Artigo Destaque dos editores

Possibilidade de enquadramento do tradutor técnico como microempreendedor individual.

Uma abordagem lógico-jurídica

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07/05/2012 às 11:20
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2  o Mercado da tradução

Há três mil anos os seres humanos recorrem à tradução para se comunicar e trocar informações: já no II milênio a.C., nas civilizações assíria, babilônica e hitita, encontram-se os trabalhos de escribas especializados na língua egípcia, ou aramaica, conforme Mounin (1965, p. 29-30), citado por Da Vico (2007, p. 8). Entretanto, apesar do inegável aporte ao desenvolvimento cultural dos povos, a tradução era inicialmente considerada “uma tarefa de escravos”, tocando-lhe um papel “secundário, quase sempre anônimo, para o qual não se exigiam maiores credenciais nem se concedia melhor apreço” (ROCHA, 2001, p. 44).

Desde tempos imemoriais os homens se agregam e trocam informações. Dado que jamais houve, até onde o conhecimento alcança, “língua universal” (Berlitz 1988:19), pode-se dizer que a tradução tem ocupado, quase invisivelmente, lugar primordial na civilização humana desde seu nascedouro. (FONTES, 2008, p. 2).

Para entendermos a importância indiscutível da tradução basta imaginar como seria a história da humanidade sem a tradução, que, nas palavras de Lia Wyler[16], “viabilizou a troca de bens simbólicos entre povos distintos, desencadeando a transformação de línguas, hábitos e crenças, redefinindo áreas de influência política, reagrupando povos e civilizações” (WYLER, 2003, p. 11), adquirindo no Brasil um papel relevante em função da “miríade de conexões [...] com o exterior ao longo de toda a sua trajetória, mormente suas relações históricas, políticas e demográficas” (FONTES, 2008, p. 3-17).

Apesar de estar-se vivendo a Era Informacional, que nos proporciona, a cada instante, progressos e avanços tecnológicos consideráveis, ainda nenhum programa de computador conseguiu substituir a capacidade criativa de um tradutor humano, não sendo possível afirmar que a “necessidade de tradução esteja a caminho de terminar” (FONTES, 2008, p. 17). As línguas, sempre em constante evolução, demandam atualização constante e formação contínua, não sendo possível reduzir a complexidade de expressão dos seres humanos a códigos preestabelecidos:

Quando, em 1924, Carlos Maximiliano (2001:1-2) introduziu o clássico de primeira hora Hermenêutica jurídica e aplicação do direito, que com quase cem anos da primeira edição ainda impera no meio jurídico nacional, iniciou por reclamar das dificuldades de entabular o tema na língua portuguesa, pois almejava apresentar ao país a melhor doutrina alemã do século XIX (Thibaut, Zachariae, Schaffrath, Rumpf, Gmür), ditando que a língua alemã, no terreno da filosofia jurídica, “é mais precisa e opulenta que as neolatinas”. Nesse contexto, dizia ele, termos como “hermenêutica” e “interpretação” não carregavam todo o significado que lhes pretendia imprimir, embaraçando ainda mais sua já difícil empreitada. (FONTES, 2008, p. 8)

Entretanto, não recebem os tradutores e sua arte a devida atenção pelo direito ou por outras ciências, como a história e a sociologia, registrando-se escassa bibliografia sobre o assunto, deixando o pesquisador desanimado e “tentado a abandonar a [...] tarefa de reunir e analisar dados dispersos” (WYLER, 2003, p. 25).

Os tradutores, artesãos das palavras, profissionais da escrita, transpõem as culturas, permitindo a interação e a comunicação entre os povos. Eles transpõem textos de uma língua a outra. Mas não é uma simples transposição terminológica. É necessário, para traduzir, inteirar-se dos conceitos expressos no texto original; além de pesquisa terminológica, precisa-se entender o conteúdo para encontrar na língua de chegada expressões que preservem o significante conceitual, reformulando, a mensagem, quando necessário, para que adquira na língua de chegada o idiomatismo imprescindível.

“O primeiro requisito que um tradutor deve possuir é o conhecimento profundo da sua língua materna, para a qual ele traduz”, escrevia Paulo Rónai[17] (1976, p. 10); mas não menos importante é sua capacidade de pesquisa e de entendimento, que lhe permite se inteirar dos assuntos mais diversos, pois, nas palavras de Adail Sobral[18], “o tradutor é um generalista, um pesquisador de tudo, um eterno curioso por força de sua atividade” (BENEDETTI e SOBRAL, 2003, p. 207). De fato, a tradução abrange os mais diferentes campos do saber, desde a medicina ao direito, da literatura à finança, das ciências matemáticas à física, da engenharia mecânica à eletrônica, da arte em geral ao cinema.

Segundo a Classificação Brasileira de Ocupações[19] (BRASIL, CBO, 2010), o trabalho dos tradutores encontra-se agregado à Família Ocupacional referente aos Filólogos, Tradutores, Intérpretes e afins. A descrição do conjunto de atividades desempenhadas pelos tradutores[20] (BRASIL, CBO, 2010, p. 386-387) elucida que os tradutores: “Traduzem, na forma escrita, textos de qualquer natureza, de um idioma para outro, considerando as variáveis culturais, bem como os aspectos terminológicos e estilísticos, tendo em vista um público-alvo específico”. Referencia também que a formação requerida para o exercício da ocupação de tradutor é o diploma de ensino médio ou o diploma de técnico para tradutores e intérpretes, considerando necessária, ademais, para o pleno desenvolvimento da atividade, uma experiência superior a cinco anos.

As informações apresentadas pela CBO sobre as condições da ocupação relatam que os tradutores atuam nas seguintes condições:

Trabalham em serviços especializados de eventos, congressos e seminários, de atividades empresariais variadas, da administração pública, em empresas, universidades, fundações e outras instituições, de caráter público ou privado. A maioria dos tradutores e intérpretes trabalha como autônomos, seja de forma individual ou em grupos, por projetos, podendo desenvolver suas atividades também à distância. [...]. Os profissionais podem trabalhar em horários irregulares e, em algumas atividades, estar sujeitos a permanências prolongadas em posições desconfortáveis, a ruídos intensos, bem como a trabalhos sob pressão de prazos. (BRASIL, CBO, 2010)

Entre os recursos necessários para o exercício da atividade elencados pela CBO encontram-se: “Computador; Dicionários; Fax/ telefone; Gramáticas descritivas; Internet; Livros; Manual de redação e estilo; Memórias de tradução; Telefone para surdos (ts); Textos clássicos”.

Entretanto a CBO não é norma, sendo somente um guia de referência. Quando, por exemplo, ela referencia ser necessário para o exercício da ocupação de tradutor o diploma de ensino médio ou o diploma de técnico para tradutores e intérpretes, está tão somente se referindo ao que poderia ser considerado um pré-requisito ao exercício da tradução, mas não existe lei alguma que proíba alguém com o diploma de ensino fundamental de traduzir, existindo tradutores profissionais exímios que trabalham há anos sem diploma algum.

O SEBRAE (Serviço Brasileiro de apoio às micro e pequenas empresas) divulga, por exemplo, que: “a profissão não é regulamentada, não existe nenhum órgão oficial que aplique uma prova de regulamentação, como fazem a OAB, o CREA, entre outros. Assim, qualquer pessoa, sem nenhum pré-requisito, pode ser tradutora, mesmo sem ter completado o ensino fundamental” (SEBRAE, p. 3, grifo nosso).

Incentiva, dessa forma, o acesso indiscriminado de pessoas sem preparo técnico e cultural nesse mercado, demonstrando absoluto desconhecimento da matéria, com afirmativas irresponsáveis como a seguinte:

Hoje, qualquer pessoa pode traduzir um texto da área da medicina, ou qualquer outra área - simplesmente porque o conhecimento é público e acessível e com as ferramentas de pesquisa de que o tradutor de hoje dispõe, é possível traduzir um texto sem nunca ter tido contato à [sic] área a que pertence. O tradutor de hoje, segundo estatísticas, é jovem, inexperiente, auxiliado com múltiplos recursos bibliográficos e com uma grande quantidade de ferramentas e estratégias de pesquisa on-line. (SEBRAE, p.3, grifo nosso)

Atualmente, de qualquer forma, conforme Francis Henrick Aubert[21] “o mercado da tradução deixou de ser percebido apenas em sua dimensão editorial (hoje responsável [...] por não mais do que 5% do volume total de traduções), para demandar competências nas áreas jurídicas e técnicas” (BENEDETTI, 2003, p. 8); a especialização advinda com o passar dos anos dividiu o mercado da tradução profissional em três grandes áreas. São elas: a tradução editorial (autoral), a tradução pública (vulgo juramentada), e a tradução técnica, diferenciadas mais adiante.

Contudo, “até quase a segunda metade do século XX a tradução escrita no Brasil tinha predominantemente caráter de exercício acadêmico ou prazeroso e de ocupação das elites intelectualizadas”, escreve Lia Wyler, em “Línguas, poetas e bacharéis: crônica da tradução no Brasil” (WYLER, 2003, p. 51), o único livro publicado sobre o desenvolvimento histórico do ofício do tradutor no país.

