgar o fato.[16] (Grifou-se)

De todo modo, ainda que não prevaleça o entendimento doutrinário no tocante à anulação de todos os autos processuais proferidos por juízo absolutamente incompetente, “fato é que entende a Suprema Corte que a incompetência absoluta reconhecida tem a forma de anular inclusive o recebimento da denúncia”.[17] Por conseguinte, tratando-se o juízo de admissibilidade da peça acusativa de “ato inaugural” do processo, todos os atos posteriores que lhe são dependentes também seriam nulos, por força do princípio da causalidade ou consequencialidade, inserto no o artigo 573, §3º, do Código de Processo Penal.

Diante de todo esse contexo, não se pode negar que os efeitos decorrentes da decisão proferida pelo Supremo serão delicados, polêmicos e sobremodo abrangentes (como tudo o tem sido, hodiernamente, no Brasil), porquanto, como visto, na linha da própria Corte Suprema, a nulidade por incompetência do juízo em razão da matéria (in casu, Justiça Eleitoral vs Justiça Comum), por ser absoluta, alcançará, inexoravelmente, a decisão de recebimento da denúncia – a qual possuiu, por óbvio, carga decisória –, o que potencialmente redundará na nulidade ab initio do processo.

Desse modo, em apertada síntese, pode-se concluir que os efeitos da atual jurisprudência (agora pacificada) repercutirão, fatalmente, em diversos casos não só da “Operação Lava Jato”, mas de todo o País, havendo chances reais e efetivas de, declarada a nulidade total do processo, operar-se a prescrição, extinguindo-se a punibilidade dos agentes, já que os atos praticados pelo juízo absolutamente incompetente (notadamente o recebimento da denúncia, como primeiro marco interruptivo prescricional – art. 117, I, CP) não podem produzir efeitos no mundo jurídico.

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Sobre os autores
Filipe Maia Broeto Nunes

Advogado Criminalista e professor de Direito Penal e Processo Penal, em nível de graduação e pós-graduação. Professor Convidado da Pós-Graduação em Direito Penal e Processo Penal da PUC-Campinas. Mestre em Direito Penal (sobresaliente) com dupla titulação pela Escuela de Postgrado de Ciencias del Derecho/ESP e pela Universidad Católica de Cuyo – DQ/ARG. Mestrando em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade Internacional de La Rioja – UNIR/ESP e em Direito Penal Econômico e da Empresa pela pela Faculdade de Direito da Universidade Carlos III de Madrid - UC3M/ESP. Especialista em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG e também Especialista em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - FDUC/PT-IBCCRIM. Especialista em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes - UCAM, em Processo Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - FDUC/PT-IBCCRIM, em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes - UCAM e em Compliance Corporativo pelo Instituto de Direito Peruano e Internacional – IDEPEI e Plan A – Kanzlei für Strafrecht, Alemanha (Curso reconhecido pela World Compliance Association). Foi aluno do curso “crime doesn't pay: blanqueo, enriquecimiento ilícito y decomiso”, da Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca – USAL/ ESP, e do Módulo Internacional de "Temas Avançados de Direito Público e Privado", da Universidade de Santiago de Compostela USC/ESP. Membro da Câmara de Desagravo do Tribunal de Defesa das Prerrogativas da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Mato Grosso - OAB/MT; Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM; do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico - IBDPE; do Instituto de Ciências Penais - ICP; da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB/MT; Membro efetivo do Instituto dos Advogados Mato-grossenses - IAMAT e Diretor da Comissão de Estudos Jurídicos da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – Abracrim. Autor de livros e artigos jurídicos, no Brasil e no exterior. E-mail: [email protected].

Valber Melo

Advogado Criminalista. Especialista em Direito Penal e Processual Penal, Ciências Criminais e Direito Público. Doutor em Ciências Jurídicas. Professor de Direito Penal e Processual Penal. Coautor do livro: "Colaboração Premiada - Aspectos Controvertidos", publicado pela Editora Lúmen Juris. Conselheiro da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas em Mato Grosso – ABRACRIM/MT.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NUNES, Filipe Maia Broeto ; MELO, Valber. Caixa 2 e o Supremo: (des)acertos e efeitos da decisão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5741, 21 mar. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72724. Acesso em: 22 dez. 2024.

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