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O STF e a Lei Maria da Penha: uma lamentável decisão

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10/02/2012 às 16:10
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Estamos de acordo com a tutela penal diferençada para hipossuficientes (inclusive pelo desvalor da ação), mas sem máculas à Constituição Federal e aos princípios dela decorrentes e inafastáveis.

“Saímos da ditadura do masculino para a ditadura de um feminino esteriotipado. Um feminino que nega tudo o que é feminino.” [01]


I – INTRODUÇÃO

O Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou procedente, na sessão do último dia 09 de fevereiro, por maioria, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4424) ajuizada pela Procuradoria-Geral da República quanto aos artigos 12, inciso I; 16; e 41 da Lei Maria da Penha. Na mesma sessão, agora por unanimidade, os Ministros acompanharam o voto do relator da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 19, Ministro Marco Aurélio, e concluíram pela procedência do pedido a fim de declarar constitucionais os artigos 1º, 33 e 41, da Lei Maria da Penha. [02] 

Nada obstante o argumento de autoridade que representa um julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, ousamos discordar e afirmar, em alguns pontos, a inconstitucionalidade da Lei nº. 11.340/2012. 

Como se sabe, “configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.” [03] A violência pode ser praticada: a) “no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas”; b) “no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa” [04] ou c) “em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.” [05] 

Ademais, compreende: a) “a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal”; b) “a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”; c) “a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos”; d) “a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades” e e) “a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.”

É importante ressaltar que a lei não contém nenhum novo tipo penal, apenas dá um tratamento penal e processual distinto para as infrações penais já elencadas em nossa (vasta e exagerada) legislação. De toda maneira, entendemos extremamente perigosa a utilização, em um texto legal de natureza penal e processual penal (e gravoso para o indivíduo), de termos tais como “diminuição da auto-estima”, “esporadicamente agregadas”, “indivíduos que são ou se consideram aparentados”, “em qualquer relação íntima de afeto”, etc., etc.

Observa-se, porém, que uma agressão de ex-namorado contra antiga parceira não configura violência doméstica. Com esse entendimento, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por maioria, declarou competente o juízo de direito do Juizado Especial Criminal de Conselheiro Lafaiete, em Minas Gerais, para julgar e processar ação contra agressor da ex-namorada. No caso, o homem encontrou a ex-namorada na companhia do atual parceiro e praticou a agressão. Ele jogou um copo de cerveja no rosto dela, deu-lhe um tapa e a ameaçou. O Ministério Público entendeu ser caso de violência doméstica e, por isso, considerou que deveria ser julgado pela Justiça comum. Acatando esse parecer, o juízo de Direito do Juizado Especial Criminal de Conselheiro Lafaiete encaminhou os autos para a 1ª Vara Criminal da cidade. Porém, a Vara Criminal levantou o conflito de competência por entender que não se tratava de violência doméstica e, por essa razão, a questão deveria ser julgada pelo Juizado Especial. Em sua decisão, o relator, ministro Nilson Naves, destacou que a Lei Maria da Penha não abrange as conseqüências de um namoro acabado. Por isso, a competência é do Juizado Especial Criminal. Acompanharam o relator os ministros Felix Fischer, Laurita Vaz, Arnaldo Esteves Lima, Maria Thereza de Assis Moura, Jorge Mussi e Og Fernandes. O ministro Napoleão Nunes Maia Filho divergiu do relator e foi acompanhado pela desembargadora convocada Jane Silva. Segundo ela, o namoro configura, para os efeitos da Lei Maria da Penha, relação doméstica ou familiar, já que trata de uma relação de afeto.” (Processos: CC 91980 e CC 94447).

Segundo o seu art. 6º., a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos; logo, é possível que a apuração do crime daí decorrente seja da atribuição da Polícia Federal, na forma do art. 1º., caput e inciso III, da Lei nº. 10.446/02; ainda em tese, também é possível que a competência para o processo e julgamento seja da Justiça Comum Federal, ex vi do art. 109, V-A, c/c o § 5º., da Constituição Federal, desde que se inicie, via Procurador-Geral da República, e seja julgado procedente o Incidente de Deslocamento de Competência junto ao Superior Tribunal de Justiça). Esta conclusão decorre das normas referidas, bem como em razão do Brasil ser subscritor da Convenção sobre a eliminação de todas as formas de violência contra a mulher [06] e da Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher [07].

