2. TRABALHO INFANTIL NO LIXO COMO UMA DAS PIORES FORMAS DE TRABALHO (CONVENÇÃO nº 182 DA OIT)
Malgrado os diversos diplomas jurídicos legais acerca dos direitos das crianças e adolescentes analisados alhures, dentre eles o da vedação ao trabalho, constata-se nos grandes centros urbanos um número assustador de menores trabalhadores, mormente nos serviços informais cuja precariedade de condições mínimas para o trabalho salta aos olhos e estarrece a sociedade que presencia tudo e age com parcimônia à violação dos direitos destes pequeninos.
Como já foi dito alhures, a OIT preocupada com a questão do trabalho infantil, em especial com algumas formas de trabalho que se mostram mais prejudiciais às crianças, editou a Convenção nº 182, que trata das piores formas de trabalho infantil, a qual foi ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 178, de 14 de dezembro de 1999 e regulamentada pelo Decreto nº 3.597, de 12 de setembro de 2000.
Com o fito de priorizar o combate às formas de trabalho por ela listadas, uma vez que aviltam a dignidade da pessoa humana e destroem o que há de mais precioso entre as crianças - a esperança -, a OIT listou os seguintes trabalhos como sendo os piores desenvolvidos por crianças e que por isso merecem especial atenção por parte do poder público dos países signatários da referida Convenção, são eles: o trabalho infantil doméstico; o trabalho em milícias armadas; a exploração sexual comercial; o trabalho de cunho forçado; o trabalho em atividades ilícitas, em especial o voltado ao tráfico de drogas; e os trabalhos que por sua natureza ou pelas circunstâncias em que são executados, são susceptíveis de prejudicar à saúde, a segurança e a moral da criança (art. 3º, da Convenção nº 182, da OIT).
Pela análise dos trabalhos elencados na Convenção nº 182 da OIT, constata-se que se trata de mero rol exemplificativo, mormente em função da cláusula genérica prevista na letra d, de seu art. 3º, combinado com o seu art. 4º, o qual dispõe ser da competência da legislação nacional dos países signatários, definirem o seu alcance.
Esta incumbência já foi cumprida por nosso país por meio do Decreto nº 3.597, de 12 de setembro de 2000, o qual elencou quais seriam as atividades prejudiciais à saúde, segurança e à moral da criança, nos termos da Convenção nº 182 da OIT, consoante se infere do quadro constante no referido Decreto.
Dentre diversas atividades tidas como de alto risco às crianças, o item 70 da denominada Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP), taxou expressamente o trabalho infantil na coleta, seleção e beneficiamento de lixo como sendo uma atividade altamente prejudicial aos menores, dadas as circunstâncias nocivas à saúde desenvolvidas naquele ambiente laboral.
Destarte, não restam dúvidas de que o trabalho de cata do lixo realizado por crianças nos depósitos de lixo de Maceió é considerado uma das piores formas de trabalho infantil do mundo por lei, a demandar prioridade no seu combate, porquanto evidenciados os malefícios biopsicossociais a estas crianças. Pois como se infere do quadro anexo ao Decreto nº 3.597/00, o trabalho de coleta do lixo expõe a criança a esforços físicos intensos; exposição aos riscos físicos, químicos e biológicos; exposição a poeiras tóxicas, calor; movimentos repetitivos; posições antiergonômicas. Tais riscos propiciam a estes menores trabalhadores a aquisição de afecções músculo-esqueléticas (bursites, tendinites, dorsalgias, sinovites, tenossinovites); ferimentos; lacerações; intermações; resfriados; DORT/LER; deformidades da coluna vertebral; infecções respiratórias; piodermites; desidratação; dermatoses ocupacionais; dermatites de contato; alcoolismo e disfunções olfativas.
Não se olvide do malefício social que decorre diretamente do trabalho de catação de lixo, que exclui completamente as crianças da sociedade e do exercício do mínimo de cidadania, pois além de afastar as crianças da escola e da profissionalização, degrada sua aparência física devido ao desgaste intenso dessa atividade, afastando ainda mais estas crianças de um futuro digno, haja vista que além de desqualificados para o desempenho de qualquer profissão formal, estes infantes são aparentemente indesejáveis ao mercado de trabalho, o que perpetua o odioso ciclo de pobreza em nosso país.
3. CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS
3.1 Aplicabilidade e exigibilidade dos direitos fundamentais das crianças
Como já foi exposto anteriormente, há uma teia de direitos conferidos às crianças e aos adolescentes, bem como de mecanismos com vistas a garantir a eficaz aplicabilidade destes direitos. Contudo, observamos, também, que a realidade constatada destoa do imenso manancial de direitos e garantias assegurados pela ordem jurídica nacional, de sorte que às crianças trabalhadoras são olvidados o exercício dos mais basilares direitos, mormente em função do descaso do Poder Público a quem compete, primariamente, possibilitar o acesso destas pessoas aos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição da República.
Nessa esteira, cumpre analisarmos a partir deste momento até que ponto os direitos fundamentais das crianças que vivem e trabalham em meio ao lixo de nossas cidades são aplicáveis e exigíveis. Pois, é cediço que constitui uma característica comum ao direito objetivo a sua aplicabilidade e ao direito subjetivo a possibilidade de ser exigido por seu titular.
Pois bem, nas palavras do emérito professor constitucionalista José Afonso da Silva[34]: “Aplicabilidade significa qualidade do que é aplicável. No sentido jurídico, diz-se da norma que tem possibilidade de ser aplicada, isto é, da norma que tem capacidade de produzir efeitos jurídicos.”. Não se confunde com efetividade, que por sua vez estar ligada a idéia de eficácia social, ou seja, a aproximação do campo do dever-ser normativo ao campo do ser da realidade social[35].
Toda norma jurídica, por si só, já tem a característica de ser aplicável, de modo que o direito surge para ser utilizado pelas pessoas em suas relações sociais. Disso não há controvérsia em nenhum momento entre os pensadores, desde Ferdinand Lassalle, passando por Carl Schmitt e chegando ao positivista Hans Kelsen, os principais responsáveis pelo entendimento do que seria uma constituição.
Lassalle entendeu ser uma constituição a soma dos fatores reais de poder, dando-a um sentido sociológico, consoante depreende-se do trecho a seguir transcrito:
Os fatores reais de poder convertem-se em fatores jurídicos quando, observados certos procedimentos, são transportados para “uma folha de papel”, recebem expressão escrita; então, desde esse momento, incorporados a um papel, já não são simples fatores reais de poder, mas transmudam-se em direito, em instituições jurídicas, e quem atentar contra eles atentará contra a lei, e será castigado. Desse modo, segundo Lassalle, relacionam-se as duas constituições de um país: a real e efetiva, formada pela soma dos fatores reais e efetivos que regem na sociedade, e a escrita, a que, para distinguir daquela, ele denomina folha de papel. Esta – a constituição escrita – só é boa e durável quando corresponde à constituição real, àquela que tem suas raízes nos fatores reais de poder que regem no país. Onde a constituição escrita não corresponde à real, estala inevitavelmente um conflito que não há maneira de eludir e, cedo ou tarde, a constituição escrita, a “folha de papel”, tem necessariamente que sucumbir ante o empuxo da constituição real, das verdadeiras forças vigentes no país[36].
Nessa perspectiva, ou a constituição se modifica para ajustar-se aos fatores reais de poder, ou então, haveria de transformá-los para que não houvesse um constante descumprimento e desrespeito à norma constitucional[37]. Porém, o que é importante perceber nesse ponto, é que determinado fator uma vez incorporado ao mundo jurídico, transformasse em direito e, portanto, é passível de aplicação e, mais ainda, de exigibilidade, sob pena de se perder a própria essência e efetividade do texto legal.
E tanto isso é verdadeiro que Hans Kelsen viu-se na contingência de reconhecer que uma ordem jurídica como um todo, assim como uma norma jurídica singular, perde a validade quando deixa de ser eficaz[38].
Já na visão de Carl Schmitt, a constituição nada mais é do que uma decisão política de um determinado povo na democracia, ou de um monarca na monarquia, a qual estabelece quais decisões fundamentais irão nortear as demais leis[39], onde dentre estas decisões encontraremos a declaração dos direitos democráticos e fundamentais do homem. Destarte, de igual modo a aplicabilidade de tais direitos decorre diretamente do poder soberano do povo, sendo incoerente este mesmo povo titular do poder não fazer valer a norma que ele mesmo decidiu seguir como fundamento para este poder.
