CONSIDERAÇÕES FINAIS
Legítima defesa da honra é uma licença para matar mulheres (Alice Bianchini)
A sociedade é um caminhar para frente; avançar sempre, retroceder jamais. Etapas são superadas, conquistas e retrocessos fazem parte da evolução histórica da própria vida. Aquilo que enobrece alguém num determinado espaço de tempo, pode causar repulsa num outro instante da sociedade. Mas o certo é que a vida nos apresenta recheios de riqueza que o próprio direito é incapaz de prever e, assim, a humanidade se fortalece com as experiências da vida.
Num dado momento histórico do Direito Penal - por exemplo, em 1940 - a legislação previu o crime de adultério no artigo 240, com pena de detenção de 15 dias a 6 mês, mas é certo que sessenta e cinco depois, por meio da Lei nº 11.106, de 2005, o dispositivo foi expressamente revogado.
Nesse processo de evolução, em 2006, nasce no Brasil a Lei Maria da Penha, num contexto triste e lastimável: o país sofria a condenação da Corte Internacional dos Direitos Humanos, por omissão judicial na persecução penal de um agressor que, em 1983, tentou matar a sua esposa, Maria da Penha Maia Fernandes, vítima emblemática da violência doméstica. A lei em apreço, logo em seu artigo 1º, anuncia a criação de mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do artigo 226 da Constituição da República de 1988 e também por observar a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, além de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil.
Seguindo a tendência da evolução normativa, em 2015, o legislador pátrio, visando a coibir a crescente violência contra a mulher, criou a qualificadora do feminicídio no artigo 121, § 2º, inciso VI, do CP, com previsão de pena de reclusão de 12 a 30 anos, para quando o homicídio for praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, assim entendendo quando o crime envolve violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Não bastasse a nojenta e odiosa violência contra a Mulher no Brasil, a sociedade ainda tinha que conviver com a absurda tese da “legítima defesa da honra” em discursos efervescentes de defensores de criminosos desalmados nos Tribunais de Júri, apresentando falácias cabotinas, fantasiosas, como se a honra fosse maior e superior que a própria vida, esquecendo-se da lição ensinada nos primeiros dias da academia de que a primeira noção que se deve ter é saber sobre a solução jurídica do conflito de direitos fundamentais em rota de colisão, e que, num processo de prevalência, há que se prestigiar o direito à vida. A segunda lição é sobre o direito da igualdade, onde homens e mulheres são iguais perante a lei, sem nenhum tipo de discriminação.
Aliás, é de bom alvitre citar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, em seu artigo VII, traz uma disposição sobre igualdade onde afirma que:
Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.
E agora, para consolidar o afastamento da abjeta tese da legítima defesa da honra arguida por agressores atrozes, covardes sociais, conspurcadores da paz, o STF, acertadamente, proferiu decisão da ADPF nº 779, entendendo que, diante do sublime direito à vida e à dignidade da pessoa humana, é inaceitável que o acusado de feminicídio seja absolvido, na forma do art. 483, III, § 2º, do Código de Processo Penal, com base na esdrúxula tese da “legítima defesa da honra”. E mais que isso: caso a defesa lance mão, direta ou indiretamente, da tese inconstitucional de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese), seja na fase pré-processual, processual ou no julgamento perante o tribunal do júri, caracterizada estará a nulidade da prova, do ato processual ou até mesmo dos debates por ocasião da sessão do júri (caso não obstada pelo Presidente do Júri), facultando-se ao titular da acusação recorrer de apelação, na forma do art. 593, III, a, do Código de Processo Penal.
E nem pensem em arguir a tese do sagrado direito fundamental da liberdade de expressão e pensamento, ou ainda da plenitude de defesa, princípio da ampla defesa, e outros contorcionismos exegéticos apelativos. Caso haja citação ou insistência na defesa da tese, ainda que indireta, durante os julgamentos perante o Tribunal do Júri, a meu sentir, deve o presidente do Tribunal advertir a defesa acerca da inconstitucionalidade da prova arguida, cassar a palavra naquele ponto específico, sem que se caracterize cerceamento de defesa, não oferecer quesitos para esse ponto, ou até mesmo em última instância, agora em sede de Tribunal de Justiça, anular o julgamento se o réu for absolvido em face da arguição dessa tese, em recurso da acusação, é claro, por ser a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.
ROGÉRIO SANCHES, com o brilhantismo de sempre, questiona acerca dos efeitos dessa decisão do STF, pontuando com extrema autoridade.
O que acontece agora com a decisão do Supremo se o advogado insistir na tese da legítima defesa da honra no plenário? O promotor de Justiça deve requerer que conste em ata para eventual nulidade de julgamento? O Juiz deve advertir o advogado e também os jurados para não levarem em conta, lembrando que nunca vai se saber se eles levaram em conta ou não, ou deve dissolver o Conselho de Sentença por culpa da defesa, inclusive se preso estiver o réu não há que se falar em constrangimento ilegal, e pode mantê-lo preso? [6]
O excelso professor acredita que essas questões já deveriam ter tido trabalhadas na decisão do Supremo Tribunal Federal.
E por alcançar a decisão a fase pré-processual, é possível que durante a produção de provas em sede de Inquérito Policial, haja a argumentação da legítima defesa da honra, por exemplo, na investigação de um crime de homicídio consumado. Neste caso, a meu aviso, deve a autoridade policial fazer desentranhar dos autos esses argumentos apresentados em memoriais, mencionando a decisão do STF na ADPF nº 779. Caso seja o próprio investigado que venha a arguir, durante o seu interrogatório, essa tese expurgada do mundo jurídico, a autoridade policial deixará de constar esses argumentos por seres inconstitucionais.
