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Bem de família & o direito falimentar - mitigação da proteção do bem de família

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17/03/2014 às 16:19
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5. Da arrecadação de bens do falido e da mitigação da proteção e alcance do bem de família

Como decorrência da decretação da falência e, particularmente, da responsabilidade apurada em relação ao empresário individual ou sócio da sociedade empresária falida, os bens pessoais deverão ser arrecadados visando à solução do passivo. Nesse caminho, o art. 108, da Lei de Quebras, prevê: Ato contínuo à assinatura do termo de compromisso, o administrador judicial efetuará a arrecadação dos bens e documentos e a avaliação dos bens, separadamente ou em bloco, no local em que se encontrem, requerendo ao juiz, para esses fins, as medidas necessárias.[31]

O administrador judicial tão logo firme o termo de compromisso deverá praticar o ato mais importante dentro da administração da falência, qual seja: a arrecadação de bens. Afirmamos ser a arrecadação o ato mais importante do ponto de vista econômico. É a força econômica da massa falida que acenará aos credores a viabilidade de recebimento do crédito habilitado, dentro da execução coletiva, que é a falência.

A arrecadação deverá ser realizada o mais rápido possível para evitar depredação, dilapidação, esvaziamento, ocultação e extravio de bens. Não raro, infere-se da experiência forense que o falido, no desespero que lhe toma os sentidos, em momento de grave crise econômico-financeira e psicológico-emocional, oculta, desvia, extravia ou se apropria de bens visando garantir o seu sustento, deleite ou ostentação, sem se dar conta de que o ato, além de prejudicar os credores constituirá crime previsto no art. 173, da Lei de Quebras.

É por isso que o administrador judicial deve, urgentemente, arrecadar tudo, absolutamente tudo que tenha expressão econômica e que esteja dentro e fora do estabelecimento do falido, não interessando, nesse momento, a real propriedade dos bens, porquanto aquele que sofrer os efeitos de indevida constrição, por ato de arrecadação, poderá promover contra a massa falida, de acordo com a natureza da relação jurídica, a medida própria, a exemplo de pedido restituição, reintegração de posse, busca e apreensão ou embargos de terceiros, além de ação indenizatória.

A arrecadação recairá não só sobre todos os bens móveis e imóveis do falido, mas dos intangíveis da empresa, como aponta o art. 75, podendo, conforme o caso, se operar a arrecadação de: a) patentes; b) desenhos industriais; c) marcas de produtos, de serviços ou de certificações; d) nome empresarial; e) títulos de estabelecimento; f) direitos; g) contratos etc. Também deverão ser arrecadados documentos, papéis e livros contábeis, comerciais e fiscais.

Como a finalidade da arrecadação, dentre outras, é preservar os bens e documentos, inclusive mantendo-os sob custódia no interesse da massa falida, o administrador judicial deverá arrecadar todos os documentos, papéis e livros, de natureza estritamente mercantil, contábil e fiscal, inclusive porque o falido, dentre outros, tem o dever de: entregar, sem demora, todos os bens, livros, papéis e documentos ao administrador judicial, indicando-lhe, para serem arrecadados, os bens que porventura tenha em poder de terceiros, como aponta o art. 104, inciso V, da Lei de Falências.

O administrador judicial somente não poderá arrecadar documentos e papéis pessoais do falido, sob pena de cometer crime de violação de sigilo de correspondência. A inviolabilidade de correspondência é direito sagrado previsto no art. 5º, inciso XII, da Carta Federal: é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. No mais, tem o administrador judicial a obrigação de arrecadar, sob pena de responder civil e criminalmente por eventuais prejuízos causados à massa falida.

Ao tempo da arrecadação, se possível, o administrador também deverá avaliar os bens. A avaliação deverá ser feita em bloco, ou seja, o conjunto de bens da mesma natureza, quando for o caso, e separadamente. Na realização do ativo, a massa poderá alienar em bloco ou separadamente os bens arrecadados, daí a importância da dupla avaliação, quando a hipótese comportar.