Por fim, até Kelsen, com seu extremo apego ao formalismo jurídico ligado ao Estado Liberal e ao racionalismo e que reduz a constituição a um sistema de normas, admitiu que a constituição é a garantia de certos princípios mais ou menos imutáveis, capazes de moldar, disciplinar, modificar a realidade social[40]. Em que pese as duras críticas ao modelo positivista jurídico, máxime porque o direito recebe influências da realidade social, política e ideológica, o fato é que Kelsen trouxe uma certa segurança ao ordenamento jurídico ainda que revelando a natureza do dever-ser da norma jurídica.
Estas três teorias não devem ser vistas de maneira isoladas e sim de forma conjunta, haja vista que se completam no entendimento do jurista acerca do que seja constituição e qual a sua força normativa. Em razão disso, José Afonso da Silva[41] assim conclui:
A constituição seria, pois, algo que tem, como forma, um complexo de normas (escritas ou costumeiras); como conteúdo, a conduta motivada pelas realizações sociais (econômicas, políticas, religiosas etc); como fim, a realização dos valores que apontam para existir da comunidade; e finalmente, como causa criadora e recriadora, o poder.
Com efeito, os direitos fundamentais constitucionais, sociologicamente falando, só possuem aplicabilidade e eficácia se forem efetivamente observados e cumpridos[42]. Entretanto atualmente tais direitos têm sido constantemente sonegados às crianças catadoras de lixo, sendo, pois, inaplicáveis e ineficazes socialmente. Isso decorre em grande parte porque as normas constitucionais que prescrevem modelos e metas de atuação às pessoas que exercem o poder estatal são desprovidas de sanção, valendo-se tão somente de regras e princípios existentes no ordenamento jurídico para se impor.
As normas constitucionais que prevêem estes direitos foram chamadas por José Afonso da Silva de normas constitucionais de eficácia limitada e conteúdo programático e traduzem o conteúdo social da Constituição. Esta terminologia (conteúdo programático) passa a idéia de inexigibilidade e de programa para o futuro, sempre vinculada aos direitos econômicos, sociais e culturais, cuja natureza seria eminentemente diversa da dos direitos civis e políticos, por definirem obrigações futuras e sem formulação precisa[43].
Todavia, o autor assevera que o fato de depender da atuação do Estado não implica, de forma alguma, a inexistência de carga eficacial e tampouco o impedimento de constituírem direito subjetivo[44]. Isso porque apesar dessas normas conterem programas que devem ser cumpridos pelo Poder Público em geral e pelo Poder Legislativo, especificamente, o dever já está caracterizado a partir da vigência da norma constitucional.
Logo, a omissão no adimplemento da obrigação estatal pode ser questionada pelos credores titulares dos direitos subjetivos perante o Poder Judiciário, que deve proferir decisão apta à garantia de efetividade do direito.
Nesse esteira, Eros Grau[45] aduz que o artigo 5°, § 1° da Constituição brasileira impõe que tais normas devem ser imediatamente cumpridas, configurando-se, pois, sua eficácia jurídica perante o sistema.
Nesse passo, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 227, como se viu acima, reconhece a todas as crianças e adolescentes, com prioridade de atendimento, um rol de direitos humanos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.
Por sua vez, o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei n° 8.069/90, em seu art. 4°, parágrafo único, “c” e “d”, ratificando os Tratados Internacionais sobre o tema e esclarecendo o dispositivo constitucional, aduz que tal garantia abrange preferência na formulação e execução de políticas públicas e destinação privilegiada de recursos públicos.
Noutro giro, todas as normas constitucionais brasileiras que reconhecem direitos humanos, sejam as chamadas de “eficácia plena” ou “auto-executáveis”, ou “bastantes em si”, sejam as consideradas de “eficácia limitada”, carregam o mesmo grau político e jurídico de aplicabilidade e eficácia de normas em virtude do teor do artigo 5º, § 1º da CF/88[46]. Logo, todas devem ser reconhecidas como aptas a produzir direito subjetivo. Esta é a tendência natural da evolução dos direitos humanos.
Não foi diferente a posição do Egrégio STF em decisão extravasada pelo Ministro Celso de Melo quando Presidente em exercício daquela Corte, ao indeferir o pedido cautelar postulado pelo Instituto Nacional do Seguro Social, consolidando o entendimento firmado pela doutrina no sentido de dar total efetividade aos direitos sociais, constituindo dever do Poder Público implementá-los[47].
