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Eficácia normativa dos tratados internacionais de direitos humanos.

Caso Julia Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) na CIDH e ADPF 153 (Lei da Anistia Brasileira) no STF

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Agenda 21/11/2013 às 15:46

Trata da eficácia normativa dos tratados internacionais de Direitos Humanos levando em conta a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso “Julia Gomes Lund e outros” em contraposição à decisão proferida pelo STF no julgamento da ADPF 153.

Resumo: Este trabalho trata, em linhas gerais, da eficácia normativa dos tratados internacionais de Direitos Humanos levando em conta a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no caso “Julia Gomes Lund e outros” (Guerrilha do Araguaia) em contraposição à decisão proferida pelo STF no julgamento da ADPF 153 acerca da Lei de Anistia Brasileira. Tendo como objetivo contribuir no esclarecimento do, ainda pouco difundido e conhecido em nossa doutrina, “Controle de Convencionalidade”, este artigo conta com um método dialético de abordagem utilizando-se dos procedimentos histórico e comparativo através de técnicas bibliográficas, documentais, informatizadas e audiovisuais de pesquisa. O assunto é de vital importância pois, além de influenciar de forma direta a criação de leis nacionais, tem (ou deveria ter) o condão de orientar julgamentos nas várias instâncias judiciais através, inclusive, de novos paradigmas de controle da produção legislativa pátria através do chamado duplo controle vertical.

Palavras-chave: Direitos Humanos, Tratados Internacionais, Eficácia Normativa, Controle de Convencionalidade.


1. INTRODUÇÃO

O mundo vive atualmente uma situação irreversível de globalização das relações econômicas, políticas e sociais que, evidentemente, devem ter um marco legal. Tal marco é originado pela adoção de normas definidas em convenções e tratados internacionais que passam a vigorar nos Estados Nacionais com força de Lei e muitas vezes com o status supralegal e até mesmo, em certos casos, constitucional1. Em outras palavras, os Estados nacionais abrem mão de parte de sua soberania em prol do seu desenvolvimento junto às demais nações seja no âmbito regional (blocos como o Mercosul e a Comunidade Européia, por exemplo), seja no âmbito mundial sob a tutela da Organização das Nações Unidas, como explicam Gomes e Mazzuoli (2010.1) ao afirmarem que “Todo país, ao firmar um tratado internacional, perde sua soberania externa (consoante lição do jurista italiano Luigi Ferrajoli). O conceito de soberania está se evaporando”.

No que diz respeito aos Direitos Humanos no âmbito regional circunscrito às Américas, foram criadas, em 1969, à partir da Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, tanto a Comissão quanto a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Tal convenção foi ratificada sem reservas pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, admitindo, portanto, a sua jurisdição sobre o aparato estatal brasileiro, como muito bem leciona Comparato ao escrever:

A partir da segunda metade do século XX, criou-se um sistema supra-estatal de proteção dos direitos humanos, consubstanciado em tribunais internacionais. A Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, por exemplo, instituiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos, com competência para julgar quaisquer casos de violação das suas disposições. O Brasil aderiu formalmente àquela Convenção e acha-se, por conseguinte, submetido à jurisdição da citada Corte. (COMPARATO, 2010)

Neste ponto, mais uma vez pode-se recorrer à lição de Gomes e Mazzuoli ao expressarem que:

As decisões da Corte Interamericana vinculam sim o país, vinculam obviamente o Brasil. Se a Justiça brasileira faz parte do Estado, ela também está obrigada a respeitar tais decisões. Também ela está vinculada, sob pena de novas violações à Convenção Americana. Uma nova cultura jurídica já se formou, mas muita gente ainda não se atinou para isso. (GOMES; MAZZUOLI, 2010.1)

Assim, foi realizado nos dias 28 e 29 de abril de 2010, pelo Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal – STF – o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF – nº 153 proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, objetivando, segundo as palavras do Ministro-Relator, Eros Grau (STF, 2010): “a declaração de não-recebimento pela Constituição do Brasil de 1988, do disposto no §1º do artigo 1º da Lei n. 6.683, de 19 de dezembro de 1979”, tendo, por resultado, sido julgada improcedente nos termos do voto do relator.

Ocorre que no dia 24 de novembro do mesmo ano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH – proferiu sentença da ação referente ao “caso Gomes Lund e outros” proposta por familiares de desaparecidos da Guerrilha do Araguaia contra o Estado Brasileiro na qual declara que:

As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.

[…]

O Estado descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, contida em seu artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo instrumento, como consequência da interpretação e aplicação que foi dada à Lei de Anistia a respeito de graves violações de direitos humanos. Da mesma maneira, o Estado é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação aos artigos 1.1 e 2 desse instrumento, pela falta de investigação dos fatos do presente caso, bem como pela falta de julgamento e sanção dos responsáveis, em prejuízo dos familiares das pessoas desaparecidas e da pessoa executada, indicados nos parágrafos 180 e 181 da presente Sentença, nos termos dos parágrafos 137 a 182 da mesma.

