Capa da publicação HC de Lula: quando a Justiça demora a retirar a venda dos olhos
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A tardia aplicação do entendimento libertário da 2ª turma do Supremo Tribunal Federal, com o Habeas Corpus 193726, de Luiz Inácio Lula da Silva: uma realidade nacional

09/03/2021 às 08:40
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Observar o Ministro Edson Fachin, um dos mais estudiosos magistrados do país, retornar aos autos para conceder o não concedido anteriormente, foi enxergar uma “chance” que não assiste à totalidade dos jurisdicionados que compõem os mais de 730 mil presos.

1. INTRODUÇÃO

Após o julgamento monocrático do HC 193726 ED / PR, ocorrido em 08/03/2021, Dia Internacional da Mulher, de relatoria do Ministro Edson Fachin, da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva viu as ações penais originárias da 13ª Vara Federal de Curitiba, Paraná, se esfacelarem por mero erro formal, jamais observado antes.

O objetivo central da presente pesquisa é demonstrar o alcance da referida decisão, o efeito repressor do writ, e a discricionariedade dos Embargos de Declaração postos em análise, que reverberaram na concessão da ordem do HC.

São 46 (quarenta e seis) páginas na decisão do Ministro Fachin. Ele inicia o relatório destacando que o writ fora impetrado em 03/11/2020 e que, durante o recesso forense, se debruçou mais na demanda, mesmo após alguns anos de relatoria dos processos da Lava Jato, ocorrida mediante o falecimento do então Ministro Teori Zavaski.

O ponto nevrálgico da demanda é analisar os limites da decisão monocrática. O que, inicialmente, atrai atenção é o fato de que o objeto que orbitou a concessão da ordem foi a incompetência da 13ª Vara de Curitiba, a qual consagrou o Ex-Super Ministro Sérgio Moro.

Vale destacar que a arguição de incompetência é matéria de ordem pública que diz respeito diretamente à estrutura da demanda, nada fazendo crer acerca da culpabilidade ou punibilidade do agente. Em linhas gerais, diz respeito ao recipiente, não ao conteúdo.

Nada obstante, é matéria básica, elementar, que, mesmo depois de 04 (quatro) anos, somente agora fora levada em consideração enquanto nulidade absoluta. Ademais, vício absoluto tal qual o ora apontado pelo Ministro, fulmina todo e qualquer processo judicial ab initio (desde o início), pois nenhum ato “jurídico” realizado chegou a, de fato, adentrar no mundo jurídico, ao ponto de se sustentar no tempo e espaço.

Por assim dizer, a decisão do Ministro Edson Fachin, ao identificar a presente nulidade, parece, na ótica processual, bastante acertada ao ostentar um efeito de reavivamento dos atos jurídicos da Operação Lava-Jato. Contudo, de igual sorte, também se encontra eivada de impertinência, ao passo que somente depois de o paciente enfrentar mais de um ano e meio de prisão, é que esta nulidade, suscitada pela defesa desde sempre, fora mais rigorosamente analisada pela Suprema Corte do Brasil, a contar de 03/11/2020.

Diante do exposto, pretende-se analisar a modalidade anulatória do Habeas Corpus, que pode a qualquer momento anular processos judiciais, em semelhança à Revisão Criminal. Também se discorrerá brevemente sobre os efeitos jurídicos desta decisão, bem como os possíveis caminhos a serem trilhados a partir de hoje pela defesa do ex-presidente Lula.

Por fim, será apresentada, ainda, breve pesquisa realizada pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), em relação à dinâmica de denegação de ordens de Habeas Corpus.

2. DA POSSIBILIDADE DE NULIDADE DA AÇÃO PENAL POR HABEAS CORPUS

Antes do debate que se reputa mais importante nesse breve texto, para leigos ou iniciantes nas cadeiras de Direito Penal e Processo Penal, vale destacar que a Ação Constitucional (ou rémedio constitucional) de Habeas Corpus goza de tripla faceta de aplicação processual: repressiva, preventiva e de trancamento.

O habeas corpus encontra guarida no art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil:

LXVIII - conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;

Ademais, o Código de Processo Penal disciplina, em seu capítulo X, que: “Art. 647. Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar.”

A fundamentação utilizada por Fachin vai mais além, ao se apegar na intelecção do art. 654 do Código de Processo Penal:

Art. 654. O habeas corpus poderá ser impetrado por qualquer pessoa, em seu favor ou de outrem, bem como pelo Ministério Público.

§ 1o A petição de habeas corpus conterá:

a) o nome da pessoa que sofre ou está ameaçada de sofrer violência ou coação e o de quem exercer a violência, coação ou ameaça;

b) a declaração da espécie de constrangimento ou, em caso de simples ameaça de coação, as razões em que funda o seu temor;

c) a assinatura do impetrante, ou de alguém a seu rogo, quando não souber ou não puder escrever, e a designação das respectivas residências.

§ 2o Os juízes e os tribunais têm competência para expedir de ofício ordem de habeas corpus, quando no curso de processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal.