A decisão do decano de nosso Pretório Excelso revela bem o novo momento em que se encontra a ordem jurídica constitucional brasileira. Nossa mais alta Corte jurisdicional vem conferindo à Constituição da República a idéia de força normativa, assim como preconizado por Konrad Hesse, para quem a norma constitucional tem status de norma jurídica, sendo dotada de imperatividade, com as consequências de seu descumprimento, permitindo o seu cumprimento forçado[48].
Destarte, à luz da argumentação até então exposta, é forçoso concluir que os direitos fundamentais dos meninos e meninas que retiram seu sustento do lixo, assim como qualquer direito auto-aplicável, possui aplicação vinculada e exigibilidade imediata, demandando o esforço do Poder Público na concretização dos mesmos, sob pena de não o fazendo incorrer em grave lesão à ordem jurídica e, portanto, passível de ser acionado pelo Poder Judiciário, na esteira de garantidor da eficácia constitucional.
3.2 Omissão inconstitucional do administrador público
Delineadas as premissas acerca da exigibilidade dos direitos fundamentais das crianças catadoras de lixo, em especial os direitos sociais, surge a questão acerca da omissão do gestor público na concretização destes direitos, ou simplesmente na implementação insuficiente de políticas públicas voltadas a efetividade das garantias constitucionais dos pequeninos que trabalham em meio ao lixo. Será que a inação do administrador municipal para com as questões relativas ao combate do trabalho infantil destas crianças socialmente vulneráveis constitui algum tipo de ilegalidade, ou quiçá, inconstitucionalidade?
É o que veremos adiante.
Em linhas acima concluímos que a Constituição – principal instrumento jurídico do qual derivam os direitos fundamentais – estabelece ora ao legislador, ora ao Poder Público e ora aos agentes da ordem econômica e social em geral, direções a serem seguidas na meta de se alcançar a almejada Justiça Social. Também se concluiu pela aplicabilidade imediata de tais normas, com fulcro no §1º, do art. 5º da CRFB.
Nessa quadra, José Afonso da Silva[49], citando as lições de Canotilho a respeito do tema, aponta a inversão da prestação jurídica fundada em direito subjetivo nesses casos:
Por isso o autor pôde dizer com tranqüilidade que “a força dirigente e determinante dos direitos a prestações (econômicos, sociais e culturais) inverte, desde logo, o objectivo clássico da pretensão jurídica fundada num direito subjetivo: de uma pretensão de omissão dos Poderes Públicos (direito a exigir que o Estado se abstenha de interferir nos direitos, liberdades e garantias) transita-se para uma proibição de omissão (direito a exigir que o Estado intervenha activamente no sentido de assegurar prestações aos cidadãos)”.
O art. 227 da CRFB é enfático em determinar ao Poder Público com absoluta prioridade a efetivação de uma gama de direitos humanos que possam concretizar o princípio da proteção integral. De igual modo os artigos 86 e 87 do ECA já assinalam uma linha a ser seguida pelo gestor público em suas ações governamentais.
Destarte, não há que se falar em discricionariedade do administrador público municipal no implemento destas políticas públicas, uma vez que o arcabouço jurídico já impõe ao gestor público o dever de agir de determinada forma com vistas a assegurar determinado fim. Pertinentes são as palavras do professor Celso Antônio Bandeira de Mello acerca do ato vinculado[50], in verbis:
A lei, todavia, em certos casos, regula dada situação em termos tais que não resta para o administrador margem alguma de liberdade, posto que a norma a ser implementada prefigura antecipadamente com rigor e objetividade absolutos os pressupostos requeridos para a prática do ato e o conteúdo que este obrigatoriamente deverá ter uma vez ocorrida a hipótese legalmente prevista. Nestes lanços diz-se que há vinculação e, de conseguinte, que o ato a ser expedido é vinculado.