O título já revela esta evolução, que começa com os línguas, “como era chamado então o tradutor em língua oral” (WYLER, 2003, p. 29), os intérpretes do século passado que auxiliaram os portugueses à época da colonização, “nos contatos com as tribos indígenas e na exploração inicial da terra”, e passa pelos poetas das elites intelectualizadas, para chegar aos bacharéis.

Relata Wyler (2003, p. 62-68) que, no Brasil, a tradução escrita tem sido a atividade-meio dos missionários, “registrando-se um aumento no número de tradutores (29 tradutores) e uma variedade maior de temas” somente no século XVIII, preanunciando “o surgimento de um tipo de tradução a que chamam 'técnica' até os dias de hoje”.

Em 1939, o Departamento de Imprensa e Propaganda, coibiu “a entrada no Brasil de publicações estrangeiras nocivas aos interesses brasileiros” e os editores concentraram, assim, “suas atenções na publicação de livros de ciência, historiografia, didáticos, infantis e traduções de ficção estrangeira” (WYLER, 2003, p. 111).

Embora a tradução continuasse a configurar, por força das circunstâncias, uma atividade alternativa [...] seus tradutores não eram mais, como nos séculos anteriores, poetas poliglotas e diletantes. Eram escritores consagrados em ascensão, ou seja, os responsáveis em qualquer cultura pela criação e reprodução dos padrões linguísticos do idioma. (WYLER, 2003, p. 117, grifo nosso).

Entre os escritores que traduziam, Monteiro Lobato foi quem mais produziu, trabalhando incansavelmente, compelido pela necessidade de ganhar dinheiro, numa média de “vinte páginas por dia, de dois a três livros por mês” (WYLER, 2003, p. 120).

Gradativamente a relevância da tradução era percebida no país, graças ao “lançamento contínuo de traduções” no mercado livreiro nacional, assinadas por grandes nomes da literatura, enquanto os jornais denunciavam as más traduções e outros aspectos da atividade tradutora de alguns escritores que, “tinham na tradução um interesse meramente financeiro”, por ganhar mais com ela do que com a própria criação[22], levando-os a “se dedicar a ligeiras revisões nas traduções feitas por alguém sem expressão literária com quem dividiam meio a meio o pagamento” (WYLER, 2003, p. 121-123).

 Junto com as críticas às traduções incorretas e de má qualidade, surge uma nova questão, uma “outra face do problema: a remuneração dos tradutores. Traduzia mais quem traduzisse mais barato [...].Por isso só traduzia alguém [...] a quem não faltasse coragem para traduzir. [...] Era preciso que entendessem que conhecer inglês e francês não era o mesmo que saber traduzir” (WYLER, 2003, p. 124). Quem traduzia textos de medicina, por exemplo, deveria ser médico, pois “a tradução exigia acima de tudo, conhecimento do assunto da obra a traduzir. Daí que só filósofos poderiam traduzir filosofia, só poetas poderiam traduzir poesia” (WYLER, 2003, p. 124).

Erico Veríssimo, que “começara a vida literária traduzindo” (WYLER, 2003, p. 124), e “traduzia madrugada adentro para complementar o orçamento doméstico”, em 1942, como conselheiro literário da Editora Globo, atacou “de frente o problema das lamentáveis traduções [...]”, contratando tradutores

[...] em regime permanente e com salário fixo. [...]. A sala dos tradutores era equipada com máquina de escrever, fita, manutenção e papel, uma rica biblioteca de consulta com dicionário de todo o tipo e enciclopédias estrangeiras famosas. Além da garantia de trabalho, os tradutores também contavam com a inestimável oportunidade de discutir com colegas as dúvidas que sempre surgem no decorrer de uma tradução. (WYLER, 2003, p. 127-128, grifo nosso).

Essa experiência que marca uma “época de ouro” da tradução brasileira terminou em 1947, devido a problemas financeiros que a editora teve que enfrentar (WYLER, 2003, p. 128). O mercado da tradução, de qualquer forma, não parou de crescer e de se especializar, ao ponto que, já em 1956, Paulo Rónai, em coro com Edmond Cary, sente-se propenso a chamar o século XIX de a “época da tradução”:

Com efeito: aos olhos do autor, o mundo moderno reveste as feições de uma imensa máquina de traduzir, a rodar com rapidez cada vez maior. A comparação poderia parecer exagerada, se não se apoiasse em estatísticas eloquentes sobre a média anual de livros traduzidos no mundo inteiro, o número de filmes vertidos em um ou vários idiomas, a multidão de organizações internacionais multilíngues e de reuniões internacionais com serviços de interpretação. (RONAI, 1987, p. 66)

E essa máquina de traduzir não parou de crescer.

Atualmente, a tradução engloba diferentes “áreas”: técnica, pública, editorial, localização, legendagem-dublagem e diferentes perfis profissionais:

[...] tradutores de obras literárias e técnicas para editora; tradutores assalariados e autônomos que traduzem textos de circulação interna em empresas comerciais e públicas; intérpretes e tradutores de conferências; tradutores públicos e intérpretes comerciais; tradutores de peças teatrais; tradutores de letras de músicas; tradutores pra legendas de filmes; tradutores para dublagem de filmes e vídeos; tradutores que transcrevem fitas gravadas; e, mais recentemente, tradutores de sites da Internet e tradutores especializados em localização – a tarefa de tornar um produto consumível pelo mercado brasileiro. (WYLER, 2003, p. 13)

Para melhor entender o objeto dessa pesquisa, conceitua-se a seguir as diferentes tipologias da tradução por grande área e sua respectiva evolução.

2.1    Tradução autoral

Utiliza-se no âmbito da tradução o termo tradutor literário ou editorial para referir-se aos tradutores que traduzem para o mercado editorial. O termo editorial parece ser mais abrangente, pois, de fato, nem tudo que é publicado é literatura, podendo ser também material científico ou propriamente técnico, como no caso de livros de medicina, de direito, de ciências, etc.

Estas obras criativas são protegidas pela Lei de Direito Autoral (LDA), assim como o são os diálogos de filmes e seriados legendados ou dublados, as peças teatrais, as letras de música etc. A tradução desse tipo de material, portanto, também é protegida pela LDA[23]. Utiliza-se para tanto, nesta pesquisa, o termo tradução-autoral[24], entendendo-se com isso a tradução feita pelo tradutor-autor[25], ou seja, a modalidade de tradução protegida pelo Direito de Autor[26], distinguindo com exatidão quem trabalha sob o regime da LDA e quem trabalha sob as normas dos contratos civis ou trabalhistas (autônomos e assalariados).

Tradutor-técnico e tradutor-autor, na verdade, “não exercem atividades diferentes, afinal todos traduzem”, conforme Danilo Nogueira[27] expressou em conversa particular com a autora. Entretanto, existem algumas diferenças, como se verá adiante. Em primeiro lugar, o que distingue um do outro é o tipo de material a ser traduzido, ou melhor, o tratamento que a lei dá ao material que será impresso como livro ou veiculado como legenda, dublagem, roteiro de filme, (material que será, em seguida, comercializado) e tratamento das traduções consideradas não autorais.

Neste sentido são dois tipos diferentes de tradução ? uma é “tradução-obra” (tradução autoral) e a outra “tradução-serviço” (tradução técnica), ou ainda, conforme Benedetti, uma “tradução-fim”, outra “tradução-meio”:

Embora os assuntos tratados pelos diversos textos ou filmes que circulam pelo mercado da tradução costumem ser divididos, grosso modo, em técnicos e literários [...], o mercado, em termos de relação empregado-empregador e de critérios de remuneração, não se divide segundo esses padrões. Nestes termos o mercado se divide naquilo que chamarei aqui de traduções-meio e traduções-fim. (BENEDETTI, 2003, p. 23),

Ela define a tradução-fim, como sendo aquela “feita com o intuito de se transformar num produto que será posto à venda, produto este cuja razão de ser decorre da própria tradução: essa é a tradução feita, por exemplo, pelo mercado editorial e pelos estúdios de cinema e de televisão”. A finalidade dessa tradução, assim, resume-se em “reproduzir uma obra original em outra língua, obra esta também destinada ao consumo final pelo usuário”, que compra a obra “inserida no seu suporte: um sem o outro não tem razão de ser, o que faz da própria tradução um produto final” (BENEDETTI, 2003, p. 23-24).

Essas traduções são obras abrangidas pela Lei de direito autoral (LDA), que protege as criações de espírito, protege a forma como elas são expressas, pois não há propriedade intelectual sobre a história em si, conforme ilustrado adiante[28].

O art. 7, XI da Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998 estatui que

Art. 7. São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:

XI - as adaptações, traduções e outras transformações de obras originais, apresentadas como criação intelectual nova;

E, no seu art. 14, reforça: “É titular de direitos de autor quem adapta, traduz, arranja ou orquestra obra caída no domínio público, não podendo opor-se a outra adaptação, arranjo, orquestração ou tradução, salvo se for cópia sua” (CFRB/88).