No entanto, se no ato da arrecadação não for possível a avaliação, o administrador deverá posteriormente avaliá-los e, tratando-se de bens diferenciados, como ocorre, por exemplo, com títulos negociados em bolsa de valores, de mercadorias e outros, ou, ainda, equipamentos, máquinas, aeronaves, embarcações etc deverá ser feita por especialistas, por avaliadores ou corretores especializados, segundo as características ou especificidades do bem arrecadado, obedecidas as regras de mercado.

A arrecadação deverá ser feita no local onde se encontram os bens, devendo, para tanto, o juiz deferir as providências próprias. O administrador judicial não terá, em princípio, dificuldade para arrecadar os bens localizados na comarca do Juízo da Falência. Todavia, a dificuldade residirá quando o falido possuir bens, inclusive de raiz, fora do Juízo da Quebra. Situações como tais exigirão do administrador requerimentos de expedição de cartas precatórias para o cumprimento de diligências nos Juízos Deprecados, da situação dos bens.

Nos Juízos Deprecados ocorrerão os atos de arrecadação, de avaliação e de alienação, devendo o preço de venda orientar-se pelo valor do mercado local. Diligências também serão necessárias, quando for o caso, para a expedição e cumprimento de cartas rogatórias, para o imediato bloqueio de depósitos em conta corrente e aplicações financeiras no exterior. Ajudará sobremaneira, neste caso, se o Brasil tiver Tratado de Cooperação Técnica em Matéria de Direito Comercial e Processual com o país da situação desses bens.

É importante dizer que, embora a Lei de Falências tenha silenciado a respeito, a arrecadação realizada pelo administrador poderá ser economicamente insignificante, pífia, sem relevância material. Se os bens arrecadados não revelarem expressão econômica, a massa falida estará prejudicada, indicando-se, de logo, aos credores a impossibilidade de recebimento dos créditos, o que se constituirá frustração. É por isso que reconhecemos na arrecadação, na administração da falência, o ato processual mais importante, porque o pagamento dos credores depende diretamente da força econômica da massa, portanto, da constrição judicial denominada de arrecadação.

5.1. Do § 4º, do art. 108, da Lei de Quebras

O § 4º, do art. 108, aponta os bens que estão fora da arrecadação. Indica que os bens absolutamente impenhoráveis não poderão ser arrecadados. Não estão sujeitos aos efeitos da arrecadação, regra geral, os bens considerados impenhoráveis ou inalienáveis, como sucede nos casos de bem de família regularmente instituído,[32], [33] além daqueles gravados com cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade.[34] Igualmente não serão arrecadados os bens dotais,[35] os reservados ou particulares do cônjuge, parafernais e excluídos da comunhão[36] e os bens dos filhos do falido.[37]

No mais, o art. 649, do Código de Processo Civil, apresenta o rol dos bens absolutamente impenhoráveis, na ação de execução, sendo eles: I – os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução; II – os móveis, pertences e utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida; III - os vestuários, bem como os pertences de uso pessoal do executado, salvo se de elevado valor; IV – os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, observado o disposto no § 3º deste artigo; V – os livros, as máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício de qualquer profissão; VI – o seguro de vida; VII – os materiais necessários para obras em andamento, salvo se estas forem penhoradas; VIII – a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família; IX – os recursos públicos recebidos por instituições privadas para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistência social; X – até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos, a quantia depositada em caderneta de poupança; XI – os recursos públicos do fundo partidário recebidos, nos termos da lei, por partido político.[38] Os bens impenhoráveis indicados no art. 649, do Código de Processo Civil, por extensão, também, não são arrecadados na falência

Quanto ao bem de família é importante registrar nossa posição. A Lei de Quebras não tratou do assunto, de modo específico. Porém defendemos a arrecadação do bem de família, nas hipóteses: a) de convolação da recuperação em falência; b) de falência direta do empresário ou de sociedade empresária; c) de intervenção e liquidação extrajudicial; d) de administração temporária convertida em liquidação extrajudicial; e) de decretação de falência de instituição financeira e outras companhias sob o regime concursal especial. A regra prevista na Lei nº 8.009/1990[39] – que instituiu a impenhorabilidade do bem de família não tem aplicabilidade nos regimes jurídicos aqui apontados, como passamos a defender.

