3. Questões cruciais da vida nacional: Sua resolução versus Conflitos de competências.
Dessa forma, verificando-se o conflito enfrentado pelo Poder Judiciário quando diante de situações críticas, como as apresentadas, nas quais lhe seja requerida a seleção entre o atendimento – muitas vezes imperioso – às necessidades sociais e ou a limitação de suas ações dentro do que originalmente lhes é atribuído pela Carta da República, cumpre saber qual o grau de liberdade que este Poder tem em sua busca pela resolução dos conflitos sociais e, por conseguinte, pela justiça uma vez que, segundo preceitua Moura:
Se por um lado essa atuação do poder judiciário resulta na garantia de preservação de valores e interesses primordiais da sociedade, por outro encontra limites na necessária proteção ao processo democrático e a estabilidade institucional na resolução de conflitos entre os poderes públicos e os cidadãos.[53]
Portanto, dentro de uma nova realidade, em que não mais se busca atrelar o constitucionalismo a idéia de limitação de poder político juntamente com a busca pela eficácia do texto legal, diante da expectativa de concretização dos direitos fundamentais[54], resta considerar os princípios como uma alternativa para solucionar esta questão, pois como afirma Barroso:
[...] o fato é que as especificidades das normas constitucionais levaram a doutrina e a jurisprudência, já de muitos anos, a desenvolver ou sistematizar um elenco próprio de princípios aplicáveis à interpretação constitucional. [...] São eles, na ordenação que se afigura mais adequada para as circunstâncias brasileiras: o da supremacia da Constituição, o da presunção de constitucionalidade das normas e atos do Poder Público, o da interpretação conforme a Constituição, o da unidade, o da razoabilidade e o da efetividade [...] Princípios não são, como as regras, comandos imediatamente descritivos de condutas específicas, mas sim normas que consagram determinados valores ou indicam fins públicos a serem realizados por diferentes meios.[55]
Contudo, esta forma para solução dos problemas sociais se realizada reiteradamente – conforme vem ocorrendo – pode vir, e vem, a interferir no domínio que o Estado exerce sobre a sociedade. Assim é a lição de Machado que sustenta a indiscricionaridade, ou discricionaridade limitada, dos juízes constitucionais ao estender suas competências sobre determinada matéria.
[...] a atividade criativa dos juízes constitucionais brasileiros ganhou espaço amplo, no processo de ‘criação’ do Direito, não só por complementar o trabalho do legislador, mas, também, por implementar políticas de Estado, é possível aferir, ab initio, que tais atividades funcionais são indignas de aplausos, especialmente quando estão presentes modus operandi calcado na discricionaridade ‘limitada’.[56]
Já o entendimento de Dallari, para tal, é apresentado como uma crítica, na qual, o doutrinador sugere algumas alternativas como a delegação de poderes e a transferência constitucional de competências, porém, em ambos a separação resta prejudicada pela atuação passiva ou ativa de um dos órgãos no que deveria ser de competência de um dos demais. Contudo, em contraponto às alternativas propostas por Dallari está o ensinamento de Llamas, que reafirma a fundamental importância da real separação de poderes em um estado Liberal, como garantia à liberdade individual.
La lucha para sustraer a quienes tienen el poder político la potestad de establecer qué es Derecho se configura así como uno de los temas clásicos y constantes de la tradición liberal, distinguiéndola de las demás tradiciones políticas, pues un liberal es extremadamente reacio a atribuir al mismo conjunto de personas el poder legislativo y el poder ejecutivo, y considera que la separación entre estas dos funciones es condición indispensable para garantizar la libertad individual. [57] e [58]
Destarte, verificadas a teoria que norteou os preceitos constitucionais brasileiros e das demais constituições democráticas, o entendimento de juristas sobre a aplicação desta teoria na legislação vigente e a situação de fato, através dos casos concretos sucintamente apresentados, pode-se compreender que embora o sistema da tripartição dos poderes seja, atualmente, a melhor proposta a fim de garantir que tenhamos funcionalidade, autonomia e segurança para a administração Estatal, bem como, para que a sociedade tenha garantida sua liberdade; O sistema de fato implantado em nosso Estado apresenta, ainda, uma flexibilidade tal que desvia seu pleno funcionamento, pois, como afirma a mais nova ministra do STF “todo juiz deve pensar nos efeitos sociais de sua decisão sobre a sociedade”[59] e não somente nos efeitos que repercutem sobre o Estado – como um todo – como crê-se, deveria presumir, o que vêm a corroborar o entendimento de Beccaria, no qual:
Advém, ainda, dos principio firmados precedentemente, que os julgadores dos crimes não podem, ter o direito de interpretar as leis penais, pela própria razão de não serem legisladores. Os juízes não receberam as leis como uma tradição domestica, ou testamento de nossos avoengos, que deixaria aos descendentes somente a missão de obedecer. Eles as recebem da sociedade viva, ou do soberano, que representa essa sociedade, como depositário legítimo do resultado atual da vontade geral. [...]