Carlos Alberto Bittar, trazendo o ensinamento de Clóvis Bevilaqua, elucida que o direito de autor “é inerente à criação da obra de engenho” e “protege a forma com que se exterioriza o pensamento ou a arte. Ampara, sob o seu manto protetor, as formas novas criadas pelo engenho humano” (BITTAR, 1977, p. 52-53, grifo nosso). O direito de autor não protege o conteúdo, não protege as ideias, mas a forma de expressão deste conteúdo, a forma pela qual as ideias são expressas. Não há como a LDA proteger as ideias, pois “as idéias, uma vez concebidas, são patrimônio comum da humanidade” (ASCENSÃO, 1997, p. 28), “pertencem ao acervo cultural da humanidade e são insuscetíveis de atribuição particularizada, como propriedade, à determinada pessoa. (BITTAR, 1977, p. 53, grifo nosso). Não existe nenhuma avaliação quanto ao conteúdo, não interessa a qualidade da obra, não importa se a obra tem valor ou se tem mérito artístico ou literário ou científico. O importante é que seja o resultado de uma atividade de criação intelectual e que apresente o requisito da originalidade, pois

[...] para o amparo legal, despicienda é a utilidade da obra. Não importa também o seu valor; [...] A originalidade da obra é o requisito bastante, como assinala o Prof. Antônio Chaves, ressaltando que, para a proteção, a obra deve ser original, 'sem consideração ao merecimento, ao destino, ou à extensão'. (BITTAR, 1977, p. 54-55, grifo nosso)

A tradução nada mais é que uma forma original (única, porque cada tradução será diferente de outra) de expressar algo que já foi expresso em outra língua, devendo-se considerar original, conforme prelaciona Pedro Vicente Bobbio, “o que não possa ser confundido com outra criação intelectual, por excesso de semelhança substancial ou formal” (BOBBIO, 1951, apud BITTAR,1977, p. 55). A tradução autoral, portanto, é protegida por ser tradução de uma obra originária já protegida pela LDA, pois “sobre a obra originária desenvolve-se uma atividade intelectual que permite que a obra derivada se apresente como criação intelectual nova” (ASCENSÃO, 1997, p. 45)[29]. Ilustra Ascensão que:

A tradução incorpora a essência criadora da obra primígena, mas altera-lhe a forma externa. [...] Como toda a transformação, a tradução supõe um mínimo de criatividade para representar uma obra protegida. Como não há nenhuma tradução matematicamente exata, pois a correspondência de língua para língua não é perfeita [...] fica sempre um grande espaço a ser preenchido pela imaginação do tradutor [...]. (ASCENSÃO, 1997, p. 182)

Não é a tradução em si a ser protegida, não é o ato tradutório em si, mas a atividade intelectual sobre uma obra originária. “De fato a tradução supõe uma obra originária e uma elaboração, que faz surgir uma obra derivada” (ASCENSÃO, 1997, p. 182). Assim, não são todas as traduções a serem protegidas: “uma tradução mecânica ou rotineira não passa os umbrais do direito de autor. Estaria na mesma situação que a tradução realizada por um computador, não protegível porque não representa obra humana. [...]”.

Original porque não existia até então, na língua traduzida, aquela obra, escrita com aquelas palavras e construções linguísticas, pois, conforme BENEDETTI (2003, p. 31), “o texto de chegada já não é o texto de partida. É outro texto. E deste o autor é tradutor. A verdade é que o DNA do tradutor marca indelevelmente a forma como é concebido o texto de chegada. [...] tradução sem autor é uma impossibilidade de fato.”

A maioria da doutrina sobre direito de autor considera-o um direito de natureza sui generis, conforme assevera José Carlos Costa Neto (1998, p. 3): “A peculiaridade seria decorrente, basicamente, da fusão – em seus elementos constitutivos essenciais – de características pessoais com patrimoniais”.

O art. 22 da Lei nº 9.610 de 1998 estatui que: “Pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou”. A legislação brasileira adotou, assim, a opção oferecida pela teoria dualista dos direitos autorais, conciliadora das precedentes teorias[30], segundo a qual coexistem no direito de autor dois direitos de natureza diferente, derivados de uma única fonte, a obra intelectual: os direitos patrimoniais do autor, de natureza econômica e negociáveis, e os direitos morais do autor, que integram os direitos da personalidade do autor (COSTA NETTO, 1998, p. 50-51).

Os direitos morais do autor[31], portanto, são direitos personalíssimos, erguidos à condição de direitos fundamentais da pessoa, esculpidos no art. 5 da Constituição Federal[32], entre os “direitos e garantias fundamentais”, junto com o direito à vida, à liberdade, à honra e à identidade pessoal (ao nome). Isso quer dizer que a criação é parte do autor, tudo o que cria é parte dele, é estritamente vinculado a ele e ninguém poderá utilizar a obra, mudá-la, sem a sua devida autorização.

Os direitos de personalidade são revestidos de um “caráter de proeminência relativamente aos outros direitos subjetivos e de essencialidade para a pessoa” (CUPIS, 1961 apud COSTA NETTO, 1998, p. 14), pois o objeto desses direitos encontra-se em “nexo estreitíssimo com a pessoa [...] e identifica-se com os bens de maior valor susceptíveis de domínio jurídico” (COSTA NETTO, 1998, p. 14). Por serem essenciais e inerentes à pessoa, os direitos de personalidade revestem-se das características de intransmissibilidade, indisponibilidade, irrenunciabilidade, imprescritibilidade e inexpropriabilidade.

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São direitos personalíssimos do autor os direitos à paternidade da obra, de ligação do nome à obra, ao ineditismo, à integridade da obra, à modificação, ao impedimento de circulação da obra (conferido quando e se a publicação ferir a reputação, a honra e a imagem do autor).

Os contratos que os tradutores-autores celebram com os editores deveriam sempre se reger pela LDA. Entretanto são contratos de adesão, onde os tradutores-autores cedem seus direitos patrimoniais[33], recebendo o montante correspondente à tradução da obra[34], sendo praxe no mercado “o pagamento de um valor único pela realização do trabalho de tradução” (ANDRADE, 2007, p. 18).

Anderson, citado por Andrade, alerta também que, através dos contratos de cessão de direitos autorais firmados entre tradutor e editora, este “cede e transfere à editora, em caráter definitivo, a totalidade de seus direitos[35] autorais relativos à tradução, podendo esta explorar comercialmente, alterar [o texto...]” (ANDERSON, 2005 apud ANDRADE, 2007, p. 16), podendo esta cláusula ser considerada nula, haja vista o caráter de indisponibilidade dos direitos morais de autor. Neste sentido, Andrade considera que

[...] o direito de “assegurar a garantia de integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo como autor em sua reputação ou honra” (art. 24, IV, LDA) é um direito moral e, portanto, inalienável e irrenunciável. Esse direito não poderia, em tese, constar nos contratos de cessão (ver arts. 27 e 49, I, LDA). (ANDRADE, 2007, p. 16-17)

Com muita propriedade, em 1998, numa observação sobre os costumes do mercado editorial americano, mas aplicável também ao mercado brasileiro, Venuti, citado por Andrade, já constatava que

[...] os tradutores são rotineiramente alienados do produto de seu trabalho [...] os contratos padronizados os forçam a abrir mão de todos os direitos sobre o texto traduzido [...] Os editores ainda os vêem como ‘trabalhadores de aluguel’, oferecendo-lhes um pagamento fixo [...] e raramente cedendo-lhes parte dos direitos autorais e das vendas. (VENUTI, 2002 [1998] apud ANDRADE, 2007, p. 18)

Quanto aos valores inferiores do mercado editorial brasileiro, Paulo Rónai já escrevia em 1976 que “as editoras – salvo exceções respeitáveis – estão interessadas em contratar tarefeiros que executem determinada tradução dentro do menor prazo possível e pelo menor preço possível.” (RÓNAI, 1976, p. 8)

Em relação ao mercado editorial brasileiro, Barbosa[36] (2005, p. 8) afirma ser inegável sua importância. Apresenta, de fato, um parque editorial enorme, em contínua expansão, sendo até representado “no exterior (nas feiras do livro, como a de Frankfurt, por exemplo) (BARBOSA, 2005, p. 10). Segundo dados divulgados em julho de 2011 pelo IBOPE Inteligência, a demanda por livros continua aumentando no Brasil, e, conforme a pesquisa, o brasileiro gastará, até o final de 2011, R$ 7,18 bilhões para comprar livros e publicações impressas. Esses dados são confirmados também pela pesquisa “Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro”, realizada pela Fundação de Pesquisas Econômicas (FIPE/USP), sob encomenda do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e da Câmara Brasileira do Livro (CBL), que registrou um crescimento de 8,12% no faturamento do setor editorial em 2009, (R$ 4,5 bilhões) acompanhado por um crescimento de 13,12% no número de exemplares vendidos (SNEL, CBL, 2011).

Wyler (2003, p. 13) afirma que “80% dos livros de prosa, poesia e referência, bem como manuais e catálogos” que circulam no país são na verdade traduções de obras estrangeiras, e Barbosa acrescenta que o profissional que trabalha com a tradução editorial

[...] raramente é responsável pela tradução da grande obra literária, em prosa ou verso (sendo essa a província de escritores, professores e pesquisadores, raramente do profissional tradutor), mas traduz primordialmente best-sellers, não-ficção, obras de auto-ajuda, livros científicos, de divulgação científica e técnicos. (BARBOSA, 2005, p. 10).