A Lei nº 8.009/1990 e o Código Civil não prevalecem no Direito Concursal brasileiro diante da especialização da Lei de Quebras ou da Lei de Intervenção e Liquidação Extrajudicial de Instituições Financeiras e Sociedades Assemelhadas. Nos regimes jurídicos indicados prevalece o interesse coletivo; eles têm natureza publicista; prevalece à proteção da coletividade de credores, mormente nas hipóteses de captação de recursos de poupança e outras aplicações cuja segurança dos mercados financeiro e de capitais depende diretamente da estabilidade das operações realizadas com os investidores.

Não é razoável que os investidores, credores, sofram prejuízos, por conta de administrações temerárias ou fraudulentas, enquanto que os administradores gozem de proteção e blindagem em relação aos seus bens pessoais, no firme conceito de impenhorabilidade ou não arrecadação de bens de família. O bem de família, para gozar de absoluta proteção e afastar a mitigação necessita ser constituído e preservado se e quando os atos praticados não indicarem fraude ou desvio de finalidade!

A impenhorabilidade do bem de família, quando regularmente constituído, tem alcance exclusivamente na execução comum, na ação de execução, como indicam os arts. 1º e 3º, da Lei nº 8.009/1990. Porém, no concurso de credores, dentro do processo falimentar ou da liquidação extrajudicial, cujos credores, coletivamente, disputam os bens arrecadados pela massa falida do empresário individual ou da massa falida pessoal dos sócios com responsabilidade ilimitada ou dos sócios com responsabilidade limitada, após condenação penal por crime definido na Lei de Quebras ou procedência do pedido contido na ação de responsabilidade civil prevista no art. 82, ter-se-á a incidência da desconsideração da personalidade jurídica.[40]

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Jamais prevalecerá o bem de família em situações tais, daí por que, embora sujeito às críticas, defendemos abertamente a arrecadação do bem de família nos processos de falência e de liquidação extrajudicial, rompendo-se, assim, com a blindagem criada pela Lei nº 8.009/1990.

Fundamentos jurídicos e legais para o rompimento da blindagem criada em favor do bem de família pela Lei nº 8.009/1990 temos em abundância:

? a) os arts. 1º e 3º, caput, são específicos ao processo de execução comum;

? b) os arts. 4º, § 1º e 5º bem apontam a finalidade do bem de família e sua limitação;

? c) o art. 1.711, do Código Civil, limita o bem de família ao valor de 1/3 (um terço) do patrimônio líquido ao tempo de sua constituição;

? d) a proteção ao bem de família não é absoluta; a sua proteção admite mitigação;

? e) a Lei de Recuperações e de Falências é especial em relação ao Código Civil e a Lei nº 8.009/1990;

? f) a proteção absoluta do bem de família não pode prevalecer para beneficiar o devedor em detrimento da coletividade de credores;

? g) a falência, por sua própria natureza, poderá indicar a:

? 1) prática de atos em fraude;

? 2) prática de atos em violação à lei ou ao contrato social;

? 3) prática de atos com desvio de finalidade;

? 4) prática de atos que configuram crime definidos na LRF;

? h) nada poderá superar ou suplantar o ato em fraude no ordenamento jurídico nacional;

? i) o ato em fraude é nulo; o ato em fraude jamais se converterá em legal;

? j) não pode o devedor, falido, valer-se da suposta blindagem legal para a prática de atos que impliquem confusão patrimonial, desvio de finalidade ou abuso da personalidade jurídica.[41] Portanto, diante de tais fundamentos, induvidosamente, somos favoráveis à arrecadação do bem de família nos processos de falência e de liquidação extrajudicial, ou seja, nos típicos casos de concurso de credores.