[…]

E DISPÕE,

por unanimidade, que:

[…]

O Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 256 e 257 da presente Sentença. (CIDH, 2010)

Tal sentença provocou as mais diversas reações que foram da declaração de renomados doutrinadores de que a sentença da CIDH invalidara a Lei de Anistia, antes confirmada pelo STF, até a do Presidente do Supremo, Ministro Cesar Peluso, de que “a decisão da Corte não obriga o Supremo a rever o seu julgamento” (NASSIF, 2010). Assim, está posta a controvérsia.


2. APRESENTAÇÃO DAS CONTROVÉRSIAS

2.1. O JULGAMENTO DA ADPF 153 PELO STF

Protocolada e distribuída junto à Secretaria do Supremo Tribunal Federal no dia 21 de outubro de 2008, tendo como relator o então Ministro Eros Grau, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) de número 153 suscitada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil questionava o alcance do artigo 1º, §1º da Lei 6.683/79, conhecida como Lei de Anistia Política Brasileira, na qual defende que, para que esta seja interpretada de acordo os preceitos e princípios da Constituição Federal de 1988, ela não pode alcançar os agentes que cometeram crimes comuns contra opositores do sistema (FONTOURA, 2009).

Permeada por intensas e calourosas discussões não apenas nos meios jurídicos, mas também no político e no social, a ação contou, com as entidades Associação Juízes para a Democracia (AJD), Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), Associação Brasileira de Anistiados Políticos (ABAP) e Associação Democrática e Nacionalista de Militares (ADNAM) na qualidade de Amicus Curiae. O Conselho Federal da OAB, no entanto, apesar da relevância da matéria, teve o seu pedido para a realização de audiência pública indeferido sob o argumento de que

Em 08/04/2010 no PG nº 4781/2010: O arguente, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil - CFOAB, requer, em petição encaminhada a este Tribunal por meio eletrônico, a realização de audiência pública. 2. Diz que a relevância da matéria de que tratam estes autos demandaria o debate e a oitiva de "especialistas de renome internacional". A ação foi proposta em outubro de 2008. Apenas agora alega essa circunstância. 3. Os argumentos aportados aos autos pelo arguente não demonstram suficientemente a necessidade de realização da audiência pública ora requerida, que se prestaria unicamente a retardar o exame da questão arguida. Nada mais. 4. Os autos estão instruídos de modo bastante, permitindo o perfeito entendimento da questão debatida nesta arguição de descumprimento de preceito fundamental. O pedido suscitado longo tempo após sua propositura redundaria em inútil demora no julgamento do feito (STF, 2010).

Finalmente, então, após um ano e meio de trâmite processual, chegara o dia em que o Supremo Tribunal Federal haveria de dar a sua palavra final sobre a questão com o seu julgamento. A sessão teve início no dia 28 de abril de 2010 com a leitura do relatório produzido pelo Ministro Eros Grau, seguido, então, pelas defesas orais que tiveram início pelo Dr. Fábio Konder Comparato em nome do Conselho Federal da OAB, seguido pelo Dr. Pierpaolo Cruz Bottini pela Associação Juízes para a Democracia – AJD; Dra. Helena de Souza Rocha pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional – CEJIL; Dra. Vera Karam de Chueiri pela Associação Democrática e Nacionalista de Militares que se pronunciaram pela procedência do pedido formulado na inicial. Logo depois foi a vez das defesas orais pela improcedência do pedido que se iniciaram com a palavra do Advogado Geral da União, Dr. Luís Inácio Lucena Adams; pela Dra. Gabrielle Tatith Pereira em nome do Congresso Nacional e, por fim, pelo Procurador Geral da República, Dr. Roberto Gurgel, logo após o que foi feita a leitura do voto proferido pelo Ministro-relator no qual, enfim, julgava improcende a ação utilizando-se para tanto, nas palavras de Fábio Konder Comparato (2010), da “noção germânica de ‘lei-provimento’ (Massnahmegesetz), pretextando que a anistia teria surtido efeitos imediatos e irreversíveis”, bem como sustentado “que a demanda não objetivava uma interpretação da Lei nº 6.683, mas sim a sua revisão; o que só o Poder Legislativo tem competência para fazer”. Proferido o voto do relator, foram destacadas e votadas, a pedido do Ministro Marco Aurélio Mello, as preliminares que suscitavam a extinção do processo, sem o julgamento do mérito, por falta de interesse processual, mas que foram rejeitadas pela maioria do plenário, sendo, logo em seguida, suspensa a sessão para ser retomada no dia seguinte.