Em contrapartida, os prazos também se reduziram, e se já nos anos 30 “Verissimo [Érico] traduzia madrugada adentro para complementar o orçamento doméstico” (WYLER, 2003, p. 126), imagine-se as condições de pressão em que trabalha atualmente um tradutor. Lia Wyler confirma a inferência: “no caso específico da ficção de consumo, a globalização tem tornado mais aguda a necessidade de reduzir prazos para atender à programação de lançamentos simultâneos em vários países do mundo” (BENEDETTI, 2003, p. 197).

Infere-se a mesma lógica em relação a outro nicho de mercado em grande expansão, com grande procura de tradutores profissionais: é o mercado das traduções de legendas para cinema, DVD para locação e televisão a cabo, que exibem diariamente grandes quantidades de filmes e seriados. Barbosa atenta para os prazos de entrega exíguos desse mercado. “Determinados programas noticiosos e esportivos são traduzidos pela madrugada afora, para serem exibidos já de manhãzinha”, relata Barbosa citando Rodrigues (BARBOSA, 2005, p. 16).

 A respeito dessa área muito pouco se conhece. “Algumas das empresas que fazem essas traduções encontram-se fora do Brasil (por motivos técnicos e financeiros)”, sendo que apenas duas ou três atuam no mercado brasileiro, realizando “a maior parte do trabalho” (BARBOSA, 2005, p. 16)[37]. Aduz Barbosa que é um trabalho altamente especializado, que não pode ser “feito por acaso”, pois “além do domínio da técnica, a principal qualidade que um legendador deve ter é a capacidade de síntese, de tal forma que possa fazer caber as falas originais em exíguas duas linhas com 24 a 32 caracteres” (BARBOSA, 2005, p. 16). A Gemini[38], que opera no mercado de legendagem, dublagem e produção audiovisual, por exemplo, qualifica seus tradutores através de um curso por ela oferecido no Gemini Training Center (a pagamento)[39], sobre técnica de tradução audiovisual “com o objetivo de capacitar profissionais de tradução audiovisual para o mercado de trabalho”, como se lê no próprio site da empresa.

Carolina Alfaro de Carvalho comenta em seu site que:

Atualmente, o método de trabalho mais comum é à distância: o produtor gera uma cópia digital em baixa resolução do filme e a transfere para o tradutor via internet. Este também manda a tradução pronta (em formato de texto) pela internet para o cliente. Portanto, a localização física do tradutor e do cliente deixou de ser relevante, e mesmo o processo de seleção pode ser realizado à distância. (CARVALHO, 2008)[40]

Ademais, os tradutores de legendas e dublagem necessitam obedecer a determinadas exigências, próprias de cada empresa: “geralmente, o solicitante de um trabalho de legendagem envia uma norma a qual o tradutor deverá seguir, por exemplo: não utilizar palavrões, limite de caracteres por linha etc.” (Universidade São Judas, 2011. p. 2).

É um teletrabalho que apresenta também o caráter de intermitente, podendo haver períodos em que são requisitadas diversas traduções em séries e períodos mais tranquilos ou com nenhum trabalho.

As tecnologias digitais também libertaram clientes e tradutores da restrição do espaço. Não é mais necessário estar próximo, para pegar e levar pilhas de fitas VHS e scripts em papel. Atualmente, o método de trabalho mais comum é à distância: o produtor gera uma cópia digital em baixa resolução do filme e a transfere para o tradutor via internet. Este também manda a tradução pronta (em formato de texto) pela internet para o cliente. Portanto, a localização física do tradutor e do cliente deixou de ser relevante, e mesmo o processo de seleção pode ser realizado à distância. (CARVALHO, 2008)

Os valores pagos aos tradutores de multimídia são os mais baixos, provavelmente porque muitos se sujeitam à exploração das empresas do mercado, movidos pelo interesse em poder legendar filmes e seriados internacionais, por ser uma oportunidade de entrar no mercado da tradução em geral, e pela demanda constante de profissionais qualificados (pois muitos acabam saindo em busca de melhores condições). Carvalho, em comentário sobre o mercado, aduz que: “A remuneração cai, mas há grande quantidade de serviço, portanto elas são um bom ponto de entrada para os profissionais que não tenham outros contatos em algum nicho mais bem remunerado. São um bom local para se aprender e se ganhar autonomia” (CARVALHO, 2008). Rodrigues comenta também que “outra dificuldade para a manutenção do profissional no mercado é a insegurança inerente a ele, que flutua ao sabor da cotação do dólar” (RODRIGUES, 2005, In: BARBOSA, 2005, p. 16).

Quem traduz para o mercado de legendagem e dublagem também assina contratos de cessão de direitos patrimoniais, com os quais é paga, na verdade, a prestação de serviço por minuto de filme ou número de caracteres. Existe também um pequeno nicho de legendadores que oferecem um produto completo às empresas que não pertencem ao ramo da tradução, conforme ilustra Alfaro:

E vale lembrar que os recursos digitais aumentaram a produção de filmes não comerciais, portanto invisíveis ao público de cinema e TV: aqueles feitos por empresas e organizações, para fins educativos, institucionais e técnicos. Trata-se de um mercado “independente” e mais pulverizado ainda, que está em franco crescimento e costuma oferecer uma remuneração muito boa. (CARVALHO, 2008)

Computam-se entre as despesas do tradutor-autoral as referentes a: contador, livros de gramática, estilo, dicionários, computador, impressora, cartucho de tinta; no caso especifico dos tradutores de multimídia, acrescentam-se: programas específicos para legendagem, cursos de técnicas de legendagem, cursos de atualização, tempo envolvido na organização do trabalho etc. Para conseguir receber um retorno adequado ao trabalho intelectual envolvido e às despesas suportadas, o tradutor-autor trabalha sob pressão, devido aos prazos, sempre mais curtos, e extrapolando o limite máximo de horas permitido, por exemplo, a quem trabalha com digitação ou informática, ficando exposto à tela de computar e efetuando movimentos repetitivos, como a digitação (máximo 6 horas por dia, com pausas de 15 minutos a cada hora, segundo a Norma Reguladora 17)[41]. Os danos à saúde são explícitos.

Vale lembrar que as editoras, apesar de suportarem os riscos de fracasso de um livro traduzido e custearem “os direitos de tradução ao autor, [...] o processo de tradução propriamente dito, revisão e confecção do livro, que é seu produto final, do qual precisa[m] auferir lucros”, (BENEDETTI, 2003, p. 24), são beneficiadas[42] pelo instituto da imunidade tributária em relação aos impostos, conforme estatuído no artigo 150, inciso VI, d[43].

Já ensinava Monteiro Lobato, citado por Wyler:

A literatura dos povos constitui o maior tesouro da humanidade, e povo rico em tradutores faz-se realmente opulento, porque acresce a riqueza de origem local com a riqueza importada. Por que não possuir tradutores torna o povo fechado, pobre, indigente, visto que só pode contar com a produção literária local. (LOBATO apud WYLER, 2003, p. 119)

Realizando uma interpretação dos conceitos operacionais relatados no capítulo anterior, em concomitância com os dados ilustrados neste capítulo sobre o mercado de tradução autoral, depreende-se que o tradutor-autor, profissional intelectual, trabalhador do conhecimento, trabalha como assalariado ou autônomo em modalidade teletrabalho, caracterizando um “sinal de crescente profissionalização” (OSTRONOFF, 2011), muitas vezes respeitando prazos de entrega apertados, com excesso de horas de trabalho e respeitando exigências e normas próprias de cada editora e empresa que atua no ramo.

O tradutor estritamente editorial assina um contrato de cessão dos direitos patrimoniais, de caráter personalíssimo. Entretanto, não recebe pelos direitos patrimoniais montante algum, sendo o valor que lhe pagam referente tão somente à “empreitada de obra de tradução” (OSTRONOFF, 2011). Resulta presente um caráter de parassubordinação à editora, na modalidade de trabalho intermitente.

Algumas editoras utilizam contratos de “empreitada com cessão de direitos patrimoniais”, outros de "encomenda de obra com cessão de direitos patrimoniais”, outras ainda “contratos de prestação de serviços de tradução com cessão de direitos autorais” (informação verbal). O tradutor compromete-se, em todos os casos, a entregar a obra completa traduzida.

Há, destarte, considerando a entrega da tradução como objeto do contrato de empreitada de obra intelectual, uma obrigação de resultado e não de meio, conforme leciona Carlos Alberto Bittar: “Nesse contrato, em que se objetiva a produção de uma obra, as partes atuam com independência. Nenhum vinculo de subordinação ou direção entre elas existe. Na empreitada importa o resultado, e a remuneração é proporcional ao trabalho executado.” (BITTAR, 1977, p. 34).

