“O exemplo de paixão assassina trazido por Shakespeare em Otelo é bastante atual, pois mostra o aspecto doentio daquele que mata sob o efeito de suspeitas de adultério por parte de sua esposa. Após o crime, o grande dramaturgo atribui ao matador a seguinte frase: ‘Dizei, se o quereis, que sou um assassino, mas por honra, porque fiz tudo pela honra e nada por ódio’. Na verdade, a palavra ‘honra’ é usada para significar ‘homem que não admite ser traído’. Aquele que mata e depois alega que o fez para salvaguardar a própria honra está querendo mostrar à sociedade que tinha todos os poderes sobre sua mulher e que ela não poderia tê-lo humilhado ou desprezado.” (ELUF, Luiza Nagib. A paixão no banco dos réus – casos passionais célebres: de Pontes Visgueiro a Pimenta Neves. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 157)
RESUMO. O presente texto tem por finalidade precípua analisar, sem caráter exauriente, a tese da legítima defesa da honra decidida recentemente por unanimidade pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de Ação de Descumprimento de Preceito Constitucional nº 779, que considerou inconstitucional a tese de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese), seja na fase pré-processual, processual ou no julgamento perante o tribunal do júri, caracterizando nulidade da prova, do ato processual ou até mesmo dos debates por ocasião da sessão do júri.
Palavras-Chave. ADPF nº 779; tribunal do Júri; tese defensiva; legítima defesa; honra; inconstitucionalidade.
INTRODUÇÃO
O procedimento penal do tribunal do júri é previsto na Constituição Federal de 1988, artigo 5º, inciso XXXVIII, segundo o dispositivo legal, é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados, a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Antes da previsão atual na Constituição Federal de 1988, o Tribunal do Júri passou por diversas modificações, notadamente, em matéria de competência para o processo e julgamento. Botelho, em ensaio jurídico apresenta evolução histórico-legislativa, a saber:
O Tribunal do Júri como instituição jurídica foi criado pelo Príncipe em 18 de junho de 1822, através de Decreto Imperial, sendo denominado primeiramente de "juízes de fato".
Era composto por vinte e quatro juízes de fato, selecionados dentre homens considerados honrados e inteligentes.
No Brasil, o Tribunal do Júri foi inicialmente criado com a finalidade de julgar os crimes contra a imprensa. Depois, com a Lei 1521/51 teve a competência alargada para o julgamento dos crimes contra a economia popular, sobretudo os crimes previstos no artigo 2º da citada lei:
Art. 12. São da competência do Júri os crimes previstos no art. 2º desta Lei.
Art. 13. O Júri compõe de um juiz, que é o seu presidente, e de vinte jurados sorteados dentre os eleitores de cada zona eleitoral, de uma lista de cento e cinquenta a duzentos eleitores, cinco dos quais constituirão o conselho de sentença em cada sessão de julgamento.
Com a Constituição do Império, outorgada em 25 de março de 1824, o Tribunal do Júri passou a dispor de competência ampla nas ações penais e cíveis, consoante definição dos artigos 151 e 152 do referido texto constitucional:
Art. 151. O Poder Judicial independente e será composto de Juízes e Jurados, os quais terão lugar assim no Cível, como no Crime nos casos, e pelo modo, que os Códigos determinarem.
Art. 152. Os Jurados pronunciam sobre o facto, e os Juízes aplicam a Lei.[1]
Portanto, a competência para o processo e julgamento do tribunal do júri reside nos crimes dolosos contra a vida, cuja norma de repetição se encontra no artigo 74 do Código de Processo penal, que estabelece a competência jurisdicional por natureza da infração.
Os crimes dolosos contra a vida são aqueles previstos nos artigos 121 a 126 do Código penal, quais sejam, homicídio, induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio ou à automutilação, infanticídio e as três modalidades de aborto insculpidas nos artigos 124, 125 e 126 do Estatuto Repressivo.
O Código de processo penal define dois tipos de procedimento no artigo 394, prevendo o procedimento comum e o especial, tratando o livro II dos processos em espécie, e assim, o Capítulo II, com nova redação determinada pela Lei nº 11.689, de 2008, define o procedimento relativo aos processos da competência do Tribunal do Júri.
A maior incidência de processos que tramitam no tribunal do júri é, sem dúvidas, para os casos de homicídios dolosos, tentados ou consumados. A doutrina apresenta uma classificação para o crime de homicídio como sendo simples, privilegiado e qualificado, sendo a primeira modalidade é definida por exclusão. E assim, tudo aquilo que não for qualificado, é simples.
A modalidade qualificada se encontra definida no § 2º do artigo 121 do CP, qualificado por motivos, meios, modos, conexão, fins e natureza funcional. Assim, qualificadoras são os motivos torpe, fútil, os meios insidiosos ou cruéis, como emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum, os modos vinculados à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido, aqueles crimes praticados para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime, o feminicídio e os crimes de homicídios praticados contra autoridade ou agente descrito nos artigos 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição.