Retomada a sessão no dia seguinte, foram, então, proferidos os votos dos ministros, os quais acabaram por julgar por maioria improcedente a ação, conforme registrado no acórdão:

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Decisão: Prosseguindo no julgamento, o Tribunal, por maioria, julgou improcedente a argüição, nos termos do voto do Relator, vencidos os Senhores Ministros Ricardo Lewandowski, que lhe dava parcial provimento nos termos de seu voto, e Ayres Britto, que a julgava parcialmente procedente para excluir da anistia os crimes previstos no artigo 5º, inciso XLIII, da Constituição. Votou o Presidente, Ministro Cezar Peluso. Ausentes o Senhor Ministro Joaquim Barbosa, licenciado, e o Senhor Ministro Dias Toffoli, impedido na ADPF nº 153-DF. Plenário, 29.04.2010 (STF, 2010). (grifos do original).

A reação ao resultado do julgamento foi imediato. Vários foram os artigos publicados com a análise dos mais diversos pontos de vista feitos a partir da argumentação apresentada por aqueles que proferiram seus votos. Parece claro que parte significativa da doutrina considerava e considera que os crimes praticados pelos agentes públicos durante o regime de excepção e considerados pela Lei 6.683/79 como “crimes políticos” não deveriam ser alcançados pela Lei de Anistia. Neste sentido, manifestou-se Marcelo Semer ao afirmar:

O que a ADPF da OAB pretendeu não era anular a lei da anistia (a OAB de hoje contra a OAB de ontem, acusou Eros Grau): tratava-se de firmar a interpretação de que as torturas praticadas pelos agentes da repressão, emanadas pelo Estado, não eram crimes conexos aos políticos e, por conseguinte, não estão abrangidas pela anistia. Entender o contrário, significaria legitimar uma auto-anistia do estado torturador – que viola os mais comezinhos princípios do direito internacional dos direitos humanos.

[…]

Mas, findo o julgamento, é questão de se perguntar: quem tripudiou sobre aqueles que com desassombro e coragem lutaram pela redemocratização? Quem exercita com o chapéu alheio nosso lado cordial, admite o silêncio como preço pela liberdade de hoje, alimenta o esquecimento como única forma de dar um passo adiante?

Fechando os olhos aos abusos de ontem, como se justificássemos os de hoje, sob o pretexto do esquecimento, do amor e da paixão, do mal necessário (que, enfim, supõe-se, muitos no fundo acreditem, seja contra subversivos seja contra criminosos), o Estado ensina a seus agentes que cordial mesmo é o povo que apanha, não reclama e depois esquece. Paga o seu preço (SEMER, 2010).

Em matéria exibida na Revista Isto é, em dezembro de 2010, uma interessante linha de questionamento é traçada, segundo a qual:

O entendimento […] defendido pelo historiador Roberto Ribeiro Martins no livro ‘Anistia Ontem e Hoje’: ‘ Como Pode Ser Anistiado Alguém Que Não Foi condenado?’. Pela linha de raciocínio de Martins aplicar a anistia a quem não foi punido seria um grave erro jurídico. Essa também é a opinião da advogada do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) Beatriz Affonso, que representou as famílias de vítimas do Araguaia que entraram com a ação na OEA. Segundo ela a prática dos torturadores foi incluída apenas em um apêndice da lei que se refere aos ‘crimes conexos’, enquanto os combtentes da ditadura tiveram acusações formais, anuladas pela Lei da Anistia. (Revista Isto É, 15 dez. 2010)

Este é também o entendimento do Presidente da OAB/ RJ que, ao ser questionado ainda para a mesma matéria da Revista Isto É, comenta:

O STF ‘nem sequer teria condições de incluir no acórdão as pessoas que praticaram os crimes de tortura’, comenta o presidenta da OAB-RJ, Wadih Damons. ‘Como pode anistiá-las se não sabe quem são’? (Revista Isto É, 15 dez. 2010).

Outro argumento apresentado em contraposição ao resultado alcançado, foi aquele referente aos Direitos Humanos, segundo o qual a Lei de Anistia Política brasileira não teria validade por confrontar dispositivos de tratados internacionais ao qual o Brasil seja signatário, notadamente o Pacto de San José da Costa Rica, bem como robusta jurisprudência já fixada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Este foi o ensinamento trazido por Luiz Flávio Gomes e Valério de Oliveira Mazzuoli ao lecionarem que:

A Lei de Anistia brasileira, embora recebida pela Constituição de 1988, é inconvencional (por violar as convenções de direitos humanos ratificadas pelo Brasil) e inválida (por contrariar frontalmente o jus cogens internacional). Nem tudo o que foi recebido pela Constituição de 1988 é compatível com os tratados em vigor no Brasil e detém validade (GOMES; MAZZUOLI, 2010.1).

Neste sentido também, corrobora Comparato:

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em reiteradas decisões, já fixou jurisprudência no sentido da nulidade absoluta das leis de auto-anistia. Será preciso lembrar, nesta altura da evolução jurídica, que em um Estado de Direito os governantes não podem isentar-se, a si próprios e a seus colaboradores, de responsabilidade alguma por delitos que tenham praticado?

