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Genocídio sanitário no Brasil:

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Agenda 05/08/2020 às 16:25

3. A aplicabilidade das disposições do Estatuto de Roma à conduta de Jair Messias Bolsonaro e as obrigações internacionais do Brasil

A tipicidade dos atos comissivos e omissivos de Jair Bolsonaro tem sido aventada frequentemente. Além do discurso parcial dos partidos políticos, órgãos de imprensa, acadêmicos e magistrados têm interpretado como grave a conduta do mandatário brasileiro e de governantes que assumiram postura negligente em relação ao controle da pandemia[21]. Verifica-se, como será explicado adiante, que o conjunto de atos (discursivos, normativos e econômicos), ao resultarem em potencialização do contágio e da letalidade da pandemia, constituíram fato delituoso, tipificado no art. 6 (genocídio) e no art. 7 (crimes contra a humanidade), e atribuível ao Presidente Jair Bolsonaro.

O crime de genocídio está previsto no art. 6 do Estatuto de Roma. Conforme o dispositivo,

Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "genocídio", qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal: a) Homicídio de membros do grupo; b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial; d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo (destaque do autor).

Os atos de Jair Bolsonaro na sua condução da política pública de controle e de combate da pandemia estão tipificados nos itens a) e b) do art. 6 do Estatuto de Roma. Embora tenham sido causados indiretamente, por omissão do mandatário, o homicídio e as ofensas graves à integridade física e mental do grupo, pelo menos no número e no grau verificado no país, resultaram da forma de condução da política central de combate e de controle da pandemia.

Elemento importante na configuração do genocídio é o direcionamento das ofensas a grupo nacional, étnico, racial ou religioso. No caso dos atos presidenciais de enfraquecimento ao combate à pandemia, verifica-se que, em um primeiro momento, se direcionaria a toda população brasileira, indiscriminadamente. No entanto, conforme a pandemia avançou no mundo e estudos foram publicados em múltiplas áreas do conhecimento, verificou-se que alguns grupos, dentro da sociedade nacional, seriam proporcionalmente mais afetados pelo covid-19. Os estratos economicamente e socialmente mais vulneráveis seriam mais afetados pela disseminação do vírus e, provavelmente, seriam mais vitimados por mortes decorrentes da doença, uma vez que teriam menores condições de prática do isolamento social, inclusive no interior de suas residências, de acesso à tratamento hospitalar de qualidade, bem como a materiais básicos de higiene, como, por exemplo, máscaras, álcool gel, desinfetantes e outros produtos de limpeza para as casas.

Outro grupo especialmente vulnerável ao avanço da pandemia são grupos indígenas[22] e outros grupos tradicionais isolados (e.g. quilombolas). Esses grupos compartilham das deficiências coletivas das pessoas socialmente e economicamente vulneráveis, com o agravante de terem também menor acesso às notícias e informações, inclusive aquelas de natureza científica preventiva, necessárias à prevenção e ao tratamento adequado de pessoas infectadas pelo vírus.

Os crimes contra a humanidade estão previstos no art. 7 do Estatuto de Roma. O parágrafo primeiro assim prescreve:

1. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "crime contra a humanidade", qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque: a) Homicídio; b) Extermínio; c) Escravidão; d) Deportação ou transferência forçada de uma população; e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional; f) Tortura; g) Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável; h) Perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, tal como definido no parágrafo 3o, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional, relacionados com qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da competência do Tribunal; i) Desaparecimento forçado de pessoas; j) Crime de apartheid; k) Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental. (destaques do autor)

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Nas diversas alíneas do parágrafo primeiro do art. 7, enumeram-se os atos que configurariam crimes contra a humanidade. A alínea k contém ato genérico, cuja característica seria causar grande sofrimento humano ou afetar, gravemente, a integridade física ou a saúde física ou mental de grupo de pessoas. A inserção de conjunto genérico de atos tem a finalidade de abarcar o mais amplo possível espectro de condutas danosas ao ser humano. Para o caso em tela, referente à conduta de Jair Bolsonaro, a menção à saúde física e mental é relevante, pois contempla, precisamente, o resultado do conjunto de atos presidenciais direcionados à pandemia.

Para configuração dos crimes tipificados no Estatuto, o elemento psicológico é importante. Na descrição legal do crime de genocídio, o elemento psicológico é expressamente mencionado: “praticado com intenção”. O agente promotor do genocídio deve, portanto, agir dolosamente. Os crimes contra a humanidade, considerado o trecho textual “havendo conhecimento desse ataque”, também pressupõem a conduta dolosa do agente, a qual, entretanto, deve ser apreciada, de forma distinta, com relação ao ato e às consequências do ato.

Os elementos textuais indicadores do dolo do agente, e que variam conforme o ato delituoso específico, devem ser interpretados em conjunto com o art. 30 do Estatuto de Roma, que dispõe sobre o elemento psicológico de maneira geral:

Artigo 30 (Elementos Psicológicos)

1. Salvo disposição em contrário, nenhuma pessoa poderá ser criminalmente responsável e punida por um crime da competência do Tribunal, a menos que atue com vontade de o cometer e conhecimento dos seus elementos materiais. 2. Para os efeitos do presente artigo, entende-se que atua intencionalmente quem: a) Relativamente a uma conduta, se propuser adotá-la; b) Relativamente a um efeito do crime, se propuser causá-lo ou estiver ciente de que ele terá lugar em uma ordem normal dos acontecimentos. 3. Nos termos do presente artigo, entende-se por "conhecimento" a consciência de que existe uma circunstância ou de que um efeito irá ter lugar, em uma ordem normal dos acontecimentos. As expressões "ter conhecimento" e "com conhecimento" deverão ser entendidas em conformidade. (destaques do autor)

Primeiramente, o dispositivo do Estatuto afasta, expressamente, a criminalização de condutas culposas (decorrentes de negligência, imprudência ou imperícia do agente), embora o restante do texto introduza complexidades interpretativas. Os elementos psicológicos disciplinados no art. 30 concernem à conduta (em si) e aos efeitos da conduta. A forma como são tratados é diferente nos dois casos.