A doutrina é latente em considerar o habeas corpus para trancamento, anulação de inquérito policial ou de ação penal, ressalvando, todavia, que é medida excepcional, somente autorizada em casos em que fique clara a atipicidade da conduta, a absoluta falta de provas da materialidade e indícios da autoria ou a ocorrência de alguma causa extintiva da punibilidade, assim como dos demais vícios absolutos, como é o caso do paciente Luiz Inácio Lula da Silva. (BRASILEIRO DE LIMA, 2018, p. 616)

Por esta razão, uma vez que restou comprovada a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitina, não obstante o fato de isso já ser matéria suscitada pela defesa do paciente - requerendo, em consequência, a migração dos processos para a Justiça Federal do DF - a concessão da ordem de Habeas Corpus é medida que se impõe. Porém, com as ressalvas que lhe são pertinentes, em contraponto com o momento de declaração do óbvio já suscitado, há muito, pela defesa do paciente, por intermédio dos diversos recursos interpostos no TRF4, STJ, STF e Corte Interamericana de Direitos Humanos.

3. DA NÍTIDA IMPRECISÃO NA ANÁLISE PRELIMINAR DO HABEAS CORPUS PELO STF: Uma realidade não tão distante

Atendo-se brevemente ao discorrido pelo Ministro em sua decisão monocrática, o intérprete nos leva a crer que, somente agora, em sede de Embargos de Declaração e passados mais de 04 (quatro) anos de tramitação das Ações Penais que condenaram o ex-presidente Lula em Curitiba, in verbis:

A impetração é recente (3.11.2020), e pela vez primeira assim apresentada originalmente em relação à ação penal em tela, suscita teses e precedentes que, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, foram moldando a definição da competência da 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba até o tempo presente. O tema, com efeito, diante de situações similares julgadas pelo Tribunal, nada obstante nos quais restei vencido, atingiu desenvolvimento que propicia, superado o ciclo de maturação temática, análise das respectivas alegações aqui deduzidas. Levei a efeito presentemente no último recesso (a partir de 19 de dezembro e durante o mês de janeiro deste ano de 2021) exame dessa matéria (posta em termos originais na impetração de novembro de 2020), cotejando a linha evolutiva de seus contornos nesses últimos anos, e ao começo desse período forense restou possível concluir e agora apresentar, em sede dessa prestação jurisdicional, a resposta racional e sistemática à impetração e suas alegações, como sustentam na inicial e petições. Após declinar argumentos pelos quais entende viável o ajuizamento da pretensão na via do habeas corpus, sustentam os impetrantes, em síntese, que, nos fatos atribuídos ao ora paciente “não há correlação entre os desvios praticados na Petrobras e o custeio da construção do edifício ou das reformas realizadas no tal tríplex, feitas em benefício e recebidas pelo Paciente” (Doc. 1). Afirmam, sob tal ponto de vista, que a hipótese se assemelha ao entendimento firmado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento do INQ 4.130 QO, segundo o qual a 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba seria competente apenas para o julgamento dos fatos que vitimaram a Petrobras S/A, sendo imperativa a observância, em relação aos demais, às regras de distribuição da competência jurisdicional previstas no ordenamento jurídico.

Processualmente, não parece crível que, em sede de ação constitucional que visa a assegurar a liberdade e o direito de locomoção, somente após mais de 300 (trezentos) recursos postos pela defesa do paciente, hoje, mais de quatro anos depois, a maior Corte do país observe erro crasso, de vício absoluto, demanda inexistente de mérito, envolta, apenas, por condições estruturais.

E, pior: por ser de relatoria do Ministro Edson Fachin, um dos mais gabaritados hermeneutas do país, é que, singelamente, as inobservâncias foram assumidas. Somente com a oposição de embargos de declaração em sua decisão monocrática no Habeas Corpus, é que houve a “sinalização” da jurisprudência libertária do Supremo Tribunal Federal, e de força dos argumentos da defesa trazidos no writ.

Não cabe a este singelo escrito discorrer sobre a conduta processual do juiz natural da lide. O ponto principal deste texto é demonstrar que, na melhor das hipóteses, houve precariedade na prestação jurisdicional. Afinal, o nome posto nos jogos é Luiz Inácio Lula da Silva. Todavia, este erro crasso, reitere-se, poderia ocorrer, deveras, com quaisquer outros indivíduos, que também passariam um ano e meio detidos na sede da Polícia Federal, na mesma cidade da sua Vara Algoz (13ª Vara Federal da JF/PR).

Notório destacar que foi por conta desta demanda que este indivíduo foi impedido de concorrer às eleições presidenciais de 2018.

Contudo, a realidade nacional seria muito melhor se, na prática, não ocorresse o que a indagação hipotética mencionada no parágrafo anterior expressou. Isso porque esta é a realidade de diversos detentos, que aguardam, enquanto presos provisoriamente, a prolação de sentença de mérito, absolutória ou condenatória, sugados pelo Sistema de Justiça Criminal.

Este cenário é retratado nos últimos dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública. As imprecisões jurídicas eclodem em diversas Câmaras Criminais do país, o qual, por sua vez, possui uma alta e infeliz taxa de denegação da ordem de habeas corpus.