Pois bem, diante da invocação desse princípio irrefutável, o Ministro relator e outro Ministro que o acompanhou afirmaram que a Lei nº 6.683, de 1979, não se inclui nessa proibição categórica, pois ela teria configurado uma anistia bilateral de governantes e governados. Ou seja, segundo essa preciosa interpretação, torturadores e torturados, em uma espécie de contrato de intercâmbio (do ut des), teriam resolvido anistiar-se reciprocamente…

Na verdade, essas surpreendentes declarações de voto casaram-se com a principal razão apresentada, não só pelo grupo vencedor, mas também pela Procuradoria-Geral da República, para considerar legítima e honesta a anistia de assassinos, torturadores e estupradores de oponentes políticos durante o regime militar: ela teria sido fruto de um “histórico” acordo político (COMPARATO, 2010).

Este, aliás, parece ser o ponto crucial a ser atacado pelos que criticaram e criticam tal postura adotada pelo STF que, conforme ser verá mais à frente, afirma não estar sujeita às decisões da CIDH por tais deciões não terem efeito vinculante às suas.

Pouco tempo depois, no dia 24 de novembro daquele mesmo ano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos faria o seu julgamento do caso Gomes Lund contra o Brasil, conhecido como “Caso Guerrilha do Araguaia”, no qual condenava o Brasil a diversas medidas de reparação, dentre as quais, inclusive, referentes à Lei de Anistia Brasileira, conforme demonstra Machado:

Em 24 novembro de 2010, no caso da Guerrilha do Araguaia ou caso Gomes Lund e outros versus Brasil, a Corte da OEA determinou ao Estado brasileiro que investigasse e processasse os crimes graves contra a humanidade cometidos durante a ditadura militar por agentes de estado, não podendo a Lei de Anistia, 6.683 de 1979, ser um óbice para tanto. Ademais, em suas fundamentações a Corte exaltou a importância de se criar uma Comissão da Verdade com o fim de prevenção, para que os atos contra a humanidade não sejam mais novamente perpetrados (uma das facetas da Justiça de Transição). (MACHADO, 2011)

Em sequência coerente com o tema deste trabalho, aliás, tal decisão será alvo de breve estudo no próximo tópico deste trabalho. Passemos, então, a uma breve síntese deste julgamento.

2.2. O JULGAMENTO DO CASO “JULIA GOMES LUND E OUTROS” (CASO “GUERRILHA DO ARAGUAIA”) PELA CIDH

Passados, portanto, quase sete meses da decisão do STF pela improcedência da ADPF 153 proposta pelo Conselho Federal da OAB, foi a vez da Corte Interamericana de Direitos Humanos julgar o caso Gomes Lund e outros versus Brasil. O caso dizia respeito às vítimas desaparecidas da Guerrilha do Araguaia, um foco de resistência ao regime militar patrocinado pelo Partido Comunista do Brasil (PcdoB) na região no Sul do Pará entre os anos de 1972 e 1974, próximo a região de Xambioá, às margens do rio Araguaia. À época o governo brasileiro enviou para a região um forte aparato militar com o intuito de sufocar de vez o foco guerrilheiro fazendo-o eficazmente de forma a não serem feitos prisioneiros. Até hoje o paradeiro destes cerca de setenta guerrilheiros é oficialmente desconhecido, embora há muito já se tenha divulgado na imprensa matérias a respeito, inclusive com entrevistas de militares de então que admitiram, de forma clara e objetiva, o massacre ocorrido em seus mais sórdidos detalhes2. O Estado brasileiro, porém, jamais prestou qualquer esclarecimento sobre tais fatos3. Foi neste contexto que, em março de 2009, o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) – que também participou do julgamento da ADPF 153 como Amicus Curiae – apresentou petição junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos que, posteriormente, remeteu o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

Embora apenas a sentença da CIDH em si já forneça farto material para um rico estudo sobre a questão das leis de anistia frente àquele órgão, é imperiosa a delimitação para os parâmetros estabelecidos para esta pesquisa. A sentença está dividida em doze capítulos os quais, além de relatar os pedidos e as contra-razões de cada uma das partes, detalha os mandamentos por ela trazidos, sintetizados nos chamados “pontos resolutivos” em decisões, declarações e disposições.

Neste sentido, a sentença traz, em seu capítulo XI, B (capítulo das “Reparações”: Obrigações de investigar os fatos, julgar e, se for o caso, punir os responsáveis, e determinar o paradeiro das vítimas), várias medidas reparatórias a serem efetuadas pelo Estado brasileiro, divididas em dois tópicos, quais sejam: 1. Obrigações de investigar os fatos, julgar e, se for o caso, punir os responsáveis e 2. determinação do paradeiro das vítimas. Assim, a sentença determina expressamente que o Estado brasileiro “deve adotar todas as medidas que sejam necessárias para assegurar que a Lei de Anistia e as leis de sigilo não continuem a representar um obstáculo para a persecução penal contra graves violações de direitos humanos” além de remover todo e qualquer obstáculo de fato ou de direito que assegurem a impunidade oficial propiciada pelo Estado. Sobre este aspecto, aliás, a Corte é bastante enfática, deixando clara a obrigação do Estado brasileiro com relação à responsabilização penal de todos os autores materiais e intelectuais das violações de Direitos Humanos sendo, portanto, vedada a aplicação da Lei de Anistia “bem como nenhuma outra disposição análoga, prescrição, irretroatividade da lei penal, coisa julgada, ne bis in idem ou qualquer excludente similar de responsabilidade para eximir-se dessa obrigação” devendo, inclusive, tais causas serem examinadas e julgadas na jurisdição ordinária e não no foro militar para que seja evitada qualquer hipótese de favorecimento corporativo por parte de setores das Forças Armadas a favor de seus próprios membros (CIDH, 2010 – grifo nosso).