O tradutor de legendas também assina um contrato de cessão dos direitos patrimoniais, de caráter personalíssimo. Entretanto, não recebe pelos direitos patrimoniais montante algum, sendo o valor que lhe pagam referente tão somente ao serviço de tradução para legendagem e pago por minutos de filme ou número de caracteres (CARVALHO, Sintra, 2011). A parassubordinação é presente também no teletrabalho de legendagem, que se sujeita a prazos demasiadamente curtos, regras e exigências várias (Universidade São Judas, 2011. p. 2).

O tradutor de obras protegidas pela Lei de direitos autorais é considerado autor pela própria lei. Caso sejam empregados continuam tendo direito à autoria moral da obra traduzida (direito personalíssimo e indisponível), mas, neste caso, poderiam automaticamente perder os direitos patrimoniais.

2.2    Tradução pública e tradução de LIBRAS

Os Tradutores Públicos e Intérpretes Comerciais (TPIC) e os tradutores e intérpretes de Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), são as duas únicas categorias de tradução regulamentadas no Brasil. Por este motivo, conforme antes visto, são os únicos a poderem ser considerados profissionais liberais, existindo um acesso restrito a esse mercado, cujo ingresso é permitido tão somente aos que atenderem os requisitos previstos em lei.

O ofício de tradutor público (vulgo “tradutor juramentado”[44]), “submetido às Juntas Comerciais dos Estados Federados [...] representa o elo mais conhecido entre tradução e direito” (FONTES, 2008, p. 8):

Quando se fala a um tradutor sobre direito, ou a um jurista sobre tradução, provavelmente a primeira coisa que lhes vem à cabeça é a tradução juramentada. Verdade que esse ponto de contato mais evidente é também uma grande zona nebulosa, quase um enigma, tido como uma necessidade eventual “do mercado”, imposta ou pela “legislação moralizante” ou pela “burocracia voraz” (a depender do freguês), bem como um nicho profissional ao qual apenas um restrito rol de iniciados tem acesso. (FONTES, 2008, p. 48).

A institucionalização dos intérpretes no Brasil, dos já citados “línguas” da época da colonização, começa na segunda metade do século XVI, época em que recebem “a patente de cabos e cabos de entrada”, nomeados pelas autoridades locais (WYLER, 2003, p. 38), e culmina com a criação do cargo público de intérprete para o porto de Rio de Janeiro, em 10 de novembro de 1808, através do “decreto histórico do Príncipe Regente Nosso Senhor d. João [...] para as visitas dos navios estrangeiros que entram no porto [...]” (WYLER, 2003, p. 42).

O decreto de 9 de dezembro de 1823, criando “o logar de traductor jurado da Praça e intérprete da Nação”, registra pela primeira vez o vínculo entre os tradutores e os intérpretes, mas somente em 1850 serão eles sujeitos à nomeação pelos Tribunais de Comércio. A estes foi delegada a competência de nomeá-los e estabelecer seus emolumentos, (WYLER, 2008, p. 43). Conforme relata Wyler, os tradutores jurados da praça submetiam-se à mesmas “condições impostas aos comerciantes para se estabelecerem”.

Somente com o Decreto nº 13.609 de 1943 é que ficou definida a nomeação dos Tradutores Públicos e Intérpretes Comerciais (TPIC), conforme nova nomenclatura, através de “concurso público classificatório e universal, promovido pelas Juntas Comerciais[45], a quem incumbe agora habilitá-los e nomeá-los” [46] (WYLER, 2003, p. 44). Entretanto, o Decreto 13.609 não estipula qualificação profissional ou formação acadêmica, considerando suficiente a comprovação da proficiência através das provas escrita e oral, e não sendo exigido “nenhum nível de inscrição ou treinamento prévio [...] para inscrição no concurso [...]” (BARBOSA, 2005, p. 11).

A exigência legal do trabalho do TPIC, da firma e do carimbo que ele apõe ao documento traduzido, provém da necessidade de os documentos redigidos em outras línguas, ou emitidos por repartições estrangeiras, serem vertidos para o vernáculo, permitindo que funcionários e juízes conheçam exatamente o que consta no documento original, conforme relatório do Min. Gomes de Barros:

Justamente para obviar mal-entendidos, o legislador exige que pessoa efetivamente conhecedora de ambos os idiomas efetue a versão do texto para nosso vernáculo. A assertiva de que o idioma é de fácil compreensão para o juiz é insuficiente. É necessário que o texto estrangeiro seja acessível às partes. Bem por isso, a lei exige tradutor juramentado. [REsp 606.393-RJ – Rel. Min. Gomes de Barros, 2005]

O TPIC, através da nomeação e posse, que lhe conferem “o direito a exercer a profissão, direito esse que é vitalício” (BARBOSA, 2005, p. 11), é o único legalmente habilitado no país a traduzir documentos para fins legais ou judiciais, pois somente ele pode outorgar aos documentos aquela fé pública necessária[47] por guardar “presunção relativa (iuris tantum) de verdade, só podendo ser impugnado mediante prova suficiente cujo ônus recairá sobre a parte que o impugnar” (FONTES, 2008, p. 51).

O Decreto nº 13.609/1943 define, em seu art. 17, as funções dos TPIC:

Art. 17. Passar certidões, fazer traduções em língua vernácula de todos os livros, documentos e mais papéis escritos em qualquer língua estrangeira que tiverem de ser apresentados em juízo ou qualquer repartição pública, federal, estadual, municipal ou entidades mantidas, orientadas ou fiscalizadas pelos poderes públicos e que para as mesmas traduções lhes forem confiadas judicial ou extrajudicialmente por qualquer interessado.

Dessa forma, entende-se por tradução juramentada a tradução feita por TPIC, de algum documento em língua estrangeira, que dá ao documento traduzido o mesmo valor legal do original[48], podendo ser usada em todas as repartições da União, dos Estados ou dos Municípios, em qualquer instância, juízo ou tribunal e valendo contra terceiros, quando transcrita no Registro de Títulos e Documentos.[49]

Francis Aubert define a tradução jurídica como sendo

[...] a tradução de textos – de qualquer espécie – que resulte em um texto traduzido legalmente reconhecido como uma reprodução fiel do original (com fé pública). Esta característica de fidelidade, por sua vez, significa que, por meio de tal tradução, o texto original, expresso em um idioma estrangeiro, torna-se capaz de produzir efeitos legais no país da língua de chegada e, ainda, que tal tradução é correta, precisa, exaustiva e semanticamente invariante em relação ao original (obviamente, dentro dos limites dos meios de expressão disponíveis nas respectivas línguas/culturas que se confrontam no ato tradutório específico). (AUBERT, 1998, p. 14 apud FONTES, 2008, p. 50).

A função de Tradutor Público e Intérprete Comercial não é um cargo. É um ofício. O TPIC é um “agente auxiliar do comércio”[50], habilitado a prestar um serviço, mas não tem nenhum tipo de salário, não é servidor, não tem aposentadoria. São agentes públicos[51] “que servem ao Poder Público como instrumentos expressivos de sua vontade ou ação”, enquadrando-se, segundo a classificação de Bandeira de Mello (2003, p.226) na categoria de “particulares em colaboração com o poder público”. Eles prestam serviço sem vínculo empregatício com a administração, mediante delegação, e são remunerados diretamente pelo usuário, conforme tabela de emolumentos elaborada pela Junta Comercial[52]. Segundo a classificação de Meirelles são:

Agentes delegados: são particulares que recebem a incumbência da execução de determinada atividade, obra ou serviço público e a realizam em nome próprio, por sua conta e risco, mas segundo as normas do Estado e sob a permanente fiscalização do delegante. Esses agentes não são servidores públicos, nem honoríficos, nem representantes do Estado; todavia, constituem uma categoria à parte de colaboradores do Poder Público. Nesta categoria se encontram os concessionários e permissionários de obras e serviços públicos, os serventuários de ofícios ou cartórios não estatizados, os leiloeiros, os tradutores e intérpretes públicos, e demais pessoas que recebem delegação para a prática de alguma atividade estatal ou serviço de interesse coletivo. (MEIRELLES, 2006, 32 ed., p. 80-81, grifo nosso)

Por consequência, o TPIC terá as mesmas responsabilidades de qualquer outro funcionário público, apesar de não ser servidor público. Pode ser entendido como uma “combinação de tradutor e notário”, conforme Manual para Normalização de Traduções Juramentadas, (ATPMG, 2008, p.8), pois é obrigado a arquivar todos os documentos traduzidos para conferência e comprovação junto à Junta Comercial[53] em livros de 400 páginas, sequencialmente numeradas e rubricadas. Seu escritório será similar ao de um pequeno cartório, possibilitando aos clientes poder solicitar uma segunda via (20% do valor da tradução) ou cópia de traduções antigas arquivadas nos seus livros (50% do valor da tradução) (ATPMG, 2008, p.8). Também é obrigado a estar disponível em horário comercial, podendo tirar férias somente 30 dias por ano, após notificação à Junta Comercial de competência. Prevê o Decreto Federal n. 13.609 de 21 de outubro de 1943 que:

Art 15. A nenhum tradutor público e intérprete comercial é permitido abandonar o exercício do seu ofício, nem mesmo deixá-lo temporariamente, sem prévia licença da repartição a que estiver subordinado, sob pena de multa e, na reincidência, de perda do ofício.