Esta imprecisão, seja por descuido ou por uma alta taxa de demandas judiciais a serem dadas somente em um único dia, se abateu sobre Luiz Inácio Lula da Silva. Mas também, se abate sobre as grandes vítimas do Sistema de Justiça Criminal. Aqueles que, diferentemente de Lula, não dispõem de defesa aguerrida, aptas a impetrar mais de 300 (trezentos) recursos - ostentando uma persistência que, somente hoje, deu frutos, fazendo com que um relator da Suprema Corte retorne aos estudos dos autos e observe que errou - fatalmente padecerão inermes.

Os presos pobres, negros, da periferia, jovens, não possuem uma defesa tão aguerrida. Não possuem uma legião de defensores nas redes, nem milhões de apoiantes nas ruas. Se causa estranheza este equívoco em relação a Luiz Inácio Lula da Silva, o que dirá quanto aos 726.354 presos no Brasil.

Nos termos citados mais acima, em pesquisa realizada pelo Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe (UFS), o então estudante da graduação em Direito, Victor Carvalho, analisou uma amostra de 227 habeas corpus (HCs) impetrados em janeiro de 2017, perante o Tribunal de Justiça de Sergipe, conhecido por suas premiações junto ao Conselho Nacional de Justiça, obtendo, nos anos primevos, dois selos diamante.(CARVALHO, 2018)

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Os resultados foram: 52,88% dos HCs sequer foram admitidos para julgamento, 42,31% foram negados e 4,81% foram deferidos, havendo uma rejeição dos writ impetrados de 95,19% (CARVALHO, 2018).

Por sua vez, no último relatório detalhado do Ministério da Justiça e Segurança Pública foram divulgados dados do Infopen sobre o sistema carcerário do país: 100% dos presos provisórios em Sergipe passam mais de 90 dias encarcerados (p. 16). 

Ao arremate, nestes mesmos dados, a média nacional de presos provisórios é de 43% sobre a totalidade dos dententos nacionais. Quantos destes encarcerados obtiverem êxito em seu writ? Quantos intérpretes retornaram aos autos para reaver as suas decisões embargadas e anular o óbvio? 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim, conclui-se que a utilização do HC 193726 como um estudo de caso denota a imprecisão da jurisdição perante o jurisdicionado. Mesmo com mais de quatro anos de análise das demandas, com recursos de mais de 400 páginas, sustentações orais, despachos e petições acessórias, somente a 8 de março de 2021, o paciente Luiz Inácio Lula da Silva observou o desmantelo de todas as ações contra ele ajuizadas, na 13ª Vara Federal de Curitiba, ocupada até meados de 2019 pelo então Juiz Titular Sérgio Fernando Moro.

Observar o Ministro Edson Fachin, um dos mais estudiosos magistrados do país, retornar aos autos para conceder o não concedido anteriormente, foi enxergar uma “chance” que não assiste à totalidade dos jurisdicionados que compõem os mais de 730 mil presos.

A análise da decisão de 46 páginas de Fachin confirma a realidade, também, das estatísticas da Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Sergipe, que denega mais de 95,19% dos Habeas Corpus que lhe são direcionados. A despeito de toda e qualquer extensão da decisão de hoje, para muitos, esta terá um efeito político, econômico, social, mas, sobretudo, também terá um efeito negativo que nos leva a questionar: se a Corte mais equipada do país foi alvo de um erro grosseiro acerca das condições da ação penal, meramente formal, que se abateu em face de um paciente, o que dirá das Cortes de apelação criminal país adentro?


REFERÊNCIAS

BRASILEIRO DE LIMA. Manual de Processo Penal. Salvador: Editora Juspodium, 2018.

CARVALHO, Victor F. A. Os julgamentos de habeas corpus no trobunal de justiça de sergipe e o grau de (in) efetividade da garantia constitucional. São Cristóvão: Departamento de Direito da UFS, 2018.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Jun/2017. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatoriossinteticos/relatorio_2017_2211.pdf. Acesso em 08.03.2021.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. São Paulo: Editora Fórum, 2017;

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. HABEAS CORPUS 193726 ED / PR, Rel. Ministro Edson Fachin, 2ª Turma, julgado em 08/03/2021, DJe 10/03/2021.

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Sobre o autor
Davi Reis de Jesus

Escritor. Atualmente é Assistente Jurídico em Escritório de Advocacia. Autor de mais de 24 (vinte e quatro) artigos jurídicos publicados em periódicos, capítulos de e-book, nas áreas de Criminologia, Direitos Humanos, Direito Penal e Segurança Pública. Autor dos livros "Justiça Restaurativa e Violências" publicado pela NEA e registrado na Biblioteca Nacional de Frankfurt (2019) e "Justiça Restaurativa: Apanhados bibliográficos 2018/2021" publicado na Clube de Autores. Também é autor de livros literários.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JESUS, Davi Reis. A tardia aplicação do entendimento libertário da 2ª turma do Supremo Tribunal Federal, com o Habeas Corpus 193726, de Luiz Inácio Lula da Silva: uma realidade nacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6460, 9 mar. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/89017. Acesso em: 2 nov. 2024.

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