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Emenda Constituicional nº 26/1985, à Constituição Federal de 1967: manifestação do Poder Constituinte ou Evolutivo?

Uma análise a partir dos votos dos Ministros Eros Grau e Gilmar Mendes no julgamento da ADPF nº 153

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Agenda 14/07/2013 às 08:36

A Emenda Constitucional nº 26/85 não teve natureza de emenda, pois não alterou a Constituição de 67; também não foi ato de poder constituinte, já que ainda não existia Assembleia Constituinte. Trata-se de ato político único, colocando no mesmo texto a convocação da constituinte e a anistia.

Resumo: A palavra constituição pode ser compreendida de forma descritiva, relacionada à ideia de organismo, e constitutiva, relativa à origem do Estado. Associada à ideia de Constituição como norma fundamental prescritiva, está a de poder constituinte, entendido como um poder superior aos demais, constituídos, e que estabelece a Constituição de um Estado. Ele é inicial, incondicionado e ilimitado, enquanto o poder constituído é secundário, condicionado e limitado. A Emenda Constitucional nº 26, de 1985, colocou no mesmo texto a convocação da constituinte, suas condições de realização e a anistia, como um dos pressupostos de possibilidade da construção da nova ordem constitucional, motivo pelo qual os Ministros Eros Grau, Relator, e Gilmar Mendes entenderam, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 153, que tinha como objeto a Lei Federal nº 6.683/79 – Lei da Anistia, concluíram não há como questionar se esta foi ou não recepcionada pela Constituição Federal de 1988. Apesar de seu aspecto sui generis, a referida emenda constitucional não pode ser considerada obra do poder constituinte, tradicional ou evolutivo, ou mesmo do Congresso Nacional como poder constituído, senão como ato político único que convocou o poder constituinte. Com ele não se confunde nem se identifica.

Palavras-chave: Emenda Constitucional nº 26, de 1985. Poder Constituinte. Originário. Evolutivo.


1. Introdução

A palavra constituição pode ser entendida, ao longo do tempo, de duas formas: uma descritiva, associada à ideia de organismo, e outra prescritiva/constitutiva, relacionada à origem do Estado, ao conjunto de normas fundamentais que irão reger as relações entre governantes e governados. O primeiro significado prevaleceu até o século XVII, enquanto o segundo surgiu com as revoluções americana e francesa e o constitucionalismo, todos do século XVIII (STOURZH, 1988).

O que se costume denominar constitucionalismo, ou constitucionalismo moderno, é o movimento do século XVIII que transformou o conceito de constituição, entendido até então, pelo atual modelo de norma fundamental, na qual necessariamente deve conter: direitos humanos, separação de poderes, governo representativo, limitação dos poderes estatais, responsabilidade do estado e independência do poder judiciário (DIPPEL, 2005).

Associada à ideia de Constituição como norma fundamental prescritiva, constitutiva de um governo, está a de poder constituinte.

Ainda que desde a antiguidade houvesse uma diferenciação entre as leis que estruturavam a organização política e as demais, e que os órgãos do governo estavam subordinados àquelas, caracterizadas como leis fundamentais, segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1999) a ideia de um poder que estabelece a Constituição, distinto dos demais por ela estabelecidos, surge apenas durante o século XVIII, associada à ideia de constituição escrita.

Ao se estudar os significados de Constituição, constitucionalismo e poder constituinte, é inevitável tratar da tensão existente entre democracia e constituição.

Se a democracia, em sua teoria clássica, é entendida como o governo da maioria e esta se encontra limitada pelas regras estabelecidas no texto constitucional, tais como um procedimento especial rígido para a alteração de suas normas ou até mesmo a inalterabilidade de algumas delas, evidente que há um conflito entre o direito do povo de estabelecer suas próprias regras e os direitos e garantias mínimas asseguradas a todos os indivíduos pela Constituição.

