1. INTRODUÇÃO
A relação do encarceramento de pessoas com entes privados é notadamente marcada, ao longo da história, pela prevalência da lucratividade em detrimento da ressocialização do encarcerado. Essa simbiose ocorre com base em um argumento de obtenção de economia estatal e maior eficiência do particular na gestão. É importante destacar que a participação de entes privados no aprisionamento de pessoas é anterior ao próprio sistema moderno prisional, bem como a intervenção do estado na resolução de conflitos no âmbito penal.
Diante desse cenário, observa-se que, a cada época, diferentes sistemas prisionais foram criados, a fim de garantir a punição daqueles que cometiam crimes. A participação de particulares foi fundamental nesse processo, que se iniciou sob uma lógica fabril, entranhada, inclusive, na arquitetura da prisão, com explícita exploração do trabalho, numa relação análoga à escravidão.
A partir de uma verificação da literatura, este trabalho pretende analisar a relação existente entre entes privados e o poder público, no que tange ao encarceramento de pessoas, voltando-se para aspectos históricos, assim como para os modelos prisionais de alguns países do mundo e, também, do Brasil, com suas particularidades.
A primeira seção trará a origem histórica da relação público-privada, seu desenvolvimento e, ainda, o encerramento desse primeiro ciclo de privatizações.
Na segunda seção, será abordada a retomada de entes privados na organização prisional, bem como sua chegada ao Brasil.
Por sua vez, a terceira seção discorrerá sobre a exploração do trabalho prisional no Brasil e seus aspectos legais.
Já na quarta seção, será desenvolvida a temática da política de guerra contra as drogas e seu impacto no sistema prisional brasileiro.
Por fim, na quinta seção serão abordados os modelos de privatização adotados no Brasil, seus aspectos positivos, negativos e sua viabilidade.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1 ORIGEM DA PRIVATIZAÇÃO PRESIDIÁRIA E SUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA
A história da humanidade é marcada por diversos momentos em que o ser humano é tratado verdadeiramente como algo descartável. No que tange ao encarceramento, não poderia ser diferente. Houve um momento em que as “penas” eram aplicadas pelos próprios particulares, como aquele ditado popular “olho por olho, dente por dente”.
A participação de entes privados, no que poderia ser considerado o sistema prisional da época, é anterior ao próprio modelo moderno prisional e também à intervenção do Estado na resolução de conflitos no âmbito penal.
Chegar a um momento que possa ser considerado como precursor para as privatizações prisionais é uma missão complexa e, para tanto, faz-se necessário percorrer a trajetória da evolução do encarceramento, destacando alguns momentos para tecer reflexões acerca desta temática.
Pode parecer intuitivo apontar o próprio surgimento da prisão moderna como um antecedente lógico e necessário. Afinal, a delegação da administração de um estabelecimento prisional a um particular, tal como se conhece hoje, só parece fazer sentido dentro de um sistema em que a prisão é a principal forma de cumprimento de pena, e não uma mera ‘sala de espera’ para os suplícios corporais, como se verifica até meados do século XVIII (NUNES, 2019, p. 29).
2.1.1 Pioneirismo Inglês: As Goals
A Inglaterra foi pioneira no desenvolvimento de sistemas de encarceramento com a participação de entes privados. E essa participação privada mais organizada teve início com as gaols.
O desinteresse em relação às prisões e aos encarcerados não é característica somente da sociedade moderna. No século XIII, como é possível ver, a Coroa inglesa repassou, pela primeira vez, os custos de manutenção de suas prisões para entes privados. As chamadas gaols (jail-cadeias) possuíam condições precárias e funcionavam como uma casa de passagem. Faziam parte do rito de punição para os chamados “suplícios” (castigos corporais-pena). O encarceramento não era a pena.
Inicialmente, esse processo se verificava em duas formas: ou os xerifes locais contratavam os gaolers às custas da Coroa, ou esta concedia, diretamente, o direito de exploração em troca de terras ou dinheiro, sempre assegurando ao particular o direito de cobrar dos prisioneiros sob a sua custódia toda a sorte de taxas, alugueis e custos, como forma de autofinanciar (NUNES, 2019, p.31).
Os gaolers tinham total controle sobre os aprisionados, abusos eram comuns e tudo era feito com o conhecimento real e sem nenhuma interposição. A inércia da Coroa corroborava para práticas cada vez mais abusivas, tudo poderia ser usado para extorquir o aprisionado, de visitas da família até os grilhões que usavam. Esse sistema foi utilizado até o final do século XVIII.
2.1.2 As casas de correções (Workhouse)
Para Malcolm Feeley, conforme citação de Ronny Nunes (2019, p 32) em Privatização das prisões e sua (in)viabilidade, há uma conjuntura de fatores essenciais para o nascimento das workhouses - incapacidade de gerir serviços públicos, a lógica fabril nas prisões e, claro, o sucesso que foi alcançado com os gaolers – e seu propósito era de promover justiça social, pois pretendia dar moradia aos moradores de rua e, ao mesmo tempo, trabalho remunerado. Mas a prática foi completamente diferente: disciplinar, através do trabalho, aquelas pessoas que poderiam oferecer algum risco.
Nota-se, no entanto, que se trata de uma política totalmente ineficaz para coibição do crime, corroborando para o aumento dos encarcerados, uma vez que qualquer morador de rua poderia ser enquadrado.