Não pretendemos ferir suscetibilidades ou idiossincrasias, apenas manifestar o nosso entendimento sobre uma norma jurídica que entendemos ferir a Constituição Federal. Como diz Paulo Freire, “só, na verdade, quem pensa certo, mesmo que, às vezes, pense errado, é quem pode ensinar a pensar certo. E uma das condições necessárias a pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas certezas. Por isso é que o pensar certo, ao lado sempre da pureza e necessariamente distante do puritanismo, rigorosamente ético e gerador de boniteza, me parece inconciliável com a desvergonha da arrogância de quem se acha cheia ou cheio de si mesmo.” [08]

Estamos de acordo com a tutela penal diferençada para hipossuficientes (inclusive pelo desvalor da ação [09]), mas sem máculas à Constituição Federal e aos princípios dela decorrentes e inafastáveis. Neste ponto, concordamos com Naele Ochoa Piazzeta, quando afirma que “corretas, certas e justas modificações nos diplomas legais devem ser buscadas no sentido de se ver o verdadeiro princípio da igualdade entre os gêneros, marco de uma sociedade que persevera na luta pela isonomia entre os seres humanos, plenamente alcançado.” [10]

Como afirma Willis Santiago Guerra Filho, “princípios como o da isonomia e proporcionalidade são engrenagens essenciais do mecanismo político-constitucional de acomodação dos diversos interesses em jogo, em dada sociedade, sendo, portanto, indispensáveis para garantir a preservação de direitos fundamentais, donde podermos incluí-los na categoria, equiparável, das ´garantias fundamentais’.” [11]


II – A RETRATAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO

Inicialmente analisaremos o art. 16 da referida lei que tem a seguinte redação: “Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.”

Desde logo, atentemos para a impropriedade técnica do termo “renúncia”, pois se o direito de representação já foi exercido (tanto que foi oferecida a denúncia), obviamente não há falar-se em renúncia; certamente o legislador quis referir-se à retratação da representação, o que é perfeitamente possível, mesmo após o oferecimento daquela condição específica de procedibilidade da ação penal.

Sabe-se, no entanto, que o art. 25 do Código de Processo Penal só permite a retratação da representação até o oferecimento da denúncia; no caso desta lei, porém, a solução do legislador foi outra, permitindo-se a retratação mesmo após o oferecimento da peça acusatória. O limite agora (e quando se tratar de crime relacionado à violência doméstica e familiar contra a mulher) é a decisão do Juiz recebendo a denúncia.

Portanto, diferentemente da regra estabelecida pelo art. 25 do Código de Processo Penal, a retratação da representação pode ser manifestada após o oferecimento da denúncia, desde que antes da decisão acerca de sua admissibilidade. Neste ponto, mais duas observações: em primeiro lugar a lei foi mais branda com os autores de crimes praticados naquelas circunstâncias, o que demonstra de certa forma uma incoerência do legislador. Ora, se se queria reprimir com mais ênfase este tipo de violência, por que “elastecer” o prazo para a retratação da representação? Evidentemente que é mais benéfica para o autor do crime a possibilidade de retratação em tempo maior que aquele previsto pelo art. 25, CPP.

Tratando-se de norma processual penal material, e sendo mais benéfica, deve retroagir para atingir processos relativos aos crimes praticados anteriormente à vigência da lei (data da ação ou omissão – arts. 2º. e 4º. do Código Penal). [12]

Uma segunda observação é a exigência legal que esta retratação somente possa ser feita “perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, (...) ouvido o Ministério Público.” Aqui, a intenção do legislador foi revestir a retratação de toda a formalidade própria de uma audiência realizada no Juízo Criminal, presentes o Juiz de Direito e o Ministério Público. Neste aspecto, sendo mais gravosa a norma processual penal material, sua aplicação deve se restringir aos fatos ocorridos posteriormente, ou seja, para os crimes praticados após a vigência da lei.

De toda maneira, ressaltamos que se esta retratação deve ser necessariamente formal (e formalizada), o mesmo não ocorre com a representação que, como sabemos, dispensa maiores formalidades (sendo este um entendimento já bastante tranquilo dos nossos tribunais e mesmo da Suprema Corte). O prazo para o oferecimento da representação (bem como o dies a quo) continua sendo o mesmo (art. 38, CPP). Ademais, é perfeitamente válida a representação feita perante a autoridade policial, pois assim permite o art. 39 do CPP. 