Com efeito, em se tratando de políticas públicas voltadas à garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes, o administrador tem apenas a opção técnica a escolher e, a depender das restrições orçamentárias, a possibilidade de implementá-las progressivamente, o que não significa de forma alguma que o mesmo possa ao seu bel prazer escolher quando deverá implementar as políticas sociais e o fazendo desvirtue os caminhos traçados pela lei. Acaso isso ocorra, estaremos diante de uma inconstitucionalidade ou de uma ilegalidade, a depender do grau da norma violada, posto que o fato de dependerem de providências institucionais para sua realização não quer dizer que não tenham eficácia. Ao contrário, sua imperatividade direta é reconhecida, como imposição constitucional aos órgãos públicos.
Aliás, com propriedade Sérgio Cruz Arenhart[51] assim nos ensina:
De fato, o espaço de discricionariedade dado pela lei ao administrador apenas pode ser visto como espaço para, diante do caso concreto, eleger ele a solução mais adequada. Se a discricionariedade tem o papel de amoldar a exigência da lei à realidade do caso concreto, é evidente que sua existência somente se justifica na medida em que o administrador possa, diante das circunstâncias concretas, adotar a solução mais perfeita e correta para a realização da intenção da lei. Como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, "assim, a discricionariedade existe, por definição, única e tão-somente para proporcionar em cada caso a escolha da providência ótima, isto é, daquela que realize superiormente o interesse público almejado pela lei aplicanda. Não se trata, portanto, de uma liberdade para a Administração decidir a seu talante, mas para decidir-se de modo que torne possível o alcance perfeito do desiderato normativo".
Ademais, o sentido de fundamentabilidade dos direitos assegurados às crianças – notadamente às crianças em situação de risco - representa, no contexto da evolução histórica dos direitos básicos da pessoa humana, uma das expressões mais relevantes das liberdades reais ou concretas, impondo-se ao Poder Público um dever de prestação positiva que somente se terá por cumprido, pelas instâncias governamentais, quando estas adotarem providências destinadas a promover, em plenitude, a satisfação efetiva da determinação ordenada pelo texto constitucional[52].
Curial então destacar a importância da necessidade do cumprimento das normas constitucionais e das leis em geral, dada a cultura brasileira de inefetividade normativa, tanto por impossibilidade de execução ou por falta de empenho das autoridades responsáveis por seu adimplemento, quanto pela ausência de intenção ab initio dos governantes em realizar o conteúdo normativo[53].
A propósito, vem ao caso transcrever um trecho extraído de artigo publicado por Nicole Mazzoleni Facchini[54]:
Nesse discorrer, pergunta-se Bobbio se um direito ainda pode ser chamado “direito” quando o seu reconhecimento e sua efetiva proteção são adiados sine die, na medida em que é confiado “à vontade de sujeitos cuja obrigação de executar o ‘programa’ é apenas uma obrigação moral ou, no máximo, política.”
É fato público e notório que os governos tendem a procrastinar a implementação de políticas públicas voltadas à efetividade dos direitos sociais – aqui compreendido no aspecto amplo, a englobar os culturais e os econômicos -, enquanto formulam e implementam políticas com alto índice de popularidade imediata em setores que pouco contribuem para se alcançar o desiderato constitucional. Em agindo desta maneira, omitem-se no dever que lhes foi constitucionalmente imposto e, por conseguinte, cometem uma inconstitucionalidade por omissão, passível de ser declarada e corrigida pelo Poder Judiciário.
A omissão injustificada da Administração em efetivar as políticas públicas essenciais para a promoção de dignidade humana não deve ser assistida passivamente pelo Poder Judiciário, pois esse não é mero departamento do Poder Executivo, mas sim poder que detém parcela de soberania nacional[55].
Nessa esteira, verificada a imposição constitucional dirigida ao Poder Público na prestação positiva de determinadas ações com o fito de se alcançar a Justiça Social, mormente em se tratando de crianças carentes que se encontram em situação de risco social, razão pela qual o nosso ordenamento jurídico como um todo determina ao ente público o dever de agir com absoluta prioridade e urgência nas medidas tendentes a cessar o risco iminente e, a posteriori, a implementar as políticas voltadas à efetivação dos direitos destas crianças, é imperioso concluir que a omissão do gestor público acarreta em violação, ainda que por ato omissivo, aos ditames e preceitos fundamentais oriundos da Lex Fundamentalis.