Mas isso não foi tudo, a sentença traz, ainda, mais adiante, os pontos resolutivos que são divididos em decisões, declarações e resoluções e que em seus apontamentos mais importantes indicam que, por unanimidade, a CIDH decidiu admitir parcialmente a exceção preliminar de falta de competência temporal interposta pelo Estado brasileiro e rejeitar, contudo, todas as demais; declarou que a Lei de Anistia brasileira é incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos e que, portanto, devem ser consideradas inválidas e que, por conta do resultado do julgamento da ADPF 153 “o Estado descumpriu a sua obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos”; e, por fim, dispôs que o Brasil deve levar a julgamento, pela justiça penal ordinária, os responsáveis pelas violações dos Direitos Humanos, “determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja” (CIDH, 2010).

A decisão da CIDH, assim como a do STF com relação à ADPF 153, resultou numa grande variedade de artigos jurídicos acerca, desta vez, de sua aplicabilidade no direito brasileiro trazendo à tona a discussão sobre um tema já existente, porém pouco difundido na doutrina jurídica, qual seja o chamado controle de convencionalidade e, como consequência, sendo proposta a suspenção da decisão do STF.

Este é o entendimento apresentado, por exemplo, por Gomes e Mazzuoli que analisam a sentença proferida pela CIDH lecionando que:

As disposições da lei de anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos “são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil (GOMES; MAZZUOLI, 2010.3)

Aprofundando-se ainda mais na polêmica, os meios de comunicação puseram-se a questionar a validade da decisão proferida pelo Supremo, como na reportagem exibida na Revista Isto é que assim iniciava a sua matéria:

Quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em abril, que a Lei de Anistia valia não só para os que lutaram contra a ditadura, mas também para os agentes do governo responsáveis por torturas e outros crimes durante o regime militar, o polêmico tema pareceu encerrado. Por intervenção de um tribunal internacional, no entanto, o julgamento da principal Corte do Brasil pode não ter sido a pá de cal sobre o assunto. (Revista Isto É, dez. 2010)

Outros veículos, no entanto, defendiam ponto de vista diverso. Sobre um destes manifestaram-se Gomes e Mazzuoli com a seguinte opinião:

Estarrecedora a quantidade de equívocos jurídicos sobre a condenação do Brasil pela Corte Interamericana (sentença de 24.11.10). Editorial do jornal O Estado de S. Paulo (18.12.10, p. A3), por exemplo, afirmou que a condenação do caso Araguaia seria a terceira da Corte contra o Brasil. Nada mais equivocado!

[…]

O Editorial afirma ainda o seguinte: "Por mais que causem constrangimentos políticos, as condenações da Corte não acarretam sanções jurídicas.

Do ponto de vista jurídico afirmações como essas são inaceitáveis. Seria o mesmo que afirmar que uma condenação (de um criminoso internacional de nacionalidade brasileira) proveniente do Tribunal Penal Internacional não pudesse ser aplicável pelo fato de o agente ter sido eventualmente "absolvido" pela Justiça brasileira. (GOMES; MAZZUOLI, 2010.1)

Questionado sobre a possibilidade da revisão da decisão de sua decisão questão da ADPF 153 por conta daquela proferida pela CIDH, o Supremo Tribunal Federal imediatamente se manifestou através de seus Ministros no sentido de expurgar tal idéia. A doutrina, no entanto, pesadamente tem se manifestado de forma diversa, conforme se verá a seguir.

2.3. POSIÇÕES DIVERGENTES QUANTO À APLICABILIDADE DA DECISÃO DA CIDH SOBRE A DO STF

Como dito anteriormente, a decisão proferida pela CIDH causou um grande impacto que resultou num aprofundado debate doutrinário sobre a aplicabilidade de sua decisão, o que na prática poderia significar a suspensão da decisão do STF na ADPF 153. Os ministros do Supremo Tribunal Federal saíram em defesa da sentença por eles determinada um dia depois de divulgada a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (RECONDO, Agência Estado, 15/12/2010). A começar pelo próprio Presidente, Cesar Peluso, que afirmou categoricamente que a decisão da CIDH “não revoga, não anula, não caça a decisão do Supremo"(RECONDO, Agência Estado, 15/12/2010). Segundo o entendimento do Presidente do STF, a CIDH não possui competência para revisar as decisões tomadas soberanamente pelos sistemas judiciários dos seus Estados-Membros, sendo sua decisões de caráter mais político que jurisdicional (FERREIRA, Agência Estado, 28/12/2010).