Assim, conforme TOFFOLI, a chamada “legítima defesa da honra” corresponde, na realidade, a recurso argumentativo/retórico, odioso, desumano e cruel, utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra a mulher para imputar à vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões, contribuindo imensamente para a naturalização e perpetração da violência contra as mulheres no Brasil.
Por fim, é relevante frisar que a soberania do Tribunal do júri e o direito à honra são categorias fundamentais, os quais mesmo com esse colorido não podem sobrepujar o direito à vida, direito à dignidade da pessoa humana, também rotulados como direitos fundamentais, e as decisões do Júri não podem ser respaldadas em provas ilícitas, e, doravante, diante do julgamento do STF, será nula a decisão firmada sob alegação de legítima defesa da honra de agressores de mulheres, porque não há conformidade constitucional e o destino desses criminosos covardes deve ser a cela de uma prisão.
E o mais importante. Mesmo que não houvesse a decisão do STF pugnando pela inconstitucionalidade da tese da legítima defesa da honra, não seria razoável prestigiar esse direito cujo bem jurídico é essencialmente privado. A honra deve ser protegida por queixa-crime, ação de iniciativa exclusivamente privada, cuja consequência para o querelado é o pagamento de cesta básica, na forma da Lei nº 9.099/95, e, assim, se o homem se julgar traído numa relação conjugal, deve ele se quiser propor queixa-crime contra o responsável e buscar na esfera civil a reparação de eventual dano. Se for o caso, viabilizar o desfazimento da sociedade conjugal, art. 1.573, I, do Código Civil, caracterizada pela impossibilidade da comunhão de vida.
O que não se pode, definitivamente, é querer agredir a mulher em nome da defesa da honra, porquanto ser prática que ficou para trás, no entulho do período imperial, nas tristes reminiscências dos julgados no Brasil, a exemplo da morte trágica da mineira Ângela Diniz, em dezembro de 1976, covardemente assassinada pelo marido Doca Street. Mas agora se vive tempos modernos de valorização da vida, da igualdade entre as pessoas e do respeito ao humanismo. É tempo de cancelar da nossa vida aquilo que não vale a pena, e, nesse sentido, valorizar o que é mais importante: viver a vida com muita luz e sabedoria, sempre rechaçando as trevas que nos fazem perder os caminhos na escuridão do tempo. É tempo de amar mais, com intensidade, fraternidade e espírito de amor, pois quem não sabe amar o semelhante não está preparado para viver em sociedade. Um dia, certamente, a sociedade deixará de aplicar, naturalmente, a excepcionalidade da Lei Maria da Penha, porque os homens aprenderão a respeitar e valorizar as mulheres, sem necessidade de imperativo de leis e sem a necessidade de sentimento de posse.
Por derradeiro, arremata-se citando Ruth Bader Ginsburg, para quem as mulheres terão alcançado a verdadeira igualdade quando os homens compartilharem com elas a responsabilidade de criar a próxima geração.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BIANCHINI, Alice. Violência de gênero constitui uma forma de violação dos Direitos Humanos. Disponível em http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/index.php/U_Fato_Direito/article/view/6736/3971. Acesso em 14 de março de 2021.
BOTELHO, Jeferson. Linhas gerais do Tribunal do Júri. Evolução história, Princípios constitucionais e dinâmica procedimental. Disponível em https://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=9994. Acesso em 14 de março de 2021.
BRASIL. ADPF Nº 779 – STF – Relator ministro DIAS TOFFOLI. Disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF779.pdf. Acesso em 13 de março de 2021, ás 21h07min.
BRASIL. ADFP Nº 779 – ministro EDSON FACHIN. Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/fachin-legitima-defesa-honra.pdf. Acesso em 13 de março de 2021.
BRASIL. Lei Maria da Penha. Lei nº 11.340/2006. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm. Acesso em 14 de março de 2021, às 00h05min.
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 14 de março de 2021.
SANCHES, Rogério. Live com a excelsa Professora Alice Bianchini. Legítima defesa da honra e as consequências do Tribunal do Júri. Disponível em https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=stTnh5aFLLw&t=1928s&ab_channel=Rog%C3%A9rioSanchesCunha. Acesso em 14 de março de 2021.
[1] BOTELHO, Jeferson. Linhas gerais do Tribunal do Júri. Evolução história, Princípios constitucionais e dinâmica procedimental. Disponível em https://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=9994. Acesso em 14 de março de 2021.
[2] BIANCHINI, Alice. Violência de gênero constitui uma forma de violação dos Direitos Humanos. Disponível em http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/index.php/U_Fato_Direito/article/view/6736/3971. Acesso em 14 de março de 2021.
[3] ADPF Nº 779 – STF – Relator ministro DIAS TOFFOLI. Disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF779.pdf. Acesso em 13 de março de 2021, ás 21h07min.
[4] ADFP Nº 779 – ministro Edson Fachin. Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/fachin-legitima-defesa-honra.pdf. Acesso em 13 de março de 2021.
[5] MANSSUR, Gabriela. Promotora de Justiça. Entrevista concedida ao Jornal da Band. Disponível em https://br.video.search.yahoo.com/search/video;_ylt=A2KLfRde901g1PYA2W3z6Qt.;_ylu=Y29sbwNiZjEEcG9zAzEEdnRpZAMEc2VjA3BpdnM-?p=leg%C3%ADtima+defesa+da+honra&fr2=piv-web&fr=mcafee#id=1&vid=9b1b85c1955d54825b4d4bc36e62a125&action=view. Acesso em 14 de março de 2021.
[6] SANCHES, Rogério. Live com a excelsa Professora Alice Bianchini. Legítima defesa da honra e as consequências do Tribunal do Júri.