O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A maior deve ser a lei geral; a menor, a ação conforme ou não a lei; a conseqüência, a liberdade ou a pena. Se o juiz for obrigado a elaborar um raciocínio a mais, ou se o fizer por sua conta, tudo se torna incerto e obscuro.[60]
Portanto, é possível concluir-se que tais decisões fogem, ou tendem a fugir, da interpretação e aplicação cartesiana da lei, o que ocorre como conseqüência da natureza humana a qual todos estamos sujeitos, incluso os magistrados/ministros que ao apreciar os fatos de determinado processo valem-se de suas íntimas convicções[61], confrontando muitas vezes questões éticas e morais, conforme destaca Araújo:
No momento da interpretação constitucional, há sempre que se enfrentar questões relacionadas aos valores, à ética e aos padrões de grande relevo moral, além das questões de ordem interpretativa que são ‘imanentes ao texto’.[62]
Contudo, entende-se que muita atenção deva ser dada ao controle desta flexibilidade, em especial ao desvirtuamento das competências conferidas ao Legislativo, pois, este pode ser o estopim para que uma sociedade queixosa e inconformada com as ações e conduta deste ou de outro poder quando inerte, venha a abrir mão de sua liberdade em prol de um Estado totalitário. Sendo esta a experiência provada pela Alemanha nos anos 20 e 30 do século passado, e que, sob os argumentos de um tirano, citados abaixo, desencadearam um dos piores exemplos para a sociedade mundial.
Mas, ultimamente, essa invenção da democracia fez surgir uma qualidade que hoje se transformou em uma verdadeira vergonha, que é a covardia de grande parte de nossa chamada ‘liderança’. Que felicidade poder a gente esconder-se, em todas as verdadeiras decisões de alguma importância, por trás das chamadas maiorias! Veja-se a preocupação de um desses salteadores políticos em obter a rogos o assentimento da maioria, garantindo-se a si e aos seus cúmplices, para, em qualquer tempo, poder alienar a responsabilidade.
E eis aí uma das principais razões por que essa espécie de atividade política é desprezível e odiosa a todo homem de sentimentos decentes e, portanto, também de coragem, ao passo que atrai todos os caracteres miseráveis – aqueles que não querem assumir a responsabilidade de suas ações, mas antes procuram fugir-lhe, não passando de covardes pulhas. Desde que os dirigentes de uma nação se componham de desprezíveis, muito depressa virão as conseqüências. Ninguém terá mais a coragem de uma ação decisiva: toda desonra, por mais ignominiosa, será aceita de preferência à resolução corajosa. Ninguém mais esta disposto a arriscar sua pessoa e a sua cabeça para executar uma ação temerária.[63]
Com isso vislumbra-se que o descompasso na administração de um Estado cujos administradores atuam em prol de minorias, como já aconteceu no passado, é um fator que pode ser, e é, determinante à influencia das massas. Sendo fundamental não só a autonomia do órgão estatal como a de seus integrantes – individualmente – para que possam, sem receio, tomar as decisões em benefício da coletividade, isto sem desconsiderar a harmonia ou sincronismo com que devem os poderes e seus integrantes [agentes] atuarem. Assim é o entendimento de Moraes que, conforme a transcrição apresentada abaixo, sustenta que a interferência de um poder ao outro pode vir a refletir na ação dos demais:
Não existirá, pois, um estado democrático de direito, sem que haja Poderes de Estado e Instituições independentes e harmônicos entre si, bem como previsão de direitos fundamentais e instrumentos que possibilitem a fiscalização e a perpetuidade desses requisitos. Todos esses temas são de tal modo ligados que a derrocada de um, fatalmente, acarretará a supressão dos demais, com o retorno do arbítrio e da ditadura.[64]
Porém, não devemos nos olvidar de que os casos evidenciados estão sendo, ou foram, apreciados e decididos em um tribunal político, composto por seleto grupo de magistrados escolhidos e indicados pelo chefe do Executivo[65], ou seja, sem a participação ou o crivo popular. Desta forma, embora componham uma amostragem de nossa sociedade, não têm uma representatividade eficiente, mal comparando a um estudo estatístico: uma vez que, em um ínfimo número de 11 (onze) e, como dito, elegidos por indicação, em tese não representam a realidade de aproximadamente 196.655.000[66] de brasileiros.