3.3 Reserva do possível x Mínimo existencial
Como vimos acima, o Poder Judiciário assume um papel primordial para fazer valer os direitos fundamentais pré-fixados na Constituição da República, em casos de inoperância do, a princípio, Poder competente. Não obstante esta conclusão, o fato é que existem certas limitações a esta ação jurisdicional, notadamente em se tratando do controle judicial de políticas públicas voltadas ao cumprimento forçado de ações positivas do Estado, dadas as limitações financeiras do Poder Público, o que se denominou de “reserva do possível” ou “reserva de cofres públicos”.
Ensina-nos Sérgio Cruz Arenhart[56] que:
A idéia da reserva do possível surge com Peter Häberle, na década de 70, tendo sido acolhida pela Corte Constitucional alemã. É sempre lembrada, no particular, a decisão do caso numerus clausus, a respeito do direito de acesso às vagas em universidades alemãs ("numerus-clausus Entscheidung", BverfGE n. 33, 303 (333)), em que aquele tribunal considerou que as prestações que o cidadão pode exigir do Estado estão condicionadas aos limites do razoável. Desde então, entende a Corte Constitucional Federal alemã que os direitos sociais de prestação positiva somente são exigíveis do Estado segundo os limites da possibilidade, ou seja, "daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade", correspondente, ao menos, ao "direito mínimo de existência" – evidente concreção do princípio da dignidade da pessoa humana.
Deveras, há de se admitir que a cláusula da reserva do possível constitui um limite – mas não um óbice – à atuação judicial na seara das Políticas Públicas. Isso porque, estar-se-ia diante de uma decisão fadada à frustração, posto que de nada serviria o magistrado impor ao Estado determinada prestação fática, sem que este pudesse cumprir a decisão judicial por lhe carecer recursos financeiros para tanto[57].
É que a teoria da reserva do possível alicerça-se na constatação de que os direitos fundamentais, mormente aqueles de cunho social, exigem – para sua implementação – um conjunto de medidas positivas por parte do Poder Público. Tais medidas implicam custos orçamentários, dependendo, em última análise, de uma conjuntura econômica favorável para serem levados a efeito. Disso decorre que os órgãos jurisdicionais, quando submetidos à apreciação de demandas em que se postula do Estado direitos prestacionais, não podem ignorar a problemática da disponibilidade fática de recursos[58].
No entanto, em que pese as considerações importantes acima, é de se ter em vista que a limitação imposta pela cláusula da reserva do possível não se reveste de caráter absoluto, de sorte que o próprio Estado se comprometeu a concretizar os direitos e garantias fundamentais e, portanto, considerando que tais políticas muitas vezes revelam a efetivação de garantias previstas na Constituição da República, como direitos fundamentais, a falta de disponibilidade de caixa – ou, o que é mais usual, o uso dos recursos públicos para outro fim – não pode tornar "letra morta" a determinação constitucional, nem permite anular a vinculatividade dos preceitos consagradores de direitos fundamentais para o Poder Público (seja ele o Executivo, seja o Legislativo, seja mesmo o Judiciário)[59].
Ademais, ainda que, em princípio, constitua encargo do Poder Público a opção política sobre a aplicação dos recursos, é bem verdade que se deva questionar até que ponto esses aspectos têm o condão de efetivamente impedir a plena eficácia e realização destes direitos[60].
Nessa esteira, a cláusula da reserva do possível deve ser vista com os devidos cuidados, até porque tal teoria surgiu na Alemanha, país com um contexto jurídico e social totalmente distinto da realidade brasileira. Enquanto naquele país o padrão de bem-estar social já atingiu níveis bastante consideráveis, o Brasil ainda peca pelas extraordinárias desigualdades sociais. Aqui, a luta pela assistência nas áreas da educação, saúde e trabalho ainda persiste, de modo que as teorias desenvolvidas alhures sobre a interpretação dos direitos sociais não podem ser importadas pelos brasileiros sem algumas ressalvas.
Outrossim, impende asseverar que “dentro de uma realidade de Estado Social de Direito, estabelece-se um comportamento positivo para a implementação dos direitos sociais, irradiando essa orientação para a condução das políticas públicas”[61], impondo-se, ainda, a observância ao princípio da vedação ao retrocesso, segundo o qual, uma vez alcançados ou conquistados os direitos sociais, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo.
Destarte, ainda que constitua um real limite à atuação judicial sobre o Estado, a reserva do possível não pode se opor ao mínimo existencial dos indivíduos, razão pela qual é perfeitamente sindicável judicialmente os atos concernentes às políticas públicas voltadas à concretização dos direitos fundamentais, sempre que o Estado for omisso, total ou parcialmente, em implementá-las.