[...] no século XVI, o governo inglês criou as casas de correção (house of correction) ou workhouses, instituições que buscavam disciplinar por meio da obrigatoriedade do trabalho. Em 1557, a administração de Londres inaugurou o Bridewelland Prison em um antigo palácio real abandonado. (NUNES, 2019, p. 32-33).
A Coroa inglesa sofria limitações para gerir os serviços básicos e, com o efeito do fim da era feudal, as populações urbanas aumentavam à medida que os camponeses buscavam melhor qualidade de vida. O aumento da população urbana deixou mais evidentes os problemas da Coroa para administração e os problemas sociais, cada vez mais crescentes, contribuíram para o aumento dos crimes.
Em 1576, o parlamento inglês autorizou a expansão do projeto das workhouses para as gaols, o que foi um sucesso para a Coroa e promoveram êxito na economia para os cofres ingleses, mesmo que isso tenha sido à custa da dignidade humana do encarcerado. Isso favoreceu muito a entrega das casas de correção para entes privados que, por sua vez, visavam ao lucro com o uso dos encarcerados em uma lógica fabril, para exploração do trabalho. Para Ronny Nunes (2019, p. 33), “as whorhouses assumiram um papel muito particular no contexto histórico em questão, contribuindo para acelerar o desenvolvimento manufatureiro inglês”.
2.1.3 Penal Transportation
A participação da Coroa inglesa na inserção de particulares no sistema penitenciário da época sempre trouxe benefício econômico. O penal transportation, além da garantia de punição sem custos para Coroa, colaborava também para a expansão das colônias inglesas. A punição consistia em enviar o preso para um local distante por tempo determinado, funcionando como uma espécie de pena alternativa. Aqueles que eram condenados criminalmente poderiam fazer o pedido diretamente para Coroa, oferecendo sua mão de obra em regime de servidão para um colono por um determinado limite de tempo. O custo do translado para a colônia era inteiramente do condenado, a maioria acabava permanecendo nas colônias após o cumprimento da pena por falta de recursos para o retorno. A esse respeito, formula Rony Nunes (2019):
O penal transportation foi uma idéia inteiramente proposta e desenvolvida por mercadores privados. Garantia ao governo britânico, mais uma vez, um duplo benefício: o direito de punir era exercido sem quaisquer custos e, ainda, estimulava-se o povoamento de colônias norte-americanas, que vinham gradualmente se desenvolvendo.
A prática do Penal Transportation, além de ter sido fundamental para o crescimento e desenvolvimento das colônias inglesas, serviu, na América, como embrião para a participação de entes privados em seu sistema prisional, como veremos adiante com o surgimento dos modelos americanos prisionais.
2.1.4 Jeremy Bentham e o Panoptismo
A participação de entes privados nos sistemas prisionais da época é presente ao longo da história e essa participação nunca escondeu seu caráter econômico.
O Panóptico de Bentham proporcionou isso de uma forma mais estruturada: tratava-se de uma arquitetura em forma de anel com uma torre no centro, o que permitia que apenas um guarda vigiasse toda a prisão. As celas eram diferentes das masmorras e viabilizavam que os encarcerados recebessem luz solar. Embora fosse muito parecido com um zoológico parisiense, Bentham nunca confirmou que essa tenha sido sua inspiração.
Nesse modelo, os encarcerados eram impedidos de falar uns com os outros; as celas tinham paredes nas laterais para impedir o contato. A lógica fabril era inserida nesse projeto com o objetivo de ressocializar o preso, retirá-lo do ócio e modular a mente para que ele não tivesse apresso pela “vagabundagem”. (FOUCAULT, 1975/2007)
Bentham falhou na tarefa de arrecadar investimentos para sua ideia junto ao parlamento inglês. Mas isso não impediu o Panóptico de ser difundido por vários países da Europa e também nos Estados Unidos, em diferentes modelos penitenciários e com a exploração econômica através do preso.
2.1.5 Modelos prisionais americanos
No sistema prisional americano, a participação de particulares já ocorria mesmo antes de sua independência; a simbiose com o poder público já era algo natural em solo americano por conta de sua origem colonizadora.
A independência dos EUA coincide com um fato histórico na esfera penal: a pena do indivíduo passa a ser o próprio encarceramento, e a exploração do trabalho prisional, cada vez mais organizada, tem sua objetividade de lucro camuflada pelo argumento de que o trabalho seria essencial para recuperação do aprisionado.
A forma geral de uma aparelhagem para tornar os indivíduos dóceis e úteis, através de um trabalho preciso sobre seu corpo, criou a instituição-prisão, antes que a lei a definisse como pena por excelência. No fim do século XVIII e princípio do século XIX, se dá a passagem a uma penalidade de detenção, é verdade; e era coisa nova. Mas era na verdade abertura da penalidade a mecanismos de coerção já elaborados em outros lugares (FOUCAULT, 1975/2007, p.195).