Impõe ressaltar, “[...] que a atuação dos agentes públicos, independentemente da natureza do vínculo jurídico estabelecido com a Administração, [...], aproveita ao interesse público e, portanto, eles são equiparáveis a agentes administrativos para fins de responsabilização estatal, nos termos do art. 37, § 6º, da Constituição Federal[54]” (BRUNO, 2006, p. 13). Mais importante ainda, ele é legalmente responsável pelo conteúdo da tradução, de maneira que, se o texto traduzido não for fiel ao original, ou se tiver um erro ou interpretação divergente em relação ao documento original, ele responde civil e penalmente, pois, “na seara do direito penal brasileiro, as responsabilidades do tradutor encontram-se diante de graves consequências – lembrando que sobre os tradutores públicos pesam também as responsabilidades administrativas delineadas no Decreto 13.609/1943” (FONTES, 2008, p. 75).

É sabido, entre os tradutores, e facilmente confirmado com uma rápida busca na Internet, que existem várias agências e empresas especializadas em tradução juramentada no Brasil, apesar da delegação pública de TPIC ser pessoal e indelegável, não sendo, portanto, possível ser desempenhada por pessoa jurídica. Permanece assim a dúvida de como estas agências conseguem “juramentar” as traduções no Brasil. Como a fiscalização é precária, proliferam tradutores subcontratados pelas agências que pagam para o TPIC assinar ou pelos próprios tradutores juramentados, conforme elucida Barbosa:

[...] um segundo resultado da situação existente é que alguns tradutores juramentados permitem que outros tradutores façam traduções em seu lugar, as quais assinam posteriormente, outorgando-lhes fé pública. Esta prática é ilegal [...] [e] exime o poder público da responsabilidade de remediar uma situação caótica (na medida que fornecem um paliativo ilegal), priva as associações da força que necessitam para atuar em prol da categoria e deixa inseguro o cliente quanto à credibilidade do trabalho do tradutor. (BARBOSA, 2005, p. 12)

Os emolumentos tabelados pela Junta Comercial de cada Estado são devidos pelo “pronto exercício das funções inerentes ao ofício” (art. 15), considerando-se atendido esse requisito “quando o serviço for executado à proporção de duas laudas de vinte e cinco linhas por dia útil, transcorrido entre a solicitação inicial e a data em que estiver à disposição do interessado” (FONTES, 2008, p. 61, grifo nosso). Os honorários cobrados são estabelecidos por laudas de “25 linhas com até 50 toques” e os preços tabelados são publicados no Diário Oficial da União (BARBOSA, 2005, p. 11).

A segunda categoria de tradução regulamentada no Brasil é de intérprete de sinais que até pouco tempo atrás atuava em bases voluntárias e agora conta “com legislação que obriga a inclusão de crianças com deficiências na rede escolar” (BARBOSA, 2005, p. 22), e dispõe de cursos de formação “em nível de extensão” que qualificam ao exercício da profissão. Conforme definido no Livro “O tradutor e intérprete de língua brasileira de sinais e língua portuguesa”, do Ministério da Educação brasileira, as línguas de sinais:

[...] são utilizadas pelas comunidades surdas. As línguas de sinais apresentam as propriedades específicas das línguas naturais, sendo, portanto, reconhecidas enquanto línguas pela Linguística. As línguas de sinais são visuais-espaciais captando as experiências visuais das pessoas surdas. Língua brasileira de sinais - A língua brasileira de sinais é a língua utilizada pelas comunidades surdas brasileiras. (BRASIL, MEC, 2004, p. 8)

LIBRAS é a sigla[55] difundida pela Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos – FENEIS, para referir-se à língua brasileira de sinais. “A língua brasileira de sinais é uma língua visual-espacial articulada através das mãos, das expressões faciais e do corpo. É uma língua natural usada pela comunidade surda brasileira.” (MEC, 2004, p. 18)

O reconhecimento da língua de sinais como língua de fato, através da homologação da Lei Federal 10.436, de 2002, (BRASIL, 2002) como língua oficial das comunidades surdas brasileiras e a sucessiva garantia de acesso para os surdos, “enquanto direito linguístico”, levaram as instituições a garantir efetivamente essa acessibilidade, “através do profissional intérprete de língua de sinais”, abrindo várias oportunidades no mercado de trabalho. Por uma questão legal, o profissional de LIBRAS é profissão regulamentada, pois “o intérprete de língua de sinais é um profissional que deve ter qualificação específica para atuar como intérprete.” (BRASIL, MEC, 2004, p. 30).

Com a Lei 12.319, de 1º de setembro de 2010, o exercício da profissão de Tradutor e Intérprete de LIBRAS passa assim a ser regulamentado, reafirmando a importância da inclusão social dos surdos. Determina a lei que o profissional intérprete de LIBRAS prestará também serviços em depoimentos em juízo, em órgãos administrativos ou policiais. Trata-se, portanto, de profissional liberal, que atuará com reserva de mercado atendendo às necessidades legais e constitucionais.

2.3    Tradução técnica

Tradução técnica é o nome dado à tradução não literária. A terminologia não é muito apropriada, pois, como visto antes, livros de ciência, direito e medicina, que são técnicos, serão publicados, entrando no rol da tradução editorial/autoral. E os diálogos em língua estrangeira de um filme para cinema ou para TV a cabo, bem como as notícias veiculadas na Internet também são traduzidos, entrando no rol das traduções protegidas por direito de autor. Talvez utilizar o termo tradução-serviço para denominar todas as tipologias de tradução que não são autorais ou públicas distinguiria melhor as áreas, mas por conveniência, usar-se-á o termo tradução técnica, utilizado no mercado internacional, com o significado de extra-autoral e extra-pública.

Conforme quanto relatado por Gisella Maiello, citada por Da Vico (2005, p. 9), foi nos anos 30 que se começou a falar de linguagem técnica no ambiente da tradução, sugerindo ao mesmo tempo que as “as agências de traduções não existissem antes dessa época”[56] (MAIELLO, 2005 apud DA VICO, 2005, p. 9).

Benedetti considera a tradução-técnica, que ela chama de tradução-meio, aquela que:

[...] serve como instrumento para a obtenção dos fins mais diversos, entre os quais não se inclui a venda da própria tradução (seja qual for o suporte considerado), ou seja, ela não é vendida em forma de publicação, não é distribuída em forma de filme [...]. Seus custos são sempre absorvidos pela atividade mais global que lhe deu origem, são nesta 'embutidos', e seu usuário final não a 'compra', não compra o suporte no qual ela está inserida como tal, como reprodução de uma obra original. Seu usuário final compra um outro produto, do qual ela é acessório. (BENEDETTI, 2003, p. 23).

A tradução-técnica abarca várias tipologias textuais; dentre elas, a tradução de textos científicos, técnico-tecnológicos, jurídicos, corporativos, jornalísticos, promocionais, financeiros, normas ISO, meio ambiente, websites, etc., representando um mercado em grande expansão.

[...] o maior segmento do mercado da tradução é, provavelmente, o das traduções (tradicionalmente consideradas) técnicas, seja para editoras, empresas, ou para o público em geral. É plausível supor, na realidade, que o mercado de traduções extra-editoras seja muito maior do que o das editoras [...] São as traduções juramentadas, as traduções para empresas em geral, para a indústria da localização e a tradução de websites, sem falar nas traduções para particulares, que envolvem desde os abstracts de dissertações e teses até o manual da câmara fotográfica nova da vizinha ou o cardápio do restaurante da esquina. (BARBOSA, 2005, p. 11)[57]

Estima-se que o mercado mundial da tradução [técnica] crescerá quase 11% ao ano nos próximos 5 anos, conforme relatório apresentado por Romaine e Richardson (2009, p. 2). Conforme o citado relatório, o tamanho total do mercado de serviços linguísticos em 2008 ultrapassou os 14 bilhões de dólares, com uma previsão para 2013 de 25 bilhões de dólares (ROMAINE, M.; RICHARDSON, J., 2009, p.6). A previsão para 2015, em relação ao mercado europeu, é de 16,8 bilhões de dólares, conforme relatório de Francisco De Vincente (2009).

Fala-se, assim, não mais de mercado, mas de “indústria da tradução”, nas palavras de Da Vico[58], “filha natural da globalização”, uma estrutura com inúmeras ramificações, empresas com dezenas e às vezes centenas de funcionários, cujos volumes de negócios ficam na casa das dezenas de milhões de euros, e cujas Holdings são cotadas nas bolsas mundiais. O autor cita alguns exemplos: “Bowne Global Solutions, divisão da Bowne & Co., cotada na bolsa NYSE [Bolsa de Valores de Nova Iorque]; Lyonbridge Technologies, cotada na NASDAQ [Bolsa eletrônica americana]; SDL International, cotada na bolsa de valores de Londres. São os três 'grandes' setores da localização” (DA VICO 2005, p. 96).