Gomes e Mazzuoli, dois dos principais defensores da tese em sentido contrário, no entanto, defendem o entendimento de que

O direito na era da pós-modernidade mudou completamente sua fisionomia. Toda lei, agora, está sujeita a dois tipos de controle (vertical): de constitucionalidade e de convencionalidade. O STF fez o primeiro controle (e validou a lei). A CIDH celebrou o segundo (e declarou inválida referida lei de anistia). Os juízes brasileiros precisam se atualizar e admitir que, agora, já não basta um só controle. E na medida em que a jurisprudência desses juízes não segue a jurisprudência da Corte, ela pode ser questionada (e eventualmente invalidada, de forma indireta, visto que a Corte só pode condenar o país, o Brasil) (GOMES; MAZZUOLI, 2010.4).

De acordo com estes autores, a existência dos Sistemas Regionais de defesa dos Direitos Humanos, como é o caso da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos sediadas em Washington e na Costa Rica, respectivamente, os colocam, sim, acima dos sistema jurídicos nacionais, fazendo com que o STF hoje já não represente mais a última instância quanto à matéria (GOMES; MAZZUOLI, 2010.3).

Além do Presidente Peluso, também o Ministro Marco Aurélio Mello defendeu a decisão do STF afirmando que “o governo brasileiro está submetido às instituições pátrias e às decisões do Supremo” (RECONDO, Agência Estado, 15/12/2010). Segundo o entendimento defendido pelo Ministro Marco Aurélio Mello, o Direito pátrio sobrepõe-se ao internacional, não podendo menosprezar a Constituição Federal em detrimento da Convenção e que a decisão da CIDH “não tem concretude como título judicial. Na prática, o efeito será nenhum, é apenas uma sinalização” (RECONDO, Agência Estado, 15/12/2010).

A tese da decisão política sem qualquer efeito prático, aliás, foi também a seguida pelo então Ministro da Defesa, Nelson Jobim, para quem não há qualquer possibilidade de punição para os torturadores no Brasil. Segundo Jobim, “O assunto não pode voltar ao Supremo, pois a Corte está sujeita a suas próprias decisões. As decisões de constitucionalidade têm efeito contra todos, inclusive eles [os ministros]”, além do fato de a anistia ser resultado da negociação de um acordo entre governo e sociedade, o que lhe assegura uma ampla vigência para ambos os lados. (CONJUR, 15/12/2010)

Contrapondo-se a esta perspectiva, contudo, vem, mais uma vez, Gomes e Mazzuoli afirmando que

O Brasil sequer pode cogitar da possibilidade de não cumprir as decisões da CIDH. Poderia sofrer sanções internacionais e ser excluído da OEA. O não cumprimento pelo Estado brasileiro da sentença da Corte Interamericana acarreta nova responsabilidade internacional ao país, a ensejar nova ação internacional na mesma Corte e nova condenação, e assim por diante. A posição do Ministro Nelson Jobim no sentido de que o Brasil poderia deixar de cumprir as decisões da CIDH é totalmente equivocada. O STF nada mais pode fazer. As decisões da Corte devem ser cumpridas pelo Brasil necessariamente. (GOMES; MAZZUOLI, 2010.3)

No tocante ao que o então Ministro se refere ao “acordo” havido, Marcio Sotelo Fellipe é enfático ao dizer que “O ponto final deve ser sempre a dignidade humana. Nunca houve aquele “acordo”. E se acordo houvesse, seria nulo diante da cláusula pétrea da dignidade humana a partir de 5 de outubro de 1988.” (FELLIPE, 2010)

O último a sair em defesa da defesa do STF foi o Ministro Carlos Ayres Britto, um dos dois únicos a votar pela procedência da ADPF 153, para o qual, apesar de prevalecer a decisão do STF, "Isso é uma saia justa, um constrangimento para o País criado pelo poder que é o menos sujeito a esse tipo de vulnerabilidade (o Judiciário)" (RECONDO, Agência Estado, 15/12/2010).

Por fim, argumentam os favoráveis à decisão da CIDH que o Brasil está vinculadoa esta por conta dos termos da Convenção Interamericana de Direitos Humanos afirmando que

[…] o Brasil não pode se furtar ao cumprimento da sentença internacional. O artigo 2º da Convenção Americana preleciona ser dever do Estado-parte adotar disposições de direito interno, de acordo com as suas normas constitucionais, para tornar efetivos os direitos e liberdades nela mencionados.