A primeira penitenciária americana foi baseada na ideia arquitetônica do panóptico de Bentham e a lógica fabril, entranhada na sua estrutura e na própria razão de existir. A Walnut Street, fundada por um grupo de religiosos (Quakers) na Filadélfia, estado da Pensilvânia, possuía as características de celas individuais e exploração do trabalho dos encarcerados, que tinham descontados de sua remuneração o seu próprio custo de manutenção. Muitas foram as críticas tecidas sobre tal modelo, em virtude do excessivo isolamento, cujas consequências eram a dificuldade de readaptação ao meio social e os prejuízos à saúde mental dos presos. Essas características próprias deram origem a um modelo penitenciário, o pensilvânico (TANGERINO, NOLASCO, 2013).
Para Juarez Cirino dos Santos (2013), fazendo uma releitura de Massimo Pavarini, esse sistema era totalmente financiado pela exploração do trabalho prisional, que poderia ocorrer de diferentes formas:
Os sistemas de trabalho carcerário do modelo filadelfiano, em que o Estado organiza e controla os processos produtivos e exerce o poder disciplinar na instituição carcerária, são os seguintes: a) o state-use, com emprego da força do trabalho na produção de manufaturas, consumidas pela própria administração penitenciaria/estatal, com produtividade reduzida e ausência de oposição de sindicatos ou moralistas- na verdade, o sistema hoje predominante na América Latina; b) o public work, em que a força de trabalho é empregada e obras públicas, como construção de rodovias, ferrovias, prisões etc., com eventual oposição dos sindicatos; c) o public account, em que o sistema carcerário se converte em empresa pública: o Estado compra matéria prima, organiza os processos produtivos e vende os produtos com preços competitivos no mercado com todas as vantagens do trabalho carcerário, mas os reduzidos custos de produção ( por exemplo salários e impostos) produzem a quebra de concorrência, desemprego e – é claro – mais criminalidade.
O isolamento dos presos, mesmo sendo terrivelmente danoso aos encarcerados, não foi a razão para decadência rápida do modelo pensilvânico, e sim, a lucratividade, que, afetada em razão desse isolamento não permitia uma exploração adequada do trabalho prisional. A esse respeito, Cirino dos Santos (2013) formula que “o trabalho isolado em celas individuais – justificado como instrumento terapêutico – exclui a industrialização da prisão, que pressupõe trabalho coletivo: o trabalho carcerário é antieconômico e, afinal, priva o mercado de força de trabalho útil’’.
Surgiu, então, no estado de Nova Iorque, a penitenciária de Auburn, dando origem ao nome do novo sistema penitenciário, cujas características permitiam um melhor aproveitamento da lógica fabril. Os presos trabalhavam juntos ao longo do dia, sem poder estabelecer contato uns com os outros, e ficavam em completo isolamento durante a noite. Essa composição de regras favorecia o rendimento da produção, assim como explica Juarez Cirino dos Santos (2013):
Os principais sistemas de exploração do trabalho carcerário inventados pelo conluio entre capital privado e repressão publica, próprios do modelo de Auburn, são os seguintes: a) o contract - considerado o sistema mais adequado - , submete a força do trabalho carcerária a duas autoridades: o capitalista organiza a produção, disciplina processos de trabalho e vende a mercadoria no mercado livre a preços altamente competitivos, pela desenfreada e destruidora exploração da força de trabalho carcerária, remunerada em níveis inferiores aos do mercado; o Estado concede a exploração de força de trabalho carcerário e administra a instituição penitenciária em troca de lucro sem risco econômico, mas idênticos problemas de oposição dos sindicatos e subordinação da reeducação do encarcerado ao trabalho produtivo para o capitalista; b) o leasing, talvez o sistema mais difundido, submete a instituição penitenciaria a autoridade exclusiva do capitalista, que organiza e produção e responde pela disciplina da força de trabalho durante tempo determinado, mediante pagamento de um preço ao Estado, livre de qualquer custo [...]
O lucro era o fator mais importante na lógica prisional administrada por entes privados. Os encarcerados eram submetidos a condições desumanas, que se espalharam pelas penitenciárias do país, numa busca pelo aumento da lucratividade. De acordo com Clair Cripe, “não havia praticamente nenhuma separação entre os prisioneiros, mulheres e crianças ficavam confinados juntamente com criminosos perigosos muitas prisões sofriam com a superlotação, a maioria era insalubre.’’
2.1.6 França pós revolução
Na França, mesmo antes do seu período revolucionário, já havia sido inserida a lógica privatizante em seu sistema prisional com as renfemeries. A experiência francesa consistia em um pagamento pelo número de presos encarcerados, denotando uma diferença em relação à experiência americana, em que o governo recebia uma espécie de aluguel pago pelo ente particular para administrar suas prisões, apesar dessa diferença significativa para a experiência americana, a falta de fiscalização sobre as unidades prisionais persistiam em relação aos contratos com os particulares, serviços como o alimentação, saúde e outras condições gerais das prisões eram precários afim de aumentar o lucro.
No ano de 1971, nasceu a Entreprise générale, criada pela Assembleia Nacional Constituinte, dando continuidade à prática da simbiose público-privada - sempre triunfando o lucro sobre as condições às quais os presos eram submetidos. Mesmo sofrendo críticas, essa prática persistiu até 1890, quando o governo francês iniciou a retomada da administração penitenciária para o poder público (NUNES, 2019).
2.1.7 O definhamento da primeira onda de privatização prisional
A repulsa da população - provocada pelas condições dos presos, somada à pressão dos sindicatos da época – por considerarem desleal a concorrência com os produtos produzidos nos presídios, começaram a colocar em xeque a privatização do sistema prisional.