É um mercado [o da tradução técnica] de fornecedores de serviços linguísticos muito fragmentado (DA VICO, 2005, p. 46). Segundo o estudo da Romaine e Richardson (2009, p. 7), junto com as grandes empresas internacionais, como a Global Linguistic Solution, a Lionbridge, e a L-3 Communications Linguists Operations, opera um grande número de pequenas agências e de trabalhadores autônomos.

Dado confirmado pela estimativa da Common Sense Advisors de 2009, citada no estudo de Romaine e Richardson, afirmando ser 700 mil o número de tradutores profissionais no mundo todo. No entanto, este número não inclui os tradutores ocasionais, que traduzem informal ou saltuariamente. No estudo apresentado evidencia-se, também, o declínio no preço por palavra traduzida, atribuído a vários fatores, entre os quais a competição da indústria (CSA apud ROMAINE, M.; RICHARDSON, J., 2009, p. 6).

Antigamente o mercado era restrito, “um mercado fechado” nas palavras de Muzii (2011, 0. 35)[59], “limitado a poucos fornecedores, que conseguiam impor seus preços aos clientes”. Era uma negociação intuitu personae, na base da confiança, em que muitas vezes o fornecedor era indicado como competente e era escolhido com base no curriculum ou nos títulos. Atualmente o mercado é global, compete-se com tradutores de todo o mundo, muitas são as empresas que podem oferecer o mesmo serviço, e este tipo de competição impõe muita agilidade (MUZII, 2011, p. 36).

Luigi Muzii (2011, p. 32-33) comenta que as ferramentas necessárias ao tradutor eram os dicionários os quais “representavam um investimento enorme”. Ademais a qualidades dos dicionários era “por vezes, dúbia”. Desta forma a “pesquisa era feita nas próprias bibliotecas [...], as despesas necessárias [...] limitavam-se ao papel e à fita para a maquina de escrever.” O serviço de tradução “limitava-se à parte propriamente linguística, o ‘cerne do serviço’.” Situação completamente diferente daquela dos dias atuais, portanto, em que é necessário investir nas inúmeras ferramentas que “auxiliam os tradutores, nas CAT-tools, nos programas para ‘despedefar’, editorar, diagramar, na própria formação e treinamento tecnológico e linguístico, pois aumentou consideravelmente a quantidade de textos de conteúdo cientifico e especializado a serem traduzidos” (MUZII, 2011, p. 32-33).

Tornou-se, assim, necessária uma preparação adequada que garanta um alto nível de desempenho e confiança na manipulação das informações. Para continuar ativo no mercado o tradutor-técnico necessita se profissionalizar, especializar-se em algum campo de atuação específico - pois o mercado também se especializou - oferecer serviços adicionais, presteza e qualidade, gerenciando, desse modo, uma carteira de clientes variadas. “A tecnologia tornou possível produzir mais em menos tempo”, alimentando uma competição com grandes empresas, que acabaram assumindo o controle dos preços (MUZII, 2011, p. 35).

Barbosa aduz, em relação à localização, ramo da tradução incluído na tradução técnica, que:

[...] o tradutor que pretende trabalhar para empresas deve munir-se de um equipamento de primeira linha: computador potente, provedor de Internet de banda larga, pelo menos um software de memória de tradução, além, é claro, de ter acrescentar a seus conhecimentos linguísticos os conhecimentos necessários para utilizar tais programas. Deverá, sobretudo, estar preparado para trabalhar com prazos que, segundo Nelsons Rodrigues, ‘são absurdos de curtos’ hoje em dia. (BARBOSA, 2005, p. 16)

Vagner Fragassi, presidente da ABRATES (Associação Brasileira de Tradutores e Intérpretes, citado por Barbosa (2005, p. 14) comenta que “Um número expressivo de empresas de tradução vem surgindo, no Brasil, nos últimos quinze anos, justamente na área de localização — a tradução e adaptação de softwares” e relata como estão se reformulando as empresas de tradução no Brasil, que “ao contrário de ser uma pequeníssima empresa, [...] as firmas ligadas à localização são grandes empresas que gerenciam grandes projetos. Muitas dessas grandes empresas repassam parte das suas tarefas a empresas menores. Outras são tão grandes que têm identidade supranacional.”

Gianni Da Vico também comenta que, em decorrência da globalização, aumentou em maneira exponencial a importância da comunicação para as empresas que exportam e/ou importam globalmente (DA VICO, 2005, p. 9). Ele traça no primeiro capítulo do seu livro uma história das agências de tradução através dos relatos dos donos das primeiras agências italianas. As entrevistas contam as diferentes maneiras em que os tradutores se transformaram em profissionais e empreendedores competitivos, conscientes da necessidade de acompanhar as mudanças do mercado e da tecnologia.

Rosaria Gallotti comenta que as primeiras agências eram pouco mais que escritórios individuais, os textos a serem traduzidos eram repartidos entre os sócios e “quando, por excesso de trabalho ou pela tipologia, não era possível traduzir um texto com o pessoal da agência, era confiado a tradutores externos e revisado pelos sócios” (GALLOTTI. In: DA VICO, 2005, p. 17-20).

Danilo Nogueira, tradutor profissional desde 1970, relata em seu blog, no post de 3 de agosto de 2008, “Quanto representam as editoras no mercado de tradução brasileiro?”, alguns dados sobre o mercado brasileiro:

[...]Não existe dimensionamento preciso de nosso mercado.[...] as editoras representam coisa de 5%, se tanto, do nosso mercado [...] Muitos profissionais trabalham quietinhos em suas casas, para empresas comerciais industriais e para agências, no Brasil e no exterior.[...] O setor de localização tem uma verdadeira usina de tradução. Os manuais, menus e telas de ajuda de todos os programas hoje vêm em português e isso representa uma montoeira de trabalho de tradução. [...] Muitas firmas e empresas, nos setores de auditoria, engenharia, advocacia, manufatura, têm suas equipes internas e ainda subcontratam gente de fora para os picos de serviço. [...] Existe uma fímbria do mercado, de tradutores eventuais (muitos deles exercendo também o magistério) trabalhando para clientes eventuais, que nunca foi nem vai poder ser quantificada. Uma miríade de pequenos fornecedores atendendo clientes com pequeno volume de serviço. (NOGUEIRA, 2008)

Uma classificação, datada de 1999, oferecida por Sébastien Chipot (CHIPOT, S. In: TROIANO, 2002, p. 159-160), durante uma conferência na Universidade de Portsmouth, dividiu o mercado em três segmentos[60]:

a.                                 Os tradutores independentes

b.                                As pequenas agências locais

c.                                 As sociedades internacionais

Em que pese essa classificação, talvez por ser de 1999, ela não considera outros segmentos do mercado atualmente existentes e não reflete a evolução e profissionalização pela qual os tradutores, que Chipot denomina independentes, tiveram que passar. Na época atual existem, nesse mercado fragmentado, os seguintes atores:

a. Os “tradutores ocasionais”, que se propõem como tradutores, por exemplo, após ter passado alguns meses no exterior e que, portanto, não oferecem garantia alguma de ter as competências necessárias. Para poder entrar no mercado, acabam aceitando/oferecendo um serviço a preços reduzidíssimos. Desta forma, são explorados por algumas agências que utilizam os textos somente após uma acurada correção técnica e estilística efetuada por outro profissional (o valor pago para uma revisão corresponde a 50% do preço de uma tradução), o que acaba sendo mais barato do que pagar uma tradução para um profissional. Isso reflete a tendência natural da indústria à redução dos custos.

b. As “Mom & PoP Agency”, referenciadas por Da Vico (2005, p. 48), que nada mais são que agências passacarte às quais se refere Chipot[61], ou seja, meros despachantes da tradução, que se limitam a “receber o trabalho do tradutor e passá-lo para o cliente, sem alguma adição de valor”, cobrando comissão pelo serviço de “despachante”, mas sem oferecer garantias e controle de qualidade quanto ao produto final. São as agências de tradução “que contratam os serviços do tradutor, ele intitulado fornecedor terceirizado, realizam a captação de clientes e agenciam os trabalhos enviados por eles. Normalmente a agência realiza um orçamento baseando-se no custo do tradutor mais uma “taxa” de agenciamento, que é o seu lucro (Universidade São Judas, p.1)

c. Os “profissionais autônomos da tradução”, com anos de experiência, que na maioria das vezes oferecem seus serviços de tradução somente para sua língua nativa, e não vice-versa[62]. São os que Chipot (2002, p. 160) denomina de tradutores independentes[63]. O tradutor profissional atua por áreas de especialização, na maioria das vezes rejeitando traduções técnicas que não sejam sua especialidade, pois é improvável que um único tradutor, embora com muita experiência, consiga traduzir textos técnicos em setores tão diferentes como o jurídico, médico, industrial, informático etc. Os contatos com os clientes, de particulares a empresas, ocorrem todos por e-mail. A empreitada de tradução, a diferença do que coloca Chipot (2002, p. 160), quando afirma que eles não possuem sistemas de memórias de tradução e estruturação de glossários, atualmente é realizada com auxílio de programas de memória de tradução, que permitem a construção de glossários personalizados, alinhamento de textos, controle e uniformização da terminologia e editoração gráfica, chegando a um produto final de alta qualidade.

d. As “pequenas sociedades de tradutores”. Na maioria das vezes colaboram na sociedade dois ou mais tradutores profissionais, que apesar de definir o próprio segmento de mercado a um número limitado de línguas e áreas de especialização, são capazes de gerenciar projetos de tradução e localização de alguma complexidade, oferecendo um produto acabado, gerenciando todas as fases de produção da tradução: pré-processamento do texto a ser traduzido, construção de glossários, específicos para cada projeto, uniformização terminológica, tradução do texto propriamente dita, revisão, controle de qualidade, formatação gráfica, apresentação em multimídia, inserção do texto em legenda, timing das legendas, localização etc. Se necessário agenciam ou sugerem aos clientes tradutores externos para trabalhos em línguas ou áreas de especialização diferentes, revisando a tradução (quando terceirizada) antes de entregar ao cliente o produto acabado.