Aos proferir seus votos na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 153, que tinha como objeto a Lei Federal nº 6.683/79 – Lei da Anistia, os Ministros Eros Grau e Gilmar Mendes defenderam o posicionamento de que a Emenda Constitucional nº 26, de 1985, inaugurou um novo ordenamento jurídico, constitucional, é norma-origem que deu início à ordem instaurada pela Constituição Federal de 1988 – CF/88, não permitindo o controle de constitucionalidade da anistia à luz desta.

Seria a referida emenda constitucional obra do poder constituinte? Ou do poder constituinte evolutivo?


2. Teoria do Poder Constituinte

2.1. Histórico

Já na antiguidade é possível encontrar autores que diferenciam as leis fundamentais, que estruturam a organização do governo e as demais leis, que são criadas pelos órgãos do governo, que se encontram limitados por aquelas. Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1999), essa ideia está presente na obra de Aristóteles e na própria prática política da época.

Concepção semelhante está presente na doutrina francesa das leis fundamentais do Reino, que trazia a concepção de que as normas relativas à estruturação política eram superiores às demais, ao monarca e aos órgãos do governo, de modo que os atos que com elas conflitem não teriam valor, eram nulas. Embora alguns legistas franceses ensinassem que tais leis eram imutáveis, houveram alguns que defendiam que, apesar de mutáveis, não poderiam ser modificadas pelo monarca, mas apenas por um processo especial, com a reunião dos Estados Gerais. Essas leis fundamentais eram consideradas consuetudinárias, não eram obra de um poder especial (FERREIRA FILHO). Não obstante, pode ser verificado que essa doutrina se aproxima bastante da teoria do poder constituinte.

Essa idéia incipiente de poder constituinte também esteve presente nas doutrinas pactista medieval e do contrato social (FERREIRA FILHO, 1999).

Na doutrina pactista mediavel, o governo tinha como fundamento o acordo tácito de vontades dos governados. O poder político era fundado na vontade dos homens.

Já nas doutrinas do contrato social, de Hobbes, Locke e Rousseau, tendo este último influenciado decisivamente Emmanuel Joseph Sieyés, o pacto, o acordo tácito de vontades dos homens, fundava a própria sociedade e, por conseguinte, com a renúncia de direitos pelos indivíduos, criava o governo, com a função de manter a paz social.

De acordo com Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1999, p. 6):

Para os pensadores medievais, em geral, a fonte da sociedade era a inclinação natural do homem, a sociabilidade natural, no que seguiam Aristóteles, que caracterizou o homem exatamente pela sua inclinação social.

Já os autores que difundiram a idéia do contrato social viam, nesse contrato, como o próprio nome sugere, a fonte da sociedade.

2.2. Teoria clássica – o pensamento de Sieyès

A teoria do poder constituinte, entendido como um poder superior aos demais, constituídos, e que estabelece a Constituição de um Estado, aparece pela primeira vez na obra intitulada Que é o terceiro Estado?, do abade Emmanuel Joseph Sieyès, inspirador da Revolução Francesa e parlamentar integrante da Assembléia Nacional Constituinte que elaborou a Constituição Francesa de 1791 (FERREIRA FILHO, 1999, p. 10-12).

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Segundo o abade Sieyès, todo Estado tem uma Constituição, que trata da organização política e que é estabelecida por um poder especial, constituinte, superior ao governo (aos poderes do Estado), que é constituído.