Com advento da Guerra Civil americana e o fim da escravidão, os agricultores precisaram recuperar a mão de obra perdida. O lease system, que entregava ao particular o arrendamento completo dos presídios por um determinado período de tempo, sofreu uma mutação para o convict lease, que passou a permitir arrendamento somente dos encarcerados. Com o passar do tempo, o lucro foi ficando menor e a corrupção foi sendo inserida como meio para perpetuar os abusos e a garantia de lucro.
No final do século XIX e início do XX, gradualmente, a participação de particulares foi desaparecendo. Em 1923, o convict lease foi abolido e o mesmo aconteceu com o system contract em 1940.
Os Estados Unidos mantiveram suprimida, por algumas décadas, a participação de particulares no sistema prisional, até ressurgir, na década de 1970 e 1980, com o então presidente Ronald Reagan. Essa retomada do setor privado nas administrações de penitenciárias esteve ligada a fatores econômicos. A fim de enxugar os gastos com máquina estatal, as penitenciárias voltaram ao radar do setor privado.
Na França, esse movimento para retomada, pelo poder público, da administração penitenciária, ocorreu por volta de 1898, quando todas as grandes cadeias foram devolvidas para o ente público. Assim como nos Estados Unidos, a França só voltou a discutir novas privatizações na década de 1980 (TANGERINO, NOLASCO, 2013).
2.2 O MUNDO GLOBALIZADO E A NOVA ONDA DE PRIVATIZAÇÕES
A partir do século XX, os países se aproximaram em relação às condutas políticas, econômicas, sociais e culturais. A globalização no mundo favoreceu a expansão do ressurgimento da participação de entes privados na administração prisional.
Iniciada nos Estados Unidos, a ideia rapidamente foi adotada por outros países em todos os continentes, tendo maior destaque os modelos americano e francês, que se tornaram referência para outros países no que diz respeito à forma de participação dos particulares.
2.2.1 Retomada nos EUA
Durante o governo de Ronald Reagan, renasceu a prática da privatização de prisões no país, impulsionada pela crise econômica. Tal crise gerou a necessidade de diminuição dos gastos públicos e o aumento da criminalidade que, por consequência, aumentou consideravelmente a massa carcerária. O aumento de presos teve relação direta com o movimento “Lei e Ordem”.
Essa retomada ocorreu de forma diferente do período após a independência: se antes os particulares participavam de forma individualizada, desta vez, grandes corporações administravam as penitenciárias, prometendo economia dos gastos públicos e um maior número de vagas.
Nessa toada, surgiram as duas grandes empresas que hoje dominam o mercado norte-americano de privatização das prisões: a Corrections Corporation of America (CCA, recentemente nomeada CoreCivic), fundada em 1983, e a Wackenhut Corrections Coporation ( WCC, hoje GEO Group), fundada no ano seguinte (MINHOTO, 2000, p.64).
Essa participação se tornou um negócio bilionário, gerando lucro estrondoso, assim como o número de prisões privatizadas no âmbito federal e estadual. A nova onda também foi rodeada de acusações de violações de direitos humanos e corrupção junto a políticos. Rony Lessa (2019) destaca que o forte laço entre o setor e os políticos é um fato preocupante, tendo em vista as fartas doações, realizadas pelas grandes empresas do negócio, para políticos, configurando uma espécie de lobby.
2.2.2 Retorno na França e seu próprio modelo
Na França, a experiência da volta de entes privados para administração de prisões foi feita com mais cautela e com uma participação menor do setor, diferente do ocorreu nos Estados Unidos. Também na década de 1980, o governo francês, após uma auditoria no sistema penitenciário, constatou um grande déficit de vagas, sendo necessária a criação de novas instalações. O alto custo e urgência de novas vagas foram a porta de entrada para iniciativa privada voltar a atuar no setor.
A forma pela qual se deu essa entrada dos particulares foi fruto de vários debates na casa legislativa. No fim, tal participação ficou limitada a atividades não atípicas, como as oficinas de trabalho e assistência médica. O diretor da unidade seria escolhido pelo poder público. Essa divisão na gestão do presídio foi conhecida como gestão mista (gestion mixte).
O processo de expansão na França segue firme até hoje com novas modalidades de contratos, mas em nenhum desses há participação completa dos entes privados na administração, como nos Estados Unidos. Essa diferença é tão gritante que os modelos prisionais privatizados são divididos em dois, o modelo americano e o modelo francês (NUNES, 2019).
2.2.3 Privatização à brasileira
Assim como em outros países, as discussões em torno das privatizações das unidades prisionais no território brasileiro começaram em torno de um mesmo problema: a superlotação e o déficit de vagas prisionais.
As barbáries ocorridas no interior das prisões, bem como as rebeliões, eram frequentes nas décadas de 1980 e 1990, em todos os estados da federação.
Uma das primeiras propostas de privatização do sistema carcerário brasileiro ocorreu em 1992, apresentada pelo presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Edmundo Oliveira. A proposta foi alvo de muitas críticas - inclusive pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) - por violações a garantias constitucionais e, após todos os questionamentos, não foi aprovada, fazendo com que o tema fosse levado para o debate nacional.