Corrobora o entendimento de que a amostragem da sociedade para os integrantes do STF é insuficiente o texto de Araujo no qual há a constatação de que a representatividade de um povo deve estar fundada em sua multiplicidade.
Para alcançar a unidade e assim a governabilidade, ou seja, a possibilidade de tomar decisões e implementá-las, o conjunto de cidadãos deve ser representado, sendo que a multiplicidade, que é inerente à multidão, deve ser reduzida.[67]
Da mesma forma, gize-se que, para estes julgadores constitucionais não há forma efetiva para que sejam responsabilizados por seus atos ou ações políticas – ao menos que se tenha presenciado desde o advento da constituição vigente – verificando-se, portanto, que “[...] não há uma responsabilização jurisdicional contundente e efetiva, o que há são juízes revestidos de poderes inabaláveis.”[68]
Com isto verifica-se que todos estes fatores vêm na contramão das “concepções mais tradicionais, enraizadas em conceitos advindos do Estado moderno e projetadas pelas teorias clássicas, cujo entendimento é de que o sujeito individual [...] é o protagonista da ação política”[69] cabendo, portanto, aos representantes do povo proporcionar ou motivar as alterações legislativas que se fazem necessárias para que o direito acompanhe a evolução social. Nesse sentido:
Percorramos a História e constataremos que as leis, que deveriam constituir convenções estabelecidas livremente entre homens livres, quase sempre não foram mais do que o instrumento das paixões da minoria, ou fruto do acaso e do momento, e nunca a obra de um prudente e observador da natureza humana, que tenha sabido orientar todas as ações da sociedade com essa finalidade única: todo o bem estar possível para a minoria.[70]
Desta forma, se o poder Judiciário almeja promover e consolidar todos os direitos fundamentais, pleiteados pela comunidade “deixará de ser o ‘least dangerous branch[71]?’ Passará a portar tanto a bolsa quanto a espada”[72]
Corroborando este entendimento de que a intervenção do judiciário, da forma evidenciada por este artigo, deve ser mínima e contida tal como a própria definição do Judicial restraint, já abordada, estão o discurso de posse do atual Presidente do STF e o voto do Min. Cezar Peluso na ADPF 54, cujos fragmentos transcrevem-se abaixo:
Esse documento de nome Constituição é fundante de toda a nossa ordem Jurídica. Certidão de nascimento e carteira de identidade do Estado, projeto de vida global da sociedade. [...]
É preciso ainda a legitimidade pelo exercício [...] partindo da vitalização dos explícitos fundamentos da República Federativa, venham a concretizar os objetivos também explicitamente adjetivados de fundamentais desse mesmo Estado republicano-federativo[73]
Se o Congresso não o fez, parece legítimo que setores da sociedade lhe demandem atualização legislativa, mediante atos lícitos de pressão [...] não temos legitimidade para criar, judicialmente, esta hipótese legal. A ADPF não pode ser transformada em panacéia que franqueie ao STF a prerrogativa de resolver todas as questões cruciais da vida nacional.[74]
A partir destas argumentações é possível pressupor que embora necessária a evolução legislativa, não cabe ao judiciário a competência, ou melhor, as prerrogativas para tais resoluções, contudo, este não deve permanecer inerte cabendo-lhe, portanto, o encargo de instigar àqueles cuja obrigação de legislar está impingida.
