3 A CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE: A JUDICIALIZAÇÃO E A PONDERAÇÃO DOS DIREITOS, AS CÂMARAS TÉCNICAS EM SAÚDE E OS CONSELHOS MUNICIPAIS
Já discutidos os impactos que a judicialização da saúde, de forma indiscriminada e desprovida de critérios técnicos, acarreta no próprio sistema e, por conseguinte, em toda a comunidade que dele depende, cumpre analisar três hipóteses que podem contribuir para o processo de redução da judicialização do direito à saúde: A ponderação do direito à saúde, os núcleos de assessoria técnica do judiciário e a participação da comunidade no âmbito dos conselhos de saúde.
A primeira diz respeito ao fato de que a judicialização do direito à saúde, vista sob a ótica dos direitos fundamentais, dos princípios do SUS, dos pressupostos da reserva do possível, do mínimo existencial e do princípio da separação dos poderes, necessita de uma imperiosa análise com vistas à ponderação dos direitos nas ações que envolvem tanto a justiça como a própria administração.
A segunda apresenta o caráter técnico necessário para auxiliar o Poder Judiciário em decisões que versem sobre saúde, permitindo, desta forma, decisões mais embasadas tecnicamente, o que evitará o desperdício de recursos públicos que, por sua vez, devem ser empregados em prol de toda a sociedade.
Por sua vez, os conselhos de saúde têm como papel discutir as políticas públicas desse tema no âmbito da comunidade, propiciando a democracia sanitária e, por conseguinte, uma maior conscientização acerca dos serviços de saúde.
3.1 A JUDICIALIZAÇÃO E A PONDERAÇÃO DOS DIREITOS
De posse de das premissas abordadas nos capítulos anteriores, insta analisar o fato de que a judicialização do direito à saúde não deve ser interpretada sob a ótica de extremos. O que se deve pretender é o equilíbrio entre o direito à saúde, a atividade jurisdicional e o dever do Estado de implementá-la, claro, dentro de suas reais disponibilidades e obrigações.
Na lição de Barroso (2007, p. 4, grifo nosso),
Aqui se chega ao ponto crucial do debate. Alguém poderia supor, a um primeiro lance de vista, que se está diante de uma colisão de valores ou de interesses que contrapõe, de um lado, o direito à vida e à saúde e, de outro, a separação de Poderes, os princípios orçamentários e a reserva do possível. A realidade, contudo, é mais dramática. O que está em jogo, na complexa ponderação aqui analisada, é o direito à vida e à saúde de uns versus o direito à vida e à saúde de outros. Não há solução juridicamente fácil nem moralmente simples nessa questão.
A doutrina de Barroso é categórica ao asseverar a necessidade de uma ponderação criteriosa e fundamentada acerca dos meandros que envolvem a judicialização do direito à saúde. Sendo assim, o Poder Judiciário não pode, sozinho, resolver os problemas das prestações sanitárias simplesmente retirando-se o “mínimo” de uns para efetivar o “máximo” a uma minoria. O Estado (gênero), por sua vez, não pode escusar-se de adimplir suas obrigações, de captar recursos, de modernizar suas políticas públicas e otimizar os serviços oferecidos.
A judicialização, neste aspecto, pode ser interpretada como um “mal necessário”, no sentido de que caberá ao judiciário fiscalizar as ações do Poder Executivo e possibilitar que o direito à saúde seja efetivado. Porém, esta atividade deve ser realizada de forma criteriosa, analisando-se os pedidos com maior afinco, observando-se as particularidades que as políticas públicas apresentam, apreciando-se a realidade social e a necessidade de