Anos depois, em 1999, foi apresentado o projeto de lei 2146/99, que visava permitir, ao sistema prisional, uma simbiose entre o público e o privado, em um modelo de co-gestão, mas o projeto acabou não sendo aprovado. Ainda assim, unidades privatizadas começaram a surgir no país. A primeira surgiu no estado do Paraná, seguindo o modelo de co-gestão, em que o diretor do presídio foi nomeado pelo Governo do Estado e atribuições como alimentação, vestuário, saúde e assistência jurídica ficaram sob responsabilidade da empresa Humanitas. (TANGERINO, NOLASCO, 2013)
As unidades foram se espalhando pelo país ao longo dos anos, sempre sofrendo questionamentos sobre sua legalidade e, após o advento da lei 11079/2004, esse caminho ficou mais fácil, a chamada Parceria Público-Privada (PPP). É a primeira legislação que trata diretamente do tema, através da lei 13190 de 2015, que inclui na Lei de Execuções Penais (LEP) os artigos 83-A e 83-B:
Art. 83-A. Poderão ser objeto de execução indireta as atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares desenvolvidas em estabelecimentos penais, e notadamente:
I - serviços de conservação, limpeza, informática, copeiragem, portaria, recepção, reprografia, telecomunicações, lavanderia e manutenção de prédios, instalações e equipamentos internos e externos;
II - serviços relacionados à execução de trabalho pelo preso.
§ 1º A execução indireta será realizada sob supervisão e fiscalização do poder público.
§ 2º Os serviços relacionados neste artigo poderão compreender o fornecimento de materiais, equipamentos, máquinas e profissionais.
Art. 83-B. São indelegáveis as funções de direção, chefia e coordenação no âmbito do sistema penal, bem como todas as atividades que exijam o exercício do poder de polícia, e notadamente:
I - classificação de condenados;
II - aplicação de sanções disciplinares;
III - controle de rebeliões;
IV - transporte de presos para órgãos do Poder Judiciário, hospitais e outros locais externos aos estabelecimentos penais.
Nota-se que a lei 13.190/2015 deixa questões importantes de fora do seu texto, como vigilância interna das prisões e a assistência jurídica serem ou não passíveis de delegação para o ente privado, sendo esse um ponto de controvérsia constitucional. Sendo omisso nesse ponto, o texto acaba possibilitando, de certa forma, que essas atividades sejam repassadas para os particulares. A questão é complexa, pois seria viável aquele que tem o encarcerado como fonte de lucro, ser responsável pela assistência jurídica e, por exemplo, ajudá-lo a conseguir alvará de soltura. A legislação é omissa e discreta sobre um tema de tanta relevância no cenário nacional.
2.3 TRABALHO PRISIONAL: EXPLORAÇÃO EM PROL DO CAPITALISMO
Há séculos a exploração do trabalho prisional é algo comum no sistema penitenciário, sendo possível afirmar que sua prática nasceu a partir dos próprios sistemas prisionais. Como vimos, nos modelos americanos a lógica fabril e a participação de entes privados também são comuns, a busca do lucro através dessa exploração possui uma nuvem de ressocialização do encarcerado.
A esse respeito, em Vigiar e Punir, Michael Foucault (1975/2007, p. 202) formula:
O trabalho não é nem uma adição nem um corretivo ao regime de detenção: quer se trate de trabalhos forçados, da reclusão, do encarceramento, é concebido, pelo próprio legislador, como tendo que acompanhá-la necessariamente. Mas uma necessidade que justamente não é aquela que falavam os reformadores no século XVIII, quando queriam fazer da prisão ou um exemplo para o público, ou uma reparação útil para a sociedade. No regime carcerário a ligação do trabalho e da punição é de outro tipo.
No Brasil, o trabalho prisional é regularizado pela Lei de Execuções Penais (LEP) e não pela Consolidação de Leis Trabalhistas. O artigo 28 da LEP traz, em seu texto, que o trabalho possui a “finalidade educativa e produtiva”, além disso, o trabalho prisional proporciona remissão da pena, tornando-o atrativo, uma vez que, a cada três dias trabalhados com oito horas de jornada, o preso ganha um dia de remissão da pena, bem como dispõe o parágrafo primeiro do artigo 126 da LEP.
Outro importante artigo a ser abordado da referida lei é o artigo 29, que trata da remuneração do preso: essa não poderá ser inferior a 3/4 do salário mínimo vigente, tornando lucrativa, para os entes privados, a contratação de presidiários. Somando essas previsões e a superlotação dos presídios, os encarcerados ficam sujeitos a uma exploração predatória do trabalho.
Segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), órgão ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, o número de encarcerados no país é de 758.676 - números até junho de 2019. Apesar desse estrondoso número de presos no país, apenas uma parcela baixa consegue ter acesso ao trabalho. Segundo o monitor da violência do portal de notícias G1, com base em uma coleta de dados dos governos estaduais e Distrito Federal, apenas 18,9% dos presos tem acesso ao trabalho.
A essência da ressocialização através do trabalho atinge um número baixo de presidiários, fazendo com que o trabalho prisional se torne precioso para aqueles que conseguem e, consequentemente, uma explícita violação de direito, já que, no artigo 41 da LEP, o trabalho prisional é um direito do encarcerado.