Ademais, o artigo 27 da Convenção de Viena dispõe sobre a vedação de invocar questões de ordem interna para descumprir ou cumprir imperfeitamente as obrigações internacionais assumidas. (LASCALA, 2011)

Além disso, afirmam ainda que o Supremo já fixou jurisprudência no tocante ao status dos tratados internacionais com relação ao direito pátrio, afirmando:

[…] o Tribunal em 2008 consagrou a superioridade dos tratados de direitos humanos, os quais têm, no mínimo, caráter supralegal, ou seja, estão acima da lei ordinária como a em análise. Deveria ter feito o STF um controle de convencionalidade, ter analisado a compatibilidade da lei de anistia com a Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de São Jose da Costa Rica. (MACHADO, 2011)

Assim, tem-se em conta o ensinamento simples e absolutamente didático da palavras de Flávia Piovesan ao lecionar que "os tratados não são o ‘teto máximo’ de proteção, mas o ‘piso mínimo’ para garantir a dignidade humana, constituindo o ‘mínimo ético irredutível’" (PIOVESAN, 2005).

2.4. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE

Não foi dado, até o momento, ao controle de convencionalidade um tratamento à altura de sua importância para a produção normativa em nosso direito, raríssimas são as obras de direito constitucional que tratam, sequer minimamente sobre o tema, razão pela qual não há ainda um grande volume de estudos realizados sobre tal. Com a edição da sentença proferia pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no entanto, o tema começa a ser visto com maior frequência e aos poucos vai-se formando uma opinião sobre este importante instituto. De fato, fica clara esta evidencia nas palavras de Mazzuoli:

O tema deste ensaio é inédito no Brasil. Seu aparecimento se deu entre nós a partir da entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004. Mas até o presente momento – passados mais de quatro anos dessa alteração constitucional – nenhum jurista pátrio chegou a desenvolvê-lo. Sequer um autor brasileiro (constitucionalista ou internacionalista) percebeu, até o presente momento, a amplitude e a importância dessa nova temática, capaz de modificar todo o sistema de controle no direito brasileiro.

Valério de Oliveria Mazzuoli, aliás, foi o pioneiro no estudo e na publicação sobre o controle de convencionalidade tendo sido este parte integrante de sua tese de doutorado4, em 2008. Por isso mesmo, seu estudo servirá como marco referencial e inicial deste estudo:

A primeira idéia a fixar-se, para o correto entendimento do que doravante será exposto, é a de que a compatibilidade da lei com o texto constitucional não mais lhe garante validade no plano do direito interno. Para tal, deve a lei ser compatível com a Constituição e com os tratados internacionais (de direitos humanos e comuns) ratificados pelo governo. Caso a norma esteja de acordo com a Constituição, mas não com eventual tratado já ratificado e em vigor no plano interno, poderá ela ser até considerada vigente (pois, repita-se, está de acordo com o texto constitucional e não poderia ser de outra forma) – e ainda continuará perambulando nos compêndios legislativos publicados –, mas não poderá ser tida como válida, por não ter passado imune a um dos limites verticais materiais agora existentes: os tratados internacionais em vigor no plano interno. Ou seja, a incompatibilidade da produção normativa doméstica com os tratados internacionais em vigor no plano interno (ainda que tudo seja compatível com a Constituição) torna inválidas as normas jurídicas de direito interno.

[…]

Nesse sentido, entende-se que o controle de convencionalidade deve ser exercido pelos órgãos da justiça nacional relativamente aos tratados aos quais o país se encontra vinculado. Trata-se de adaptar ou conformar os atos ou leis internas aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado, que criam para este deveres no plano internacional com reflexos práticos no plano do seu direito interno. Doravante, não somente os tribunais internos devem realizar o controle de convencionalidade (para além do clássico controle de constitucionalidade), mas também os tribunais internacionais (ou supranacionais) criados por convenções entre Estados, onde estes (os Estados) se comprometem, no pleno e livre exercício de sua soberania, a cumprir tudo o que ali fôra decidido e a dar seqüência, no plano do seu direito interno, ao cumprimento de suas obrigações estabelecidas na sentença, sob pena de responsabilidade internacional. O fato de serem os tratados internacionais (notadamente os de direitos humanos) imediatamente aplicáveis no âmbito doméstico, garante a legitimidade dos controles de convencionalidade e de legalidade das leis e dos atos normativos do Poder Público.

Parte importante da doutrina, no entanto, tem manifestado preocupação no tocante ao controle de convencionalidade, alegando que ela traz em si uma dificuldade implícita que diz respeito à questão dos limites que se apresentariam à soberania nacional devido à execução deste controle (LASCALA, 2011).

Mazzuoli (2009), contudo, traz-nos a resposta ao ensinar-nos que, no que se refere à legitimidade da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos proceder ao controle de convencionalidade, esta Corte já firmou robusta jurisprudência neste sentido baseada no artigo 27 da Convenção de Viena sobre os Tratados que data de 1969 e que dispõe que os Estados-membros não podem justificar o seu inadimplemento a um tratado invocando as disposições de seus direito interno.