O Poder constituinte é inicial, pois dá inicio à uma nova ordem jurídica, através da Constituição, origem de todos os poderes constituídos; é incondicionado, pois não está sujeito a qualquer forma previamente fixada para se manifestar, não tem que seguir qualquer procedimento determinado para realizar a sua obra; e é ilimitado, no sentido de não estar subordinado ao direito positivo anterior, encontrando, contudo, limites no direitonNatural, nos valores da nação. De acordo com Sieyès (2001, p. 48/49):

É impossível criar um corpo para um determinado fim sem dar-lhe uma organização, formas e leis próprias para que preencha as funções as quais quisermos destiná-lo. Isso é que chamamos a constituição desse corpo. É evidente que não pode existir sem ela. E é também evidente que todo governo comissionado deve ter sua organização; e o que é verdade para o geral, o é também para todas as partes que o compõem. Assim, o corpo dos representantes, a que está confiado o poder legislativo ou o exercício da vontade comum, só existe na forma que a nação quis lhe dar. Ele não é nada sem suas formas constitutivas; não age, não se dirige e não comanda, a não ser por elas.

[…].

Entretanto, de acordo com que critérios, com que interesses se teria dado uma Constituição à própria nação. A nação existe antes de tudo. Ela é a origem de tudo. Sua vontade é sempre legal, é a própria lei. Antes dela e acima dela só existe o direito natural. Se quisermos ter uma ideia exata da série das leis positivas que só podem emanar de sua vontade, vemos, em primeira linha, as leis constitucionais que se dividem em duas partes: umas regulam a organização e as funções do corpo legislativo; as outras determinam a organização e as funções dos diferentes corpos ativos. Essas leis são chamadas de fundamentais, não no sentido de que possam tornar-se independentes da vontade nacional, mas porque os corpos que existem e agem por elas não podem tocá-las. Em cada parte, a Constituição não é obra do poder constituído, mas do poder constituinte. Nenhuma espécie de poder delegado pode mudar nada nas condições de sua delegação. É neste sentido que as leis constitucionais são fundamentais. […].

Vimos a Constituição nascer na segunda época. É claro que ela só é relativa ao Governo. Seria ridículo supor a nação ligada pelas formalidade ou pela Constituição a que ela sujeitou seus mandatários Se para tornar-se uma nação, a sua vontade tivesse que esperar uma maneira de ser positiva, nunca o teria sido. A nação se forma unicamente pelo direito natural. O governo, ao contrário, só se regula pelo direito positivo. A nação é tudo o que ela pode ser somente pelo que ela é. Não depende de sua vontade atribuir-se mais ou menos direitos que ela tem. Mesmo em sua primeira época, ela tem os direito naturais de uma nação. […]

É interessante notar que desde o início da doutrina do poder contituinte, seu idealizador, Sieyès, entendia que ele estaria sempre em “estado de permanência”, não havendo limites para sua manifestação, ou seja, vedações ao direito de mudança (2001, p. 50/51):

Seria possível dizer que uma nação pode, por um primeiro ato de sua vontade, não querer no futuro comprometer-se senão de uma maneira predeterminada? Primeiramente, uma nação não pode nem alienar, nem se proibir o direito de mudar; e, qualquer que seja a sua vontade, ela não poe cercear o direito de mudança assim que o interesse geral o exigir. Em segundo lugar: com quem se teria comprometido esta nação? Eu entendo que ela pode obrigar seus membros, seus mandatários, e tudo o que lhe pertence; mas será que ela pode impor deveres a só mesma? O que é um contrato consigo mesma? Sendo duas partes a mesma vontade, ela pode sempre desobrigar-se de tal compromisso.

[…].

[…]. Uma nação nunca sai do estado de natureza e, em meio a tantos perigos, todas as maneiras possíveis de expressar sua vontade nunca são demais, Repetindo: uma nação é independente de qualquer formalização positiva, basta que sua vontade apareça para que todo direito político cesse, como se estivesse diante da fonte e do mestre supremo de todo o direito positivo.

Essa compreensão certamente pode ser entendida como um prelúdio do estudo da tensão existente entre cláusulas pétreas e democracia, da teoria do poder constituinte evolutivo.