Em relação à conduta do agente, deve haver intenção de praticar aquele ato específico que materializou o tipo penal contido in abstrato no Estatuto. Quanto aos resultados, no entanto, basta que o agente tenha ciência de que os efeitos serão produzidos, seguindo-se o curso normal dos acontecimentos. Despicienda, dessa forma, é a intenção na produção dos resultados em determinados tipos penais contidos no Estatuto de Roma.

De modo geral, no direito penal, a palavra "intenção" ou o adjetivo "intencionalmente" não se limitam, tradicionalmente, à definição restrita de propósito, objetivo ou desígnio. De acordo com a tradição do direito consuetudinário, considera-se que pessoa pretende a consequência não apenas se (i) seu objetivo consciente é causar essa consequência, mas também (ii) se ela age com o conhecimento de que a consequência é virtualmente certa como resultado de sua conduta. O termo “intenção”, conforme estabelecido no Artigo 30, tem dois significados diferentes, dependendo se o elemento material está relacionado à conduta ou consequência. Uma pessoa tem intenção em relação à conduta, se ela “deseja praticar a conduta”, enquanto que, em relação à consequência, diz-se que a pessoa tem intenção se “essa pessoa pretende causar essa consequência “ou” está ciente de que ela ocorrerá no curso normal dos eventos”.[23] (tradução e destaques do autor)

A conduta de Jair Bolsonaro, na prática do crime de genocídio e de crime contra a humanidade, é abarcada pelo art. 30, porquanto desnecessária a intenção determinada quanto aos resultados. Seus atos (discursivos, normativos e econômicos), inclusive os praticados por seus subordinados, foram intencionalmente praticados, ainda que reste dúvida quanto pretensão dos resultados. Dessa forma, o ponto é pacífico acerca da existência da intenção imediata (dolo direto) em relação à conduta.

No que concerne aos eventos consequentes, havia, dada a racionalidade dos agentes envolvidos e a disponibilidade de informação sobre a existência de amplos consensos científicos acerca do tema da pandemia, plena ciência sobre os efeitos decorrentes do curso natural dos eventos, inclusive acerca da heterogeneidade dos impactos do alastramento da pandemia, que vitimaria com mais força grupos socialmente e economicamente vulneráveis. Ainda que despida, portanto, de intencionalidade explícita em relação ao resultado morte, a conduta de Bolsonaro era adequadamente informada acerca dos prováveis desdobramentos.

A aplicabilidade dos conceitos de dolo indireto e de dolo eventual, diante do texto legal do art. 30, parece ser indubitável, sem embargo opiniões doutrinárias contrárias[24]. Se é evidente, com igual fulcro no art. 30, que o Estatuto afasta o cometimento culposo de crimes, resta igualmente claro que as formas não diretas de dolo são contempladas pelo Estatuto, consideradas as particularidades de cada ato tipificado nas alíneas dos art. 6, 7 e 8 do Estatuto de Roma.

No caso específico da alínea k do art. 7 e das letras a e b do art. 6 do Estatuto de Roma, exige-se dolo direto apenas para a conduta, admitindo-se o dolo eventual para o resultado. Ao descoordenar, voluntariamente, os esforços de combate ao covid-19, e dadas as informações amplamente disseminadas sobre as consequências do aprofundamento da pandemia, conclui-se que Bolsonaro incorreu nas condutas criminosas tipificadas na alínea k do art. 7 e das letras a e b do art. 6 do Estatuto de Roma. Juridicamente cabível, portanto, é a investigação, o processamento e a eventual condenação de Bolsonaro pelo Tribunal Penal Internacional.


4. Considerações finais

O arcabouço jurídico constituinte do sistema penal internacional tem, como objetivo precípuo, investigar, processar e punir indivíduos que praticam atrocidades (muitas vezes contra sua própria população), independentemente do cargo que ocupam. Superando eventuais pressões políticas que recaiam sobre os organismos judiciários nacionais, o objetivo formalizado no Estatuto do TPI é prover instrumento internacional contra arbitrariedades e barbáries cometidas contra a pessoa humana, bem como punir, criminalmente, indivíduos responsáveis por graves crimes internacionais, com a possibilidade de atingir líderes militares e políticos.

O comportamento de Jair Bolsonaro na condução das políticas nacionais de contenção e de redução de danos da pandemia revelou-se problemático, sob a perspectiva ética, e criminosa, sob a perspectiva jurídica. A previsibilidade de que a oposição discursiva, normativa e econômica, às recomendações científicas, poderia resultar em elevada contaminação e mortandade da população brasileira é elemento suficiente para ensejar a investigação, o julgamento e a provável condenação do mandatário brasileiro, por crime contra a humanidade e genocídio, pelo Tribunal Penal Internacional.

Sobre o autor
Mauro Kiithi Arima Junior

Bacharel em Direito e Relações Internacionais pela USP. Especialista em Direito Político, Administrativo e Financeiro pela FD USP. Especialista em Política Internacional pela FESPSP. Mestre em Direito Internacional pela USP. Doutor em Direito Internacional pela USP. Advogado, professor e consultor jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KIITHI, Mauro Arima Junior. Genocídio sanitário no Brasil:: Por que Jair Bolsonaro deve ser julgado pelo Tribunal Penal Internacional?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6244, 5 ago. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/84408. Acesso em: 22 dez. 2024.

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