Conclusão
Por fim, mediante análise superficial dos casos concretos trazidos à discussão, do texto constitucional, da doutrina clássica apresentada – em especial a de Montesquieu, que materializou e consolidou a teoria da tripartição dos poderes de uma Nação, balizando a organização dos Estados atuais – e das doutrinas hodiernas, é possível conjectar algumas alternativas, uma vez que casos complexos – e ausentes de normativas prévias, via de regra, comportam várias soluções.
Portanto, a princípio, foram verificadas as competências inerentes a cada um dos Poderes em estudo, restando claro que as atribuições principais que cabem ao Legislativo são Legislar e fiscalizar, bem como, que ao Judiciário cabe a missão de compor os conflitos de interesses em cada caso concreto, através de um processo judicial, ou seja, a função jurisdicional. Aliás, cumpre destacar que, ao tribunal evidenciado é inerente a guarda da constituição, ou seja, são os ministros que lhe compõem quem devem zelar para que a norma fundamental seja aplicada. Isto posto, não há que se olvidar que ambos os poderes destacados possuem competências atípicas ou secundárias a fim de que organizem sua estrutura e funcionamentos autônomos.
Destarte, para que a sociedade não fique ao desamparo da justiça em casos como os apresentados entende-se ser possível, apenas e tão somente em situações excepcionais, que decisões sejam tomadas pelo poder Judiciário, mesmo que alheias às determinações legais previamente constituídas pelo Legislativo – quando obsoletas – ou quando ausente legislação sobre o tema. Contudo, os magistrados que optarem em assumir esta responsabilidade, devem envolver ao máximo sua capacidade criativa, a fim de que potencializem o seu dever de fundamentação, pois, pela teoria da separação de poderes, não se encontram plenamente legitimados para tal.
Todavia, para assegurar a legalidade e a racionalidade de sua interpretação, nessas situações, o intérprete deverá submeter suas decisões à fundamentação em diversos critérios, principalmente, para que garantida seja – no futuro – decisão semelhante à demanda semelhante, pois, o julgador – como ser racional que é – adotará aos princípios em especial os da proporcionalidade e da razoabilidade, bem como, a análise jurisprudencial e o censo de Justiça quando da prolatação de sua decisão.
Isto, para que as faculdades legislativas provenientes destas decisões não estejam entranhadas com aspecto político decorrentes dos valores e convicções intrínsecos em cada ministro, bem como, para que não venham a tornar-se vetores de arbitrariedade e tirania decorrentes da concentração dos poderes nas mão de um único órgão, assim como, da influência que pode vir a ser manifestada em virtude do processo ademocrático adotado para composição do tribunal estudado.
Portanto, deve-se ter em conta que as decisões por ele tomadas, de certa forma contra legem, não devem jamais ser a ultima ratio, pois, a influência coativa para que cada qual cumpra com o que lhe compete, na velocidade com que as demandas sociais requerem, deve ser constante e exercida por todos. Da mesma forma o fenômeno do Judicial Restraint deve ser incentivado para que os magistrados empenhem-se em não substituir o legislador, mas a aliar-se à sociedade no empenho coercitivo para que as atualizações legislativas sejam produzidas naturalmente.
Deste modo, ao final deste artigo se apresenta a citação de mais um trecho da obra analisada em que fica demonstrada a evidente atualidade dos conceitos desenvolvidos por Montesquieu há aproximadamente dois séculos e meio e que constantemente devem estar sendo (re)pensados.
Gostaria de investigar em todos os governos moderados que conhecemos qual é a distribuição dos três poderes e com isso calcular os graus de liberdade de que cada um deles pode gozar. Mas nunca devemos esgotar de tal forma um assunto, que não deixemos nada ao leitor. Não se trata de fazer ler, mas de fazer pensar.[75]