Corroborando referido entendimento, Manoel Gonçalves Ferreira Filho afirma que (1999, p. 17):

Por outro lado, se da doutrina redunda a supremacia da Constituição em relação aos poderes constituídos, dela não resulta que o constituinte de hoje passa opor obstáculos materiais – cláusulas “pétreas” - ao constituinte de amanhã. Sem dúvida, admite que haja a definição de procedimentos especiais, já que isto é indispensável para a supremacia da Constituição em relação aos referidos poderes constituídos, mas só isto.

Era ele suficientemente realista para saber – o que parecem ignorar certos juristas brasileiros contemporâneos – que a Assembléia Constituinte é formada por representantes do povo, que não recebem deste qualquer dom especial – mágico ou metafísico. Consequentemente, nada justifica que sua vontade prevaleça para o futuro, cristalizando instituições ou normas, limitando o poder das gerações posteriores e seus representantes “extraordinários”.

Partindo da teoria de Sieyès, mas avançando no tempo, com o seu desenvolvimento, cumpre ainda tecer alguns comentários acerca do titular e agente do poder constituinte e de suas diferenças para os poderes constituídos, denominados por alguns autores de poder constituinte derivado.

Titular é o “dono”, o possuidor do poder constituinte, tais como o Monarca e o povo. A história aponta para a sua multifacetada titularidade. Já o agente é a pessoa, a comissão, o corpo de agentes, o ente ao qual é confiado o exercício daquele poder por delegação de seu titular. É o caso das Assembléias Nacionais Constituintes, composta por representantes eleitos pelo povo para desempenhar a atividade de elaborar a Constituição.

Não se pode confundir titularidade com legimitidade. Titular é o “dono”, enquanto a legitimidade (BONAVIDES, 2002, p. 112):

[...] tem exigências mais delicadas, visto que levanta o problema de fundo, questionando acerca da justificação e dos valores do poder legal. A legitimidade é a legalidade acrescida de sua valoração. É o critério que se busca menos para compreender e aplicar do que para aceitar ou negar a adequação do poder às situações da vida social que ele é chamado a disciplinar.

No conceito de legitimidade entram as crenças de determinada época, que presidem a manifestação do consentimento e da obediência.

Concluindo, o poder constituinte é um poder de fato, pois é ele quem elabora a constituição, que dá início a uma nova ordem jurídica, fundando o Estado e todos os seus poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). É, portanto, ilimitado, pois não há normas jurídicas positivadas restringindo sua atuação. Já o poder constituído é um poder de direito, condicionado material e formalmente pelo ordenamento jurídico.

2.3. Constituição e democracia

Após discorrer sobre a imprecisão do termo, apontando definições dadas por diversos autores, Paulo Bonavides (2002, p. 267) prefere a “genial e profunda definição lincolniana de democracia: governo do povo, para o povo e pelo povo”.

No entanto, esse conceito também é impreciso, pois ainda é necessário definir o que é o governo do povo. Na prática, se resume ao governo da maioria, isto é, sempre que houver desacordo entre os cidadãos, a decisão democrática é aquela defendida pela maioria.

Considerando que o conceito atual de Constituição conclama por uma declaração de direitos humanos que deve ser assegurada pelo Poder Judiciário contra a atuação do próprio Estado, ainda que derivada de uma decisão democrática, tal como a lei, haja vista a supremacia das normas constitucionais, fica evidente o conflito existente entre a constituição/constitucionalismo e a democracia, em seu conceito clássico.

Ocorre que, hodiernamente, a democracia não pode mais ser entendida apenas como governo da maioria. É necessária a salvaguarda de direitos/princípios básicos, mínimos, que estariam assegurados em face de qualquer decisão democrática. Caso contrário, a própria democracia estará ameaçada. Se não há, por exemplo, direito à igualdade e à liberdade, como uma decisão poderá ser qualificada de democrática se nem todos os do povo tiveram a oportunidade de participar da deliberação?

Nesse sentido, constituição/constitucionalismo e democracia se complementam. Não há tensão, e sim convergência.