Como se sabe, a representação é uma condição processual relativa a determinados delitos, sem a qual a respectiva ação penal, nada obstante ser pública, não pode ser iniciada pelo órgão ministerial; é uma manifestação de vontade externada pelo ofendido (ou por quem legalmente o represente) no sentido de que se proceda à persecutio criminis. De regra, esta representação “consiste em declaração escrita ou oral, dirigida à autoridade policial, ou ao órgão do Ministério Público, ou ao Juiz”, como afirmava Borges da Rosa. [13] Porém, a doutrina e a jurisprudência pátrias trataram de amenizar este rigor outrora exigido, a fim de que pudessem ser dados ao instituto da representação traços mais informais e, conseqüentemente, mais justos e consentâneos com a realidade.

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Assim é que hodiernamente “a representação, quanto à formalidade, é figura processual que se reveste da maior simplicidade. Inocorre, em relação à mesma qualquer rigor formal” e esta “dispensa do requisito das formalidades advém da circunstância de que a representação é instituída no interesse da vítima e não do acusado, daí a forma mais livre possível na sua elaboração.” [14] 

Neste sentido a jurisprudência é pacífica:

“SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – HABEAS CORPUS Nº. 20.401 – RJ (2002/0004648-6) (DJU 05.08.02, SEÇÃO 1, P. 414, J. 17.06.02). RELATOR: MINISTRO FERNANDO GONÇALVES. EMENTA: PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PERDA DO OBJETO. CRIME CONTRA OS COSTUMES. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. REPRESENTAÇÃO. FORMA SACRAMENTAL. INEXIGIBILIDADE. 1 - Resta prejudicado o habeas corpus, por falta de objeto, quando o motivo do constrangimento não mais existe. 2 - Nos crimes de ação pública, condicionada à representação, esta independe de forma sacramental, bastando que fique demonstrada, como na espécie, a inequívoca intenção da vítima e/ou seu representante legal, nesta extensão, em processar o ofensor. Decadência afastada. 3 - Ordem conhecida em parte e, nesta extensão, denegada.”

Aliás, este é o entendimento pacífico do Supremo Tribunal Federal (neste sentido conferir RT 731/522; JSTF 233/390; RT 680/429, etc). No julgamento do Habeas Corpus nº. 88843, por unanimidade, os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, apesar de concederem a ordem de ofício (para afastar qualquer impedimento contra a progressão do regime prisional em favor de um condenado por atentado violento ao pudor com violência presumida), negaram, no entanto, o pedido formulado pela defesa por entender “que, de acordo com diversos precedentes da Corte, o entendimento firmado no STF é de que não se deve exigir a observância rígida das regras quanto à representação, principalmente quando se trata de crimes dessa natureza”, segundo o relator, Ministro Marco Aurélio. Para a Defensoria Pública paulista, que impetrou a ação no Supremo em favor do condenado, a decisão do Superior Tribunal de Justiça, que negou pedido idêntico feito àquela corte, estaria equivocada, uma vez que seria necessário haver uma representação formal contra o réu, para que ele fosse processado. E que a representação que houve, no caso, foi feita pela vítima, uma menor de idade. O depoimento da vítima, menor de idade, manifestando a intenção de perseguir o acusado em juízo, foi usado para suprir a representação, disse o defensor público. Como a vítima é menor de idade, tal depoimento não é valido, não supre a representação, afirmou ainda a defensoria, para quem “aceitar essa tese é burlar o devido processo legal”. Fonte: STF.

Pergunta-se: deve o representante do Ministério Público, antes de oferecer a denúncia, pugnar ao Juiz pela realização daquela audiência? Entendemos que não, pois a audiência prevista neste artigo deve ser realizada apenas se a vítima (ou seu representante legal ou sucessores ou mesmo o curador especial - art. 33 do Código de Processo Penal) manifestar algum interesse em se retratar da representação. Não vemos necessidade de, a priori, o órgão do Ministério Público requerer a designação da audiência. Ora, se a vítima representou (seja formal ou informalmente), satisfeita está a condição específica de procedibilidade para a ação penal. O requerimento para a realização desta audiência (ou a sua designação ex officio pelo Juiz de Direito) fica “até parecendo” que se deseja a retratação a todo custo. 

Observa-se, outrossim, que a retratação deve ser um ato espontâneo da vítima (ou de quem legitimado legalmente), não sendo necessário que ela seja levada a se retratar por força da realização de uma audiência judicial.