2.3.1 O lucro com a exploração do trabalho prisional
A Consolidação de Leis Trabalhistas trouxe uma série de regras que são custosas ao empregador, situação essa, que não ocorre na contração de um encarcerado. O regramento encontrado na Lei de Execuções Penais é diferente da CLT - salário mínimo menor, não pagamento de férias e décimo terceiro, não recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), somado ao fato de que menos de 20% dos encarcerados tem acesso ao trabalho, ainda que esse seja garantido por lei como direito.O trabalho carcerário tornou-se um meio importante para a iniciativa privada aumentar seus lucros. Com a alta demanda, muitos presidiários trabalham recebendo menos do que o garantido em lei, alguns sequer recebem e, além de não poderem questionar tal abuso, os presos não têm o poder de rescindir esse contrato de trabalho.
A questão salarial é tema da ADPF-336, ajuizada pela Procuradoria Geral da República, pelo ex-procurador Rodrigo Janot em 2015. A ação trouxe conflitos aparentes com princípios constitucionais, como o da isonomia - que garante igualdade, e o da dignidade humana. Trouxe ainda, o conflito com o art. 7, inciso IV da Constituição Federal, que garante o recebimento de salário mínimo para todos os trabalhadores, sejam eles urbanos ou rurais.
Qual a diferença entre o trabalho realizado por pessoa livre daquele realizado por presidiário? Os valores decorrentes do princípio da isonomia não autorizam a existência de norma que imponha tratamento desigual, sem que a situação corrobore a necessidade da diferenciação. A força de trabalho do preso não diverge, em razão do encarceramento, daquela realizada por pessoa livre, consistindo a remuneração inferior não somente ofensa ao princípio da isonomia, como injustificável e inconstitucional penalidade que extrapola as funções e objetivos da pena. (JANOT, 2015).
A referida ação, que poderia trazer benefício ao trabalho encarcerado e ser mais um aditivo para estimular a recuperação do preso, está aguardando análise do ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux.
A falha do Estado, por não conseguir ofertar emprego para todos presidiários, e a política predatória, que norteia a relação do trabalho prisional com entes privados, impedem que o trabalho prisional seja uma medida importante para a ressocialização do encarcerado. Esses fatores colaboram para que o Brasil possua uma taxa de reincidência criminal alta.
Pesquisas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontam que a reincidência criminal no Brasil é de 42,5%. O estudo foi feito com presos maiores de 18 anos, com processos que tiverem origem no ano de 2015 e a reentrada no sistema carcerário ocorreu até dezembro de 2019.
Uma última análise sobre o tema, trazida pelo Instituto de Criminologia e Políticas Criminais, aponta uma agressão constitucional a respeito da delegação, para entes privados, do trabalho carcerário, como discorre Juarez Cirino dos Santos (2013) em seu artigo Privatizações de presídios:
Por último, sistemas de trabalho carcerário que submetam a força de trabalho encarcerada a qualquer outra autoridade diferente do Estado – como, por exemplo, o empresário privado – representam violação inconstitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, CF), por uma razão elementar: a força de trabalho encarcerada não tem o direito de rescindir o contrato de trabalho, ou seja, não possui a única liberdade real do trabalhador na relação de emprego e, por isso, a compulsória subordinação de seres humanos a empresários privados não representa, apenas, simples dominação do homem pelo homem, mas a própria institucionalização do trabalho escravo. Se o programa de retribuição e de prevenção do crime é definido pelo Estado na aplicação da pena criminal pelo poder Judiciário (art. 59, CP), então a realização desse programa político-criminal pelo poder Executivo através da execução da pena, vinculada ao objetivo de harmônica integração social do condenado (art. 1º, LEP), constitui dever indelegável do Poder Público, com exclusão de toda e qualquer forma de privatização da execução penal.
2.4 “GUERRA CONTRA AS DROGAS” E O AUMENTO DA MASSA CARCERÁRIA
O debate sobre as drogas, sem dúvida alguma, é um tema complexo, podendo ser abordado de variadas formas. Nesse trabalho, pretende-se abordar a relação da questão das drogas com o aumento da massa carcerária no Brasil, aumento este que é a porta de entrada para discussão acerca das privatizações dos presídios.
O feroz combate o tráfico de drogas, embora incapaz de coibir a prática, é responsável por um alto número de encarcerados no Brasil. Segundo dados da Agência Brasil, o número atual de presos por crimes relacionados a drogas é 39,42 %, dados referentes a junho de 2019.
Sobre a Lei de Drogas (11.343/2006), que regulamenta o tema, importa destacar dois de seus artigos para a discussão: o art. 28 e o art. 33. O primeiro diz respeito à figura do usuário; o segundo, que chama ainda mais atenção, determina que “se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente’’(Artigo 33). Juntos, o parágrafo segundo do art. 28 e o art. 33, evidenciam a criminalização da pobreza, corroborando para o elevado número da tipificação do crime de tráfico de drogas.
O art. 33, que traz a figura do traficante, permite uma margem interpretativa do agente policial normalmente usada em desfavor daquele que porta a droga, uma vez que o artigo não menciona nada a respeito do que seria essa quantidade de droga referida para configuração de crime de tráfico, não há nada estipulado. Países como Portugal e Colômbia trazem em suas legislações a quantidade específica a ser considerada tráfico.