Os tradutores profissionais e as pequenas sociedades de tradutores são capazes, muitas vezes, de lidar com todos os tipo e formatos de arquivos (arquivos de texto, HTML, outros formatos para Web, arquivos de banco de dados, apresentações Power Point, arquivos gráficos), fornecendo serviços de DTP[64] (conversão de formato, formatação e layout para impressão, etc.). Quando necessário, devido ao grande volume de um projeto, por exemplo, contratam digitadores, serviço de DTP, etc.

e. As “agências grandes”, ou melhor, “em rede”. Operam em quase todos os pares de idiomas e áreas técnicas, utilizando os serviços de tradutores internos e externos, ocasionais ou profissionais, pequenas empresas, etc. São as empresas às quais se refere Chipot, conhecidas por serem as empresas das 3 M, ou seja, as sociedades Multinacionais, Multilínguas e Multimediais[65] (CHIPOT, 2002, p. 160). Têm estrutura capaz de gerenciar projetos enormes, através do trabalho em equipe de supervisores, gerentes de projeto (Project Manager), revisores, editores e outros profissionais. Existem grupos de trabalho para cada projeto complexo e um gerente de projeto, capaz de acompanhar e organizar o trabalho dos tradutores externos e internos, e dos revisores, garantindo ao cliente final um produto de qualidade. Os grupos de trabalho podem ser organizados em “escritórios virtuais”, que permitem o trabalho simultâneo dos profissionais engajados no projeto, que permanecem fisicamente em seu próprio local de residência. Como relata Barbosa (2005, p. 14)

Qualquer que seja o tamanho dessas companhias, nenhuma pode prescindir do trabalho em equipe. Há gerenciadores de projeto, terminólogos, lexicólogos, engenheiros de informática, designers, tradutores e revisores. Com a expansão dessas empresas, grandes modificações são trazidas à profissão: o tradutor, acostumado a trabalhar sozinho, passa a se ver como membro de uma equipe, tendo de obedecer a manuais de estilo, manter glossários e de se preocupar em manter a coerência terminológica em grande quantidade de textos. (BARBOSA, 2005, p. 14).

Os contatos com os clientes e os fornecedores ocorrem prevalentemente via e-mail. A estrutura permite lidar com projetos complexos a preços competitivos, garantindo ainda assim um elevado nível de qualidade. Os serviços oferecidos vão desde a tradução à localização de software, interpretariado, Desktop Publishing, etc. Mantêm banco de dados com os nomes dos profissionais mais qualificados para cada tipo de projeto, garantindo um alto nível de qualidade final ao produto. Muitas vezes têm filiais em mais de um país e seus preços são geralmente concorrenciais, fixados em quantidades mínimas de projeto.

Existem ainda no mercado estruturas que atuam como “intermediários” entre os clientes e os fornecedores de serviços de tradução, incluindo aqui os ocasionais, os profissionais e as pequenas agências. São portais que reúnem os tradutores do mundo todo, praças virtuais em que se torna possível o encontro da oferta e da demanda de trabalho de tradução. Também é possível a troca de experiência entre os tradutores, com páginas web dedicadas às dúvidas e à compilação de glossários específicos. São empresas virtuais, sites da Web com uma interface de acesso livre, em que são propostos os trabalhos/projetos por parte dos clientes potenciais (empresas de tradução, na maioria das vezes), permitindo aos fornecedores propor sua cotação aos trabalhos postados; e uma interface por pagamento[66], que adiciona algumas possibilidades, como acesso a bancos de dados sobre fornecedores e clientes[67] (Proz.com[68], Translators Café, etc).

O tradutor atualmente necessita, portanto, não somente do conhecimento do ofício da tradução em si, pois, como relata NOGUEIRA (2008, post de 11 de junho) ele “é obrigado a dominar um arsenal informático de bom porte”. A tecnologia, em constante evolução, hoje já fornece ferramentas de trabalho imprescindíveis para quem quer se manter ativo no mercado, como por exemplo os CAT tools, os software específicos para pesquisas terminológicas[69], os softwares para gerenciamento de glossários e de memórias de tradução, que auxiliam o trabalho do tradutor e agilizam todo o processo, conforme esclarecido por Iaria[70] e Ivonica[71] (Proz, 2010). Faz-se necessária a aquisição dessas habilidades extra-linguísticas para acompanhar a demanda do mercado: atualização informática constante que permita saber lidar com localização, editoração e diagramação de textos; capacidade de gerenciamento do negócio que permita organizar o próprio trabalho em função dos projetos, planejando o tempo à disposição para traduzir, diagramar, editorar; capacidade de elaborar e gerenciar contratos para os clientes, planilhas de custos, de preços praticados, além da necessidade de desenvolver alguma ação de marketing eficaz junto com a clientela (empresas) para 'conquistar' clientes particulares, num mercado por demais competitivo em decorrência da globalização.

Segundo Beninatto[72] (2010, p. 3), a tendência no mercado da tradução [técnica] mundial é ter cada vez mais projetos grandes, em que vários tradutores trabalharão em colaboração, nos mesmos arquivos e em tempo real, com o trabalho individual remanescendo nos projetos menores. Prevê também que a produtividade dos tradutores será medida em dezenas de milhares de palavras por dia, auxiliada pelo programas de memória de tradução e softwares específicos, e que o preço por palavra acabará caindo drasticamente (BENINATTO, 2010, p. 4).

Não há como sobreviver no mercado como freelancer ocasional, impondo-se a profissionalização e, em muitos casos, a constituição de sociedade simples com outros tradutores, arcando com as despesas e a burocracia que isso implica. No Brasil, como aduz Barbosa “em adição à situação legal ambígua em que se encontra a profissão, a pesadíssima carga tributária que recai sobre o prestador de serviços, [...] tem forçado os tradutores (e intérpretes) que prestam serviços a empresas a se tornarem empresário eles mesmos”. De fato as empresas contratantes são obrigadas a pagar ao INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social) “a título de contribuição previdenciária, um valor ígual a 20% do preço total do serviço prestado, além dos 11% pagos pelo contratado”. Somando-se a esse valor os demais impostos devidos pela prestação resulta uma carga tributária e previdenciária altíssima que faz com que “os contratantes se recusem a aceitar prestadores de serviço” (BARBOSA, 2005, p. 13).

Fazendo uma subsunção dos conceitos operacionais referenciados anteriormente com o trabalho do tradutor técnico, infere-se que este trabalha atualmente em modalidade de teletrabalho autônomo para uma pluralidade de comitentes, num mercado em expansão e concorrendo com agências de intermediação e grandes empresas multinacionais que oferecem os mesmos serviços a preços concorrenciais.

Responsabiliza-se perante os clientes pela entrega de uma obra acabada (a tradução), muitas vezes com serviços adicionais de editoração, paginação, etc., comprometendo-se e se responsabilizando com uma obrigação de resultado, a entrega do texto traduzido e nos formatos requisitados. Esvanece o caráter de pessoalidade, principalmente quando ele trabalha prestando serviços autônomos para as próprias empresas de tradução, localizadas nos mais variados lugares do mundo, as quais procuram reduzir os custos, preferindo arrematar os projetos a quem oferece um preço menor. Neste caso infere-se um caráter de parassubordinação tão somente quando o trabalho for contínuo e para um único comitente. Não há como uma empresa contratar tradutores para cada par de línguas, tornando-se comum e necessária, portanto, a terceirização, que por acontecer globalmente e para vários comitentes, acaba por descaracterizar qualquer vínculo de trabalho. Nos casos de projetos muito complexos e demorados, que se prolongam no tempo, pode se enxergar uma parassubordinação intermitente.

“Você me acha um homem lido, instruído?”

“Com certeza”, respondeu Zi-gong. “Não é?”

“De jeito nenhum”, replicou Confúcio.

“Simplesmente consegui achar o fio da meada.”

(Sima Qian, Confúcio[73]. Trad: Roneide Venancio Mayer)

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Sobre a autora
Ernesta Perri Ganzo Fernandez

Advogada em Florianópolis (SC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDEZ, Ernesta Perri Ganzo. Possibilidade de enquadramento do tradutor técnico como microempreendedor individual.: Uma abordagem lógico-jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3232, 7 mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21701. Acesso em: 28 mar. 2024.

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