Nesse sentido é o conceito de democracia como co-empreendimento governamental defendido por Dworkin (2001, 158/160):

[…]. Mas se considerarmos a democracia apenas como o governo da maioria, sem incluir em nossa definição qualquer alusão aos direitos humanos, torna-se impossível justificar ou mesmo explicar a afirmação de que a democracia estabelece o governo de seus cidadãos, na medida em que nada na ideia de poder legislativo ou político de uma maioria significa que um indivíduo governe o que quer que seja. Se considerarmos nossa ação individual, com um direito de voto para todas as questões na cena política, esta ideia só se justifica pela posse de um direito de veto, de que naturalmente ninguém dispõe na democracia.

A única maneira de explicar a afirmação de que a democracia dá ao cidadão o poder de governar é abandonar a ideia de que a existência de leis e políticas defendidas pela maioria dos cidadãos individualmente basta para garantir a democracia. É preciso encontrar um outro meio de compreender a idéia fundamental de que a democracia é o governo do “povo”. É preciso considerar o“povo” não como um simples conjunto de indivíduos agindo mais ou menos independentemente uns dos outros, mas como homens agindo em conjunto, como no contexto de uma associação, de uma equipe ou de qualquer outro tipo de parceria. É preciso considerar o conjunto de cidadãos de uma democracia como, por exemplo, uma orquestra tocando uma sinfonia ou um time de futebol durante uma partida. […].

Se pensarmos na democracia nesses termos, diremos que ela é a forma de governo na qual os cidadãos agem como parceiros de um co-empreendimento governamental – mesmo quando protestam ou votam contra os representntes que ganham ou a política estabelecida. [...].

2.4. Poder Constituinte Evolutivo, democracia e constitucionalismo

A doutrina costuma denominar de poder constituinte evolutivo o poder de reformar a Constituição nos pontos em que o constituinte gravou com a cláusula de inalterabilidade (cláusulas pétreas).

O fundamento para os defensores dessa concepção é a permanente tensão entre Constituição e democracia. Não se pode obrigar as gerações futuras a respeitarem aquilo que, em um dado momento histórico, o constituinte entendeu inalterável. O princípio democrático estaria sendo violado.

A solução, segundo esses doutrinadores, é dar às cláusulas pétreas uma espécie de interpretação branda, realizando uma revisão de dupla face ou de dois tempos, isto é, primeiro as próprias normas de reforma da Constituição são alteradas, para, em um segundo momento, realizar a reforma de acordo com as novas regras.

Haveria uma espécie de ruptura material da Constituição, sem uma ruptura formal.

Em alguns países, como Portugal, o poder constituinte evolutivo já se manifestou, com a preocupação da Constituição acompanhar o tempo, as mudanças da sociedade, sob pena de perder sua força normativa. Este é, inclusive, o pensamento atual de um dos maiores expoentes do constitucionalismo português, Vital Moreira (2001, p. 273/274):

Um outro traço contraditório era a rigidez constitucional excessiva da Constituição Portuguesa. Na verdade, a nossa Constituição incluía um vasto elenco de limite materiais de revisão, que não se limitavam aos princípios fundamentais – como, aí, mais inteligentemente, a Constituição brasileiro optou – antes respeitavam também às bases da Constituição Econômica, e que restringiam grandemente o âmbito e o sentido possível de qualquer revisão constitucional. Porém, quatro revisões depois, tem de constatar-se que a Constituição Portuguesa mudou muito, e mudou em termos substanciais, mesmo em aspectos inicialmente vedados à liberdade da revisão. Como foi isso possível? Foi possível, por um lado, através de uma uma interpretação soft das cláusulas pétreas, que as reduziu à salvaguarda de princípios genéricos, mais do que à garantia do concreto regime estabelecido nas formulações constitucionais. Por outro lado, porque se admitiu, como já vos anunciei, a revisão dos próprios limites materiais de revisão, tendo sido eliminados ou modificados – para não dizer suavizados – na revisão de 1989 alguns dos limites originários, libertando, desse modo, para futuras revisões, matérias que de outro modo não poderiam ser revistas.