3.4 Possibilidade de judicialização de políticas públicas
Foi ventilado alhures muitas questões correlacionadas ao objeto central deste trabalho, resta, entretanto, analisar os empecilhos atravessados a esta possibilidade e contrapô-los aos argumentos favoráveis encontrados na doutrina e na jurisprudência.
Não foi sem razão que desenvolvemos os argumentos acerca da exigibilidade imediata dos direitos fundamentais e as conseqüências da omissão do gestor público em efetivá-los, posto que se tratam de temas preliminares à possibilidade judicial de se controlar as políticas públicas, sendo mister o enfrentamento daquelas questões para se ter o real alcance do objeto em estudo.
O exercício de um papel mais imponente no processo de afirmação dos direitos constitucionais por parte dos membros da magistratura encontra alguns óbices. Há entre nós argumentos vários no sentido de tolher este papel do Judiciário na realização de sua função típica de garantidor da efetividade das normas constitucionais.
Sem embargos das diversas teses levantadas, nenhuma delas é capaz de afastar o importante princípio democrático da inafastabilidade do Poder Judiciário em caso de lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV, da CRFB).
Como já dito linhas atrás, a reserva do possível não constitui óbice insuperável a efetivação do mínimo existencial. Além do mais, as políticas de transferência de dinheiro, como é o caso do bolsa família, garantem apenas uma renda mínima, o que por si só, não tem o condão de garantir o mínimo existencial, porquanto este compreende educação, saúde, alimentação, acesso à justiça, etc. Logo, é preciso que o gestor público atue em áreas que irão produzir diretamente – ainda que a médio ou longo prazo - um resultado satisfatório no combate ao trabalho infantil das crianças nos lixões, como por exemplo: definindo a escola integral e profissionalizando os pais destes menores.
No mesmo sentido não vinga o argumento de que as despesas resultantes de uma decisão judicial que imponha determinada política pública não pode ser cumprida por não estar prevista na Lei Orçamentária. É que a peça orçamentária é meramente indicativa e pode ser alterada durante o período de sua vigência. Outrossim, inexiste o aludido óbice, uma vez que a Lei Orçamentária não pode se impor ao art. 227 da Carta Magna e ao próprio ECA, que dizem quais prestações devem ser efetivadas pelo Município.
Argumento corriqueiro em demandas judiciais é o de que a Lei de Responsabilidade Fiscal impõe limites intransponíveis à implementação das políticas públicas tendentes a efetivação dos direitos sociais, todavia inexiste esse óbice, porquanto a Lei de Responsabilidade Fiscal prevê que não estão sujeitas a seu controle o repasse de verbas destinadas às obrigações constitucionais do Ente Público (art. 2º, IV, da Lei Complementar nº. 101/2000).
Diz-se, ainda, que o juiz não detém legitimidade para decidir acerca das políticas públicas, porquanto não fora eleito pelo voto direto do povo. Esta idéia está jungida ao vetusto sistema democrático liberal, que não se coaduna com a nova vertente do Estado Democrático de Direito, cujo qual não se sustenta na mera configuração de uma democracia formal, em que apenas os representantes eleitos pelo povo servem como veículo das pretensões e necessidades daqueles que os elegeram. ”Ademais, ninguém garante que aqueles que receberam o voto popular realmente representem a vontade da maioria, ou – o que ainda se reveste de maior preocupação – a vontade da Lex Maior”[62].
Nesse passo, a participação popular é feita por meio de uma democracia participativa, onde instrumentos como a Ação Civil Pública constituem uma forma idônea de exercê-la, de requerer cidadania. Esta noção deve estar cumulada ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, segundo o qual o juiz não deve negar a prestação jurisdicional.
É ainda nessa perspectiva que é possível demonstrar que a atuação judicial não vai de encontro ao princípio da separação dos poderes, haja vista que há, em verdade, um trabalho em conjunto com vistas a concretizar a Constituição. Muito embora exista em parte da jurisprudência aqueles que resistam à idéia.
Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional[63].