Neste sentido, Rodrigo Meirelles Coelho (2008) complementa este raciocínio explicando que no seu entendimento a implementação das sentenças da CIDH no Brasil são tão obrigatórias quanto as proferidas pelo Poder Judiciário pátrio e que tal obrigatoriedade decorre, além da ratificação da Convenção Americana, do reconhecimento pelo Brasil da competência contenciosa daquela Corte pelo país.

O que acontece, porém, se a partir de agora o Estado não observar o controle de convencionalidade préviamente à elaboração das leis com relação aos tratados internacionais, sobretudo aos referentes aos Direitos Humanos? Bem, nesse caso, conforme a lição de Mazzuoli, poderão ser acionados os instrumentos do controle concentrado de constitucionalidade:

Ora, se a Constituição possibilita sejam os tratados de direitos humanos alçados ao patamar constitucional, com equivalência de emenda, por questão de lógica deve também garantir-lhes os meios que garante a qualquer norma constitucional ou emenda de se protegerem contra investidas não autorizadas do direito infraconstitucional. Nesse sentido, é plenamente possível defender a possibilidade de ADIn (para eivar a norma infraconstitucional de inconvencionalidade), de ADECON (para garantir à norma infraconstitucional a compatibilidade vertical com um tratado de direitos humanos formalmente constitucional), ou até mesmo de ADPF (Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental) para exigir o cumprimento de um “preceito fundamental” encontrado em tratado de direitos humanos formalmente constitucional.

[…]

“Em suma, todos os tratados que formam o corpus juris convencional dos direitos humanos de que um Estado é parte devem servir de paradigma ao controle de constitucionalidade/convencionalidade, com as especificações que se fez acima: a) tratados de direitos humanos internalizados com quorum qualificado são paradigma do controle concentrado (para além, obviamente, do controle difuso), cabendo ADIn no Supremo Tribunal Federal a fim de nulificar a norma infraconstitucional incompatível com o respectivo tratado equivalente à emenda constitucional; b) tratados de direitos humanos que têm apenas “status de norma constitucional” (não sendo “equivalentes às emendas constitucionais”, posto que não aprovados pela maioria qualificada do art. 5º, § 3º, da Constituição) são paradigma apenas do controle difuso de constitucionalidade/convencionalidade. (MAZZUOLI, 2009)

Por fim, embora à primeira vista possa parecer que o controle de convencionalidade exija que o Estado decline de sua soberania e que as Cortes Internacionaisde Direitos Humanos passem a ditar as regras nos tribunais pátrios, é preciso que se diga que isto está longe de ser verdade. As Cortes internacionais não trazem consigo, via de regra, o condão de revisoras das decisões estatais e muito menos de instância recursal. Isto é o que leciona Bastos Júnior ao escrever:

Em síntese, aos juízes nacionais incumbe, quando do julgamento dos casos postos à sua apreciação, rechaçar as disposições internas incompatíveis com a Convenção Americana e com a exegese conferida a si pela Corte, conforme determina seu art. 2, a fim de garantir o efeito útil (effet utile) do Pacto, mediante o provimento da tutela judicial efetiva, ou seja, garantindo ao jurisdicionado os direitos consagrados no instrumento internacional, em respeito ao art. 1.1.

[…]

Os juízes nacionais, previamente à realização da tarefa ordinariamente conhecida como subsunção – correlação do fato com a porção de direito aplicável – o juiz nacional deve realizar o controle de convencionalidade entre a porção de direito doméstico aplicável e a norma convencional (VILLANOVA, 2010). Constatando o conflito entre as normas, devem deixar de aplicar a norma interna “inconvencional” e aplicar diretamente a Convenção, assegurando o “efeito útil” desta última e protegendo os direitos da pessoa humana. Trata-se, portanto, de um controle judicial de convencionalidade difuso, porquanto todos os magistrados estão autorizados a exercê-lo, e que produz efeitos apenas inter partes. (REY CANTOR, 2009).

[…]

À Corte Interamericana, portanto, compete exercer o controle de convencionalidade de forma subsidiária, apenas com a finalidade de aferir a existência ou não da responsabilidade internacional do Estado por descumprimento das disposições da Convenção. Não é, na essência, instância judicial revisora das decisões domésticas, devendo os juízes domésticos levar em conta as pautas hermenêuticas ditadas pela Corte, no exercício do controle de convencionalidade em sede interna, com o fito de evitarem a responsabilização internacional do Estado. (BASTOS JÚNIOR, 2011)

Em apertada síntese, estas são as principais considerações sobre o controle de convencionalidade com relação ao confronto das decisões referentes ao caso Gomes Lund e à ADPF 153, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e pelo Supremo Tribunal Federal, respectivamente.

Sobre o autor
Glayton Robert Ferreira Fontoura

Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp|LFG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONTOURA, Glayton Robert Ferreira. Eficácia normativa dos tratados internacionais de direitos humanos.: Caso Julia Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) na CIDH e ADPF 153 (Lei da Anistia Brasileira) no STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3795, 21 nov. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25933. Acesso em: 22 nov. 2024.

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