No Brasil, faltam discussões mais sérias sobre o tema. A política adotada contra as drogas não demonstra qualquer eficácia, pelo contrário, impulsiona a massa carcerária para números cada vez maiores. E esse é exatamente o ponto de interesse da iniciativa privada: uma demanda maior de encarcerados, acendendo cada vez mais o debate favorável para as privatizações e sua expansão pelo país. A superlotação é de interesse privado, sendo o presidiário encarado como commodities para os empresários.
O Brasil precisar rever sua política interna em relação às drogas, não só pela questão do impacto no aumento da massa carcerária, como também pelo alto número de homicídios, também impactado por esse cenário de guerra. O aprisionamento desenfreado por tráfico de drogas é confundido com sucesso mediante a prática de um crime, quando, na verdade, coloca mais pessoas em situação de prisão, sob o controle de facções criminosas e gerando mais resultados negativos para o sistema carcerário, como a reincidência.
2.5 A INVIABILIDADE DA PRIVATIZAÇÃO PRISIONAL
Traçar a inviabilidade ou não da privatização do setor prisional é uma tarefa inconclusiva. A falta de estudos científicos sobre o tema prejudica sua análise de forma ampla e concreta. Os argumentos mais fixados giram em torno de respaldos jurídicos e filosóficos - para aqueles que são contra; e economia para os cofres públicos e mais eficiência para execução - para aqueles que são favoráveis à privatização.
Contudo, o assunto vem avançando no Brasil, mesmo sem legislação coesa sobre o tema. O atual cenário permite uma exploração da massa carcerária abusiva voltada, exclusivamente, para o lucro daquele que detém essa responsabilidade, fazendo lembrar o início dessa história da simbiose público-privada que, claramente, não contribui para um sistema prisional eficaz, já que esse, por sua vez, seria alcançado não apenas através da resolução da superlotação dos presídios, mas também possibilitando a ressocialização do encarcerado, preparando-o para o retorno à vida em sociedade.
2.5.1 Modelos adotados no país
No Brasil, adotamos os modelos de co-gestão e a parceria público-privada para a participação de entes privados na administração penitenciária.
No modelo de co-gestão, que é predominante, a administração de atividades tidas como indelegáveis são mantidas pelo administrador público - diretor da unidade, guardas e escolta externa, alinhando-se, inclusive, ao sistema francês e deixando ao encargo da empresa privada os serviços de saúde, limpeza, manutenção, entre outros.
Na PPP, nota-se um contrato com poderes mais amplos para a empresa privada, que vão desde a possibilidade da construção da unidade até o gerenciamento. Embora seja a modalidade menos praticada hoje, esse tipo de participação é mais atrativo para as empresas privadas, não só pelo maior número de participação, como também pela duração do contrato, que é longa. A lei 11079/2004 permite um contrato com duração de 35 anos, situação que pode tornar o contrato mais oneroso para os cofres públicos, pois impossibilita o poder público de uma fazer revisão contratual sobre as políticas prisionais, por um longo período de tempo.
No Brasil, existem dois tipos de parcerias públicas-privadas: patrocinada e administrativa. Elas diferem na forma de arrecadação que é aferida pelo poder privado. Na patrocinada, o particular obtém o recurso através do governo e por cobranças de tarifas dos usuários; já na administrativa, que é a utilizada pelas PPP prisionais, o pagamento vem unicamente do governo, fato esse que pode vir a gerar gastos inesperados para os cofres públicos.
2.5.2 Aspectos positivos da privatização
A situação atual dos presídios é inegavelmente caótica: superlotação, algumas unidades se assemelham a verdadeiras masmorras, sem condições de oferecer nada além do aprisionamento e potencialização criminal.
A superlotação tornou-se um fato que fomenta os argumentos favoráveis à privatização prisional e o Estado mostrou-se incapaz de suprir sozinho o déficit de vagas. Assim sendo, a privatização, através de uma PPP, por exemplo, supostamente poderia resolver essa questão, já que o ente privado teria recursos para construção de novas unidades, inclusive para uma modernização nas prisões, que não poucas, mostram-se obsoletas.
Outro ponto favorável é o maior oferecimento de vagas de trabalho. Hoje o número de vagas é baixo, mesmo o trabalho sendo um direito garantido pela Lei de Execuções Penais. Trabalho esse que pode ser utilizado para remissão de pena e remuneração, além do potencial de ressocialização.
O Estado não tem recursos para gerir, para construir os presídios. A privatização deve ser enfrentada não do ponto de vista ideológico ou jurídico, se sou a favor ou contra. Tem que ser enfrentada como uma necessidade absolutamente insuperável. Ou privatizamos os presídios; aumentando o número de presídios; melhoramos as condições de vida e da readaptação social do preso sem necessidade do investimento do Estado, ou vamos continuar assistindo essas cenas que envergonham nossa nação perante o mundo. Portanto, a privatização não é a questão de escolha, mas uma necessidade indiscutível é um fato (CAPEZ apud RODRIGUES, 2013).
O atual governo do país, com uma agenda mais liberal, vem demonstrando cada vez mais apoio às PPP, bem como salientou a secretária especial do Programa de Parcerias de Investimentos do Ministério da Economia, Martha Seillier, ao afirmar que “hoje é o pior momento dos mundos, e o modelo de parceria público-privada (PPP) pode ajudar a inverter esse cenário”, referindo-se à situação dos presídios brasileiros e sugerindo a privatização como solução para o problema.