Exatamente neste sentido, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que “a vítima de violência doméstica não pode ser constrangida a ratificar perante o juízo, na presença de seu agressor, a representação para que tenha seguimento a ação penal. Com esse entendimento, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça concedeu mandado de segurança ao Ministério Público do Mato Grosso do Sul para que a audiência prevista no artigo 16 da Lei Maria da Penha só ocorra quando a vítima manifeste, antecipada, espontânea e livremente, o interesse de se retratar. A decisão é unânime. A Lei 11.340/06, conhecida por Maria da Penha, criou mecanismos de proteção contra a violência doméstica e familiar sofrida pelas mulheres. Entre as medidas, está a previsão de que a ação penal por lesão corporal leve é pública – isto é, deve ser tocada pelo MP –, mas condicionada à representação da vítima. O STJ já pacificou o entendimento de que essa representação não exige qualquer formalidade, bastando a manifestação perante autoridade policial para configurá-la. Para o Tribunal de Justiça sul-matogrossense, a designação dessa audiência seria ato judicial de mero impulso processual, não configurando ilegalidade ou arbitrariedade caso realizada espontaneamente pelo juiz.  Mas o desembargador convocado Adilson Macabu divergiu do tribunal local. Para o relator, a audiência prevista no dispositivo não deve ser realizada de ofício, como condição da abertura da ação penal, sob pena de constrangimento ilegal à mulher vítima de violência doméstica e familiar. Isso “configuraria ato de 'ratificação' da representação, inadmissível na espécie”, asseverou. “Como se observa da simples leitura do dispositivo legal, a audiência a que refere o artigo somente se realizará caso a ofendida expresse previamente sua vontade de se retratar da representação ofertada em desfavor do agressor”, acrescentou o relator. “Assim, não há falar em obrigatoriedade da realização de tal audiência, por iniciativa do juízo, sob o argumento de tornar certa a manifestação de vontade da vítima, inclusive no sentido de ‘não se retratar’ da representação já realizada”, completou. Em seu voto, o desembargador indicou precedentes tanto da Quinta quanto da Sexta Turma nesse mesmo sentido.” (Fonte: Coordenadoria de Editoria e Imprensa do Superior Tribunal de Justiça).

Também no Supremo Tribunal Federal decidiu-se que “a audiência prevista no referido artigo não é obrigatória para o recebimento da denúncia, como sustentava a defesa. Ela é facultativa e deve ser provocada pela vítima, caso deseje, antes de recebida a denúncia, o que não ocorreu no caso em questão.” (Habeas Corpus 109176, Relator Ministro Ricardo Lewandowski). 


III – A APLICAÇÃO DA PENA DE PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA

Em seguida, dispõe o art. 17 ser “vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.”

A princípio, tendo em vista o disposto no art. 41 da mesma lei (que adiante iremos comentar), a proibição da aplicação da pena de prestação pecuniária (ou multa) é dirigida ao Juiz de Direito, no momento em que irá proferir a sentença condenatória. Sim, pois se se admitir a impossibilidade da transação penal (art. 41), evidentemente que o dispositivo comentado refere-se, tão-somente, à sentença condenatória.

A pena alternativa de prestação pecuniária está prevista no art. 43, I do Código Penal e consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação social, de importância fixada pelo juiz, não inferior a 1 (um) salário mínimo nem superior a 360 (trezentos e sessenta) salários mínimos. O valor pago será deduzido do montante de eventual condenação em ação de reparação civil, se coincidentes os beneficiários. Se houver aceitação do beneficiário, a prestação pecuniária pode consistir em prestação de outra natureza. [15]

Restou clara a intenção do legislador de evitar a barganha, a “troca” de uma cesta básica ou dinheiro ou multa pela agressão praticada contra a mulher naquelas circunstâncias já referidas no início. Interessante é a afirmação de Janaína Paschoal para quem, “tão humilhante como buscar a punição de seu agressor e vê-lo sair vitorioso doando uma única cesta básica, muita vez comprada pela própria vítima, é ver o Estado desconsiderar a sua vontade.” [16]

Apesar de ser coerente com a finalidade da lei, não cremos que tal disposição possa se sustentar frente à Constituição Federal, principalmente à luz dos princípios da proporcionalidade e da igualdade. Atente-se, com Luiz Flávio Gomes, que “o princípio da proporcionalidade tem base constitucional (é extraído da conjugação de várias normas: arts. 1º., III, 3º., I, 5º., caput, II, XXXV, LIV, etc.) e complementa o princípio da legalidade.” [17]

Igualmente, “el principio de proporcionalidad que, como ya indicado, surgió en el Derecho de policía para pasar a impregnar posteriormente todo el Derecho público, ha de observarse también en el Derecho Penal.” [18]