Embora sendo tudo menos pacífico, este expediente permitiu flexibilizar aspectos da Constituição que sua rigidez inicial tornava pouco confortáveis, sob o ponto de vista da adaptação constitucional à evolução da realidade constitucional. […].

O que está aqui em causa, e que a meu ver tem perpassado todos os nossos três dias de debate, é saber se hoje, perante as Constituições conjunturais que o último quartel do século trouxe – a primeira das quais foi exatamente a Constituição da República Portuguesa – a ideia do poder constituinte como ato unigênito da Constituição pode enfrentar a prova da vida constitucional, e se a essa versão do poder constituinte unigênito e unimomentâneo, não temos de admitir algum espaço para o poder constituinte transgeracional.

A teoria do poder constituinte evolutivo pode ser aplicada não só às cláusulas pétreas, mas também aos chamados limites implícitos, tais como o próprio procedimento de reforma constitucional (quórum de aprovação, por exemplo). Esta hipótese, inclusive, já ocorreu no Brasil, com a Emenda Constitucional nº 8, de 1977, que modificou o artigo 48, da Constituição Federal de 1967 (redação dada pela Emenda Constitucional nº 1, de 1969), alterando o quórum de aprovação de emenda ao texto constitucional de maioria de dois terços dos membros em cada casa do Congresso Nacional para maioria absoluta (FERREIRA FILHO, 1999).

Não é qualquer alteração da realidade fática, dos valores sociais ou da preservação do princípio democrático que poderá ser levantada a questão do poder constituinte evolutivo. Este será necessário apenas quando a modificação for de encontro ao texto expresso da Constituição, pois, caso contrário, bastará a mutação constitucional.

O poder constituinte evolutivo, em nosso entendimento, não passa de uma manifestação restrita do constituinte originário, que se encontra sempre em estado de permanência.

O problema reside na chamada revisão de dupla face, geralmente realizada pelo próprio Poder Legislativo, constituído. Aqui caberia, mais uma vez, relembrar os ensinamentos de Sieyès, para quem (2001, p. 58):

[…]. Eu não gostaria que esses representantes tivessem, além disso, poderes para se reunir, em seguida, em assembléia ordinária, de acordo com a Constituição que eles próprios fixassem com qualificação extraordinária.

Eu penso que, em vez de trabalhar unicamente pelo interesse nacional, eles dariam mais atenção ao interesse do próprio corpo que iriam formar. Em política, a confusão dos poderes sempre torna impossível o estabelecimento da ordem social sobre a terra. Quando se quiser separar o que deve ser diferente se conseguirá resolver o grande problema de uma sociedade humana organizada para a vantagem geral dos que a compõem.

O poder constituinte evolutivo deve, portanto, se manifestar através de uma micro Assembléia Nacional Constituinte, eleita exclusivamente para realizar a revisão necessária e restrita no texto constitucional.

Não procede a alegação de alguns autores que a eliminação das cláusulas pétreas resultaria na perda da rigidez da Constituição. Esta característica reside no procedimento especial para a sua modificação e não na imposição de normas imutáveis. Assim o é desde a teoria do poder constituinte formulada por Sieyès.

Mais prejudicial seria uma nova manifestação do poder constituinte, com a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte, pois aí todos os valores (direitos e garantias) estariam, em tese, em jogo.

Sobre o autor
Ismael Evangelista Benevides Moraes

Procurador Federal. Especialista em Direito Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Ismael Evangelista Benevides. Emenda Constituicional nº 26/1985, à Constituição Federal de 1967: manifestação do Poder Constituinte ou Evolutivo?: Uma análise a partir dos votos dos Ministros Eros Grau e Gilmar Mendes no julgamento da ADPF nº 153. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3665, 14 jul. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24932. Acesso em: 22 nov. 2024.

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