A propósito, pertinente são as lições de Andreas Krell[64] (2002, p. 22/23), in verbis:
A Constituição confere ao legislador uma margem substancial de autonomia na definição da forma e medida em que o direito social deve ser assegurado, o chamado 'livre espaço de conformação [...]. Num sistema político pluralista, as normas constitucionais sobre direitos sociais devem ser abertas para receber diversas concretizações consoante as alternativas periodicamente escolhidas pelo eleitorado. A apreciação dos fatores econômicos para uma tomada de decisão quanto às possibilidades e aos meios de efetivação desses direitos cabe, principalmente, aos governos e parlamentos. Em princípio, o Poder Judiciário não deve intervir em esfera reservada a outro Poder para substituí-lo em juízos de conveniência e oportunidade, querendo controlar as opções legislativas de organização e prestação, a não ser, excepcionalmente, quando haja uma violação evidente e arbitrária, pelo legislador, da incumbência constitucional. No entanto, parece-nos cada vez mais necessária a revisão do vetusto dogma da Separação dos Poderes em relação ao controle dos gastos públicos e da prestação dos serviços básicos no Estado Social, visto que os Poderes Legislativo e Executivo no Brasil se mostraram incapazes de garantir um cumprimento racional dos respectivos preceitos constitucionais. A eficácia dos Direitos Fundamentais Sociais a prestações materiais depende, naturalmente, dos recursos públicos disponíveis; normalmente, há uma delegação constitucional para o legislador concretizar o conteúdo desses direitos. Muitos autores entendem que seria ilegítima a conformação desse conteúdo pelo Poder Judiciário, por atentar contra o princípio da Separação dos Poderes [...]. Muitos autores e juízes não aceitam, até hoje, uma obrigação do Estado de prover diretamente uma prestação a cada pessoa necessitada de alguma atividade de atendimento médico, ensino, de moradia ou alimentação. Nem a doutrina nem a jurisprudência têm percebido o alcance das normas constitucionais programáticas sobre direitos sociais, nem lhes dado aplicação adequada como princípios-condição da justiça social. A negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida na base dos Direitos Fundamentais Sociais tem como conseqüência a renúncia de reconhecê-los como verdadeiros direitos. [...] Em geral, está crescendo o grupo daqueles que consideram os princípios constitucionais e as normas sobre direitos sociais como fonte de direitos e obrigações e admitem a intervenção do Judiciário em caso de omissões inconstitucionais.
Há, ainda, o argumento de que a complexidade da matéria ventilada nas políticas públicas impede o juiz de exercer tal controle, tendo em vista que o mesmo não teve uma formação administrativa e sim jurídica. Ocorre, porém, que tal argumentação não prospera, haja vista que tantas vezes são postas situações de igual ou maior complexidade, em questões cíveis e criminais, à analise do magistrado, até porque se não é complexo para o administrador, também não o será para o juiz. Ademais, as políticas públicas são compostas por recursos materiais e humanos, que podem ser explicados e discutidos por experts da área, assim como em audiências públicas, a fim de subsidiar o juízo em sua decisão.
Por derradeiro, cumpre salientar a posição assente do STF na possibilidade de controle judicial de políticas públicas, nos termos da decisão proferida na ADPF nº. 45, cujo relator Ministro Celso de Mello apresentou com maestria e precisão ser uma atribuição, apesar de extraordinária, do Poder Judiciário formular e implementar políticas públicas.
O Poder Judiciário está tão obrigado à realização dos direitos fundamentais quanto os Poderes Executivo e Legislativo, restando jungido a, uma vez diagnosticada a violação omissiva ou comissiva a um direito humano, promover a sua implementação, mesmo que, para tanto, tenha de inovar no ordenamento jurídico[65]. Aceitar o papel do Poder Judiciário no controle de políticas públicas é essencial para assegurar a máxima efetividade dos direitos das crianças e dos adolescentes, bem como estimular os governantes à realização dos objetivos constitucionais.
Destarte, inarredável é a conclusão que aceita o Poder Judiciário como garantidor da efetividade constitucional e concretizador de políticas públicas constitucionalmente e legalmente delineadas, por constituir direito fundamental dos indivíduos, notadamente das crianças e adolescentes que vivem e trabalham em meio ao lixo, pois necessitam de urgente priorização de políticas tendentes à erradicação deste trabalho degradante que macula nossa sociedade e avilta a dignidade humana destes pequeninos.