Por que proibir a aplicação de uma pena alternativa à pena privativa de liberdade em razão do sujeito passivo de um crime? A exclusão deve ser prevista em razão da gravidade do delito, não em razão da vítima ser mulher em situação de violência doméstica e familiar. O que justifica, à luz da Constituição Federal, a adoção de regime mais gravoso para determinados crimes é a própria gravidade do delito (aferida pela pena abstratamente cominada ou pelo bem jurídico tutelado, o que não é o caso, mesmo porque a lei não tipifica nenhuma conduta penalmente relevante). A propósito, observamos, mutatis mutandis, que o art. 61 da Lei nº. 9.099/95 foi modificado exatamente para retirar aquela ressalva quanto ao procedimento especial (que ensejava a exclusão do crime como sendo de menor potencial ofensivo). A doutrina nunca entendeu muito bem o porquê da ressalva, pois o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo deveria levar em conta apenas a pena máxima abstratamente cominada, sendo o tipo de procedimento absolutamente indiferente para aquele fim. Tal entendimento acabou prevalecendo com a promulgação da Lei nº. 11.313/06 que alterou a redação do art. 61 da Lei nº. 9.099/95.

Note-se que a Constituição Federal, razoável e proporcionalmente, estabelece regimes penal e processual mais gravosos para autores dos chamados crimes hediondos, a tortura, o tráfico ilícito de drogas, o terrorismo, o racismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático; ao passo que permite medidas despenalizadoras quando se trata de infração penal de menor potencial ofensivo (cfr. arts. 5º., XLII, XLII e XLIV e 98, I, ambos da Constituição Federal). 

Como, então, tratar diferentemente autores de crimes cuja pena máxima aplicada não foi superior a quatro anos, se atendidos os demais requisitos autorizadores da substituição (art. 44 do Código Penal)? Assim, acusados por crimes como furto, receptação, estelionato, apropriação indébita, peculato, concussão, etc., podem ser beneficiados pela substituição da pena privativa de liberdade por prestação pecuniária ou multa. Já um condenado por uma injúria ou uma ameaça (pena máxima de seis meses), estará impedido de ser beneficiado pela substituição, caso tenha praticado aqueles delitos contra uma mulher, em situação de violência doméstica e familiar. Convenhamos tratar-se de um verdadeiro despautério; a violação aos referidos princípios constitucionais salta aos olhos! 

Na lição de Sebástian Melo, “sendo o Direito Penal um instrumento de realização de Direitos Fundamentais, não pode prescindir do princípio da proporcionalidade para realização de seus fins. Esse princípio, mencionado com destaque pelos constitucionalistas, remonta a Aristóteles, que relaciona justiça com proporcionalidade, na medida em que assevera ser o justo uma das espécies do gênero proporcional. Seu conceito de proporcionalidade repudia tanto o excesso quanto a carência. A justiça proporcional, em Ética e Nicômaco é uma espécie de igualdade proporcional, em que cada um deve receber de forma proporcional ao seu mérito. Desta forma, para Aristóteles, a regra será justa quando seguir essa proporção. Nas palavras do filósofo grego em questão, a sua igualdade proporcional representa uma ´conjunção do primeiro termo de uma proporção com o terceiro, e do segundo com o quarto, e o justo nesta acepção é o meio-termo entre dois extremos desproporcionais, já que o proporcional é um meio termo, e o justo é o proporcional´.” [19] 

Ao comentarmos adiante o art. 41, aprofundaremos esta questão à luz dos referidos princípios constitucionais. Mas, desde logo, reafirmamos, com Humberto Ávila, que a igualdade (que ele denomina de postulado) “estrutura a aplicação do Direito quando há relação entre dois sujeitos em função de elementos (critério de diferenciação e finalidade da distinção) e da relação entre eles (congruência do critério em razão do fim).” Para ele, a proporcionalidade (que também seria um postulado) “aplica-se nos casos em que exista uma relação de causalidade entre um meio e um fim concretamente perceptível. A exigência de realização de vários fins, todos constitucionalmente legitimados, implica a adoção de medidas adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito.” [20]

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Sobre o autor
Rômulo de Andrade Moreira

Procurador-Geral de Justiça Adjunto para Assuntos Jurídicos do Ministério Público do Estado da Bahia. Foi Assessor Especial da Procuradoria Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador - UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador - UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), Praetorium (MG) e IELF (SP). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Rômulo Andrade. O STF e a Lei Maria da Penha: uma lamentável decisão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3145, 10 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21057. Acesso em: 22 dez. 2024.

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