É impensável beneficiar o falido, o devedor liquidando ou seus sócios, acionistas ou administradores em detrimento da coletividade de credores na falência ou na liquidação extrajudicial. Garantir-lhes a blindagem patrimonial mediante a prevalência do instituto do bem de família, impedindo-se a arrecadação de tal bem nos processos de falência ou de liquidação extrajudicial é chancelar o benefício fraudulento; é parabenizar o devedor caloteiro, patife ou indecente; é beneficiar exclusivamente o devedor em detrimento dos credores. Não vemos como possa prevalecer o bem de família diante do concurso de credores, nos processos coletivos de falência ou de liquidação extrajudicial.

A propósito, vale registrar que o Código de Processo Civil, quando da reforma do Livro II – Processo de Execução (Projeto de Lei na Câmara dos Deputados nº 4.497/2004) – que mereceu aprovação no Congresso e transformado na Lei nº 11.382/2006 – que alterou e criou exclusivamente o Processo de Execução de Título Executivo Extrajudicial, quando enviado ao Poder Executivo para sanção, por gestões políticas, o parágrafo único, do art. 650, na redação aprovada, restou, indevidamente, vetado.

O referido parágrafo único autorizava, no processo de execução, a penhora do bem de família, quando afirmara: Art. 650. Podem ser penhorados, à falta de outros bens, os frutos e rendimentos dos bens inalienáveis, salvo se destinados à satisfação de prestação alimentícia. Parágrafo único. Também pode ser penhorado o imóvel considerado bem de família, se de valor superior a mil salários mínimos, caso em que, apurado o valor em dinheiro, a quantia até aquele limite será entregue ao devedor, sob cláusula de impenhorabilidade.

Como já dito antes e agora reafirmado, em Ciência Jurídica, tudo é impermanente, como também é a própria vida. Dessa forma, o bem de família, já ao tempo do Projeto de Lei nº 4.497/2004, fora mitigado para admitir o seu alcance e penhora, nos próprios autos da ação de execução, limitando-se o seu valor ao teto máximo, à época, a 1.000 (mil) salários mínimos.

Ainda sobre o tema, a Câmara dos Deputados quando aprovou a Lei nº 11.382, tentou avançar sobre o assunto, porém não foi adiante por razões supostamente escusas.[42], [43]

Salvo as exceções pontuais já indicadas, vale registrar que na falência a arrecadação compreende e compreenderá todos os bens do falido, inclusive o bem de família, além de ações e direitos e demais bens intangíveis, tanto os existentes à época da decretação da quebra quanto os que forem eventualmente adquiridos no curso da administração da quebra, ou, ainda, no curso da falência continuada ou funcionamento provisório, regra essa que já estava prevista no art. 39, do revogado Decreto-Lei nº 7.661/1945, em consonância com a responsabilidade patrimonial contida no art. 591, do Código de Processo Civil que assevera: O devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei.

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Sobre o autor
Luiz Guerra

Sócio Fundador & CEO do Guerra Advogados. Advogado sediado em Brasília, com atuação nos Tribunais Superiores. Parecerista. Embaixador Cultural da Rede Internacional de Advocacia de Excelência. Professor Titular e Decano de Direito Comercial da Faculdade de Direito/UNICEUB. Professor visitante em Universidades e Escolas Jurídicas no Brasil e no exterior. Jurista (autor de mais de 50 livros publicados no Brasil e no exterior). Articulista (autor de mais de 250 artigos publicados no Brasil e no exterior). Doutrinador (citado em doutrina e julgados). Palestrante & Conferencista em Seminários e Congressos Nacionais e Internacionais. Membro Benemérito do Instituto dos Advogados do Distrito Federal (ex-Presidente). Membro Efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros. Membro Efetivo do Instituto dos Advogados de São Paulo. Membro de Vários Institutos Culturais no Brasil e no exterior. Titular de comendas culturais e prêmios científicos nacionais e internacionais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUERRA, Luiz. Bem de família & o direito falimentar - mitigação da proteção do bem de família. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3911, 17 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26975. Acesso em: 26 abr. 2024.

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