Importante salientar que o feminicídio foi introduzido pela Lei nº 13.104, de 2015, quando o crime for praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. O próprio Código Penal define, no artigo 121, § 2º-A, que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve violência doméstica e familiar, ou ainda menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Importa salientar que a violência contra a mulher também foi considerada como uma pandemia por organizações internacionais, como a Organização Mundial da Saúde, agora lamentavelmente potenciada pela crise da pandemia da COVID – 19, cujos fundamentos da prevenção apregoa o isolamento social.
Relevante ainda distinguir o femicídio do feminicídio, termos que causam confusões no meio social e até mesmo no meio jurídico. O feminicídio ocorre quando o autor mata a mulher por sua condição de sexo feminino, assim, quando o crime envolve, violência doméstica e familiar, ou, ainda, menosprezo ou discriminação à condição de mulher. O femicídio, por sua vez, significa matar uma mulher por outras motivações, o que pode enquadrar o delito por outras qualificadoras, como por exemplo, motivo fútil ou torpe, meio insidioso ou cruel, como emprego de veneno, asfixia, tortura, além de outras.
ALICE BIANCHINI, com autoridade, salienta sobre a perspectiva de gênero e, com maestria, ensina:
Se considerarmos que todo tipo de violência fere os direitos humanos não haveria porque inserir, na Lei Maria da Penha, o disposto em seu art. 6º antes transcrito. No entanto, o que motivou sua inclusão no texto da Lei foi o propósito afirmar a importância na luta pelo fim desse tipo de violência. Essa lei não é somente da mulher que foi vítima de qualquer tipo de violência, mas da família, do Estado e da sociedade, que devem buscar a igualdade entre as pessoas e a dignidade de todos. Foi na Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, ocorrida em Viena, 1993, que pela primeira vez utilizou-se a expressão “os direitos das mulheres são direitos humanos”. Pouco tempo depois, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção Belém do Pará tratou a violência contra a mulher da mesma forma. Dentre os muitos avanços representados pela Lei Maria da Penha, talvez o mais significativo seja o estabelecimento definitivo da discriminação e violência de gênero como forma de insulto aos direitos humanos.[2]
BIANCHINI ainda prossegue com seu raciocínio sobre a questão da defesa dos direitos das mulheres:
Os direitos das mulheres são indissociáveis dos direitos humanos: não há que se falar em garantia universal de direitos sem que as mulheres, enquanto humanas e cidadãs, tenham seus direitos específicos respeitados. Tal afirmação é corolário do princípio da igualdade, que determina não poder a lei fazer qualquer distinção entre indivíduos, o que inclui a distinção entre os sexos ou entre os gêneros.
1. PRINCIPAIS TESES DE DEFESA NO TRIBUNAL DO JÚRI
Em nome da plenitude de defesa, artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea a), da Constituição da República de 1988, geralmente, as teses utilizadas pela defesa giram em torno da legítima defesa, real ou putativa, negativa de autoria, ou, ainda, a tese do homicídio privilegiado, tanto na modalidade simples, quanto no qualificado, a depender da qualificadora, se de caráter objetivo ou subjetivo.
Outras teses defensivas poderão ser utilizadas como forma de afastar a ilicitude ou a culpabilidade da conduta.
A tese da legítima defesa, quando o crime é qualificado pelo feminicídio, geralmente é sustentada pelos defensores sob argumento, muitas vezes, da traição nas relações conjugais, assunto que se propõe a enfrentar nesse pequeno ensaio jurídico.
2. RECENTE DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ACERCA DO TEMA
Assim, conforme amplamente divulgado, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por unanimidade que a tese da legítima defesa da honra não pode ser aplicada em julgamentos nos tribunais do júri como argumento de defesa em casos de feminicídio. Os ministros decidiram que a tese contraria princípios insertos na Constituição Federal de 1988.
Trata-se do julgamento de uma ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), nº 779, interposta pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT, cujo julgamento se encerrou no dia 12 de março de 2021, e ocorreu no ambiente virtual do plenário do STF, no chamado voto proferido por meio do sistema eletrônico.
Na referida ação interposta em janeiro de 2021, o partido argumentou que não são compatíveis com a Constituição absolvições de réus pelo júri baseadas na tese da legítima defesa da honra, classificada como “nefasta, horrenda e anacrônica”.