Muito disso se deve ao resultado positivo alcançado pelo Complexo Prisional de Ribeirão das Neves, que possui um contrato com parceria público-privada e apresenta bons resultados no tratamento humano, segurança e sem relatos de rebeliões. É preciso fazer ressalvas, pois houve uma pré-seleção de presos.
2.5.3 Aspectos contrários à privatização prisional
Falar sobre privatização é falar também sobre lucro, já que, ao assumir tal serviço, uma empresa o faz em prol da obtenção do mesmo – não haveria outra razão. A inclusão da lógica de lucratividade ao contexto do aprisionamento de pessoas faz surgir uma série de questionamentos jurídicos e ideológicos que refutam a ideia de que privatizar seria a grande solução para o cenário caótico do sistema penitenciário.
A exploração do trabalho prisional é algo fortemente criticado. Há doutrinadores que defendem que o trabalho prisional não poderia ser delegado ao ente privado, por violação do princípio da dignidade humano, contido no art. 1 da Constituição Federal, pelo fato do encarcerado não poder romper esse contrato, como defende Juarez Cirino dos Santos. Outras críticas pairam sobre a remuneração recebida pelo preso e o temor da exploração do trabalho pelo ente privado que, na busca pelo lucro, pode vir a tornar esse trabalho análogo à escravidão (CIRINO, 2013).
No que tange aos serviços ligados à manutenção e limpeza, esses não são remunerados, exceto na PPP com o presídio de Ribeirão das Neves. E vale destacar mais um ponto sobre o tema, que diz respeito à relação do número de vagas para o trabalho; mesmo as unidades privatizadas no país ainda não foram capazes de suprir a demanda por vagas.
A economia do setor público, considerada como um fator favorável gerado pela privatização, estaria relacionada a uma possível melhor gestão do ente privado. No entanto, esse é um dado difícil de ser alcançado pelo fato de alguns gastos serem ocultos. Também uma comparação do custo operacional entre um estado em que há a privatização e outro em que não há, demonstra, nos casos privatizados, gasto por preso maior do que a média nacional, bem como ocorre no estado do Amazonas (NUNES, 2019).
Em relação aos cuidados sanitários e de segurança, também se verifica experiências ruins nos presídios privatizados, problemas de falta de água e de segurança interna, ocasionando rebeliões, tais como a que ocorreu no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, que acarretou 56 mortes.
A questão jurídica contrária à privatização, com mais respaldo, gira em torno do poder de punir do Estado, por este ser indelegável. Outras correntes defendem que essa delegação pode ocorrer desde que não atinja a atividade jurisdicional e o poder de polícia. As modalidades de contrato de parceria público-privada preveem possibilidade de contrato com grande duração (35 anos), impedindo uma revisão de políticas prisionais a pequeno e médio prazo.
2.5.4 A privatização prisional é ou não viável?
O sistema prisional, há décadas, encontra-se em estado deplorável. Os entraves jurídicos em torno do tema não impossibilitaram que a privatização se tornasse uma realidade, e a ideia segue em ampla expansão, fomentada também pelo atual Presidente da República. O debate precisa evoluir, tanto no legislativo quanto no meio acadêmico; buscar formas de equilibrar a simbiose público-privada parece ser o caminho razoável.
Ao mesmo tempo, a privatização prisional não pode ser utilizada pelo poder público como uma cortina de fumaça para tapar o caos do sistema prisional. É preciso que o poder público cumpra seu papel fiscalizador, que as promessas feitas (contratos) sejam cumpridas, e é necessário olhar para os problemas sociais, que elevam a superlotação. Além disso, as legislações ultrapassadas corroboram muito mais para o aumento da massa carcerária do que qualquer outro fator.
Para equilibrar essa relação público-privada é importante deixar claro o papel de cada um nessa relação. As leis que regem o tema causam confusão e desproporcionalidade, como observado na modalidade de PPP, regida pela lei 11079/2004. Não é razoável que um contrato para administração privada de penitenciárias - um tema tão sensível e importante - vigore por tanto tempo (35 anos) sem que esse possa ser revisado pelo ente público.
O advento da lei 13190/2015, que incluiu os artigos 83-A e 83-B na Lei de Execução Penal, deixou incertezas sobre algumas atividades poderem ou não ser delegadas para o ente privado, e este, talvez, seja o maior ponto de controvérsia. O pagamento feito pelo poder público não pode estar ligado ao número de presos, justamente para evitar conflito de interesses. A própria remuneração pelo trabalho do preso é algo que precisa ser revisto, bem como a criação de mecanismos que possam evitar trabalho análogo à escravidão.
No entanto, não há interesse político em tratar deste tema e a ideia de criar uma legislação ou empregar força ao sistema penal ocorre apenas quando voltada para criação de penas mais severas. É preciso pensar em todas as etapas do cumprimento da pena privativa de liberdade, todavia, a maneira como a maior parte da sociedade entende o aprisionamento de pessoas influencia a omissão do legislador para tratar questões relacionadas ao encarceramento. O resultado disso é o caos do sistema.
A volta para o convívio em sociedade é destino possível do encarcerado, por isso, é preciso refletir sobre a construção deste caminho de volta, para que seja percorrido por uma via digna e de ressocialização, tendo em vista que, a recuperação dos presos acarreta benefício de forma ampla no âmbito social.