O relator do caso, ministro Dias Toffoli, apresentou seu voto no início do julgamento, no último dia 5, em 23 páginas, e, de início, apresenta sucinto relatório acerca da ADPF, frisando:
Trata-se de arguição de descumprimento de preceito Fundamental, com pedido de medida cautelar, ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) com o objetivo de que seja dada interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal (CP) - Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - e ao art. 65 do Código de Processo Penal (CPP) - Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 -, a fim de se afastar a tese jurídica da legítima defesa da honra e se fixar entendimento acerca da soberania dos veredictos. Também pleiteia o autor que se dê interpretação conforme à Constituição, “se esta Suprema Corte considerar necessário”, ao art. 483, III, § 2º, do CPP.[3]
Na parte dispositiva de sua decisão, o ministro DIAS TOFFOLI, com extremo tecnicismo, arremata que:
É certo que a plenitude de defesa é princípio constitucional essencial à instituição do tribunal do júri e está inscrita no rol de direitos e garantias fundamentais da Carta Magna, nos termos do art. 5º, inciso XXXVIII, al. a, do texto constitucional. Assim sendo, entendo que a Constituição garante aos réus submetidos ao tribunal do júri plenitude de defesa, no sentido de que são cabíveis argumentos jurídicos e não jurídicos – sociológicos, políticos e morais, por exemplo -, para a formação do convencimento dos jurados. Não obstante, para além de um argumento atécnico e extrajurídico, a “legítima defesa da honra” é estratagema cruel, subversivo da dignidade da pessoa humana e dos direitos à igualdade e à vida e totalmente discriminatória contra a mulher, por contribuir com a perpetuação da violência doméstica e do feminicídio no país. Com efeito, como bem colocou o Ministro Rogério Schietti, no julgamento do AREsp nº 1.553.933/SC, “é surpreendente ver ainda essa tese sustentada por profissional do Direito (…) como se a decisão judicial que afastou tão esdrúxula tese fosse contrária à lei penal. Como pretender lícito, ou conforme ao Direito (...), o comportamento de ceifar, covardemente a vida de uma mulher companheira[?]”
Contudo, por todas as razões levantas ao longo de minha exposição, penso ser inaceitável, diante do sublime direito à vida e à dignidade da pessoa humana, que o acusado de feminicídio seja absolvido, na forma do art. 483, III, § 2º, do Código de Processo Penal, com base na esdrúxula tese da “legítima defesa da honra”. Dessa forma, caso a defesa lance mão, direta ou indiretamente, da tese inconstitucional de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese), seja na fase pré-processual, processual ou no julgamento perante o tribunal do júri, caracterizada estará a nulidade da prova, do ato processual ou até mesmo dos debates por ocasião da sessão do júri (caso não obstada pelo Presidente do Júri), facultando-se ao titular da acusação recorrer de apelação na forma do art. 593, III, a, do Código de Processo Penal. Por essas razões, reconheço serem patentes a fumaça do bom direito e o perigo da demora, que se fazem presentes diante da notória epidemia de crimes violentos contra mulheres. Postergar uma decisão até o julgamento definitivo da presente arguição acabaria por perpetuar situações de discriminação de gênero e por subsidiar a absolvição de réus confessos com fundamento em tese patentemente inconstitucional.
Antes do arremate, o ministro ainda citou dados estatísticos do Mapa da Violência no Brasil, a saber:
Por sua vez, o “Mapa da Violência de 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil”, já registrava que o Brasil detinha a 5ª maior taxa de feminicídios do mundo, in verbis:
“Com sua taxa de 4,8 homicídios por 100 mil mulheres, o Brasil, num grupo de 83 países com dados homogêneos, fornecidos pela Organização Mundial da Saúde, ocupa uma pouco recomendável 5ª posição, evidenciando que os índices locais excedem, em muito, os encontrados na maior parte dos países do mundo. Efetivamente, só El Salvador, Colômbia, Guatemala (três países latino-americanos) e a Federação Russa evidenciam taxas superiores às do Brasil. Mas as taxas do Brasil são muito superiores às de vários países tidos como civilizados: * 48 vezes mais homicídios femininos que o Reino Unido; * 24 vezes mais homicídios femininos que Irlanda ou Dinamarca; * 16 vezes mais homicídios femininos que Japão ou Escócia.
Em seu voto, proferido em 8 de março de 2021, Dia Internacional da Mulher, o ministro Edson Fachin assinala:
Como explicitei no voto proferido no ARE 1.225.185 e ora assento de modo específico, é absolutamente contrária à Constituição a interpretação do quesito genérico que implique a repristinação da odiosa figura da legítima defesa da honra. Os avanços da legislação penal no combate a discriminação contra a mulher, como a Lei Maria da Penha e a tipificação do feminicídio, não podem ser simplesmente desconsiderados pela interpretação sem limites da quesitação genérica. É parte da missão constitucional deste Tribunal honrar a luta pela afirmação histórica dos direitos das minorias, não se podendo permitir que, a pretexto de interpretar o direito democrático da cláusula do júri, sejam revigoradas manifestações discriminatórias.[4]
Sobre essa decisão, alguns juristas, doutrinadores e estudiosos do direito já se pronunciaram:
Não podemos admitir a naturalização da violência, tampouco a naturalização do feminicídio, que é a última escalada da violência, o último golpe, é um golpe fatal, não podemos aceitar o “matei por amor”, ou “matei por ciúmes”, ou matei porque “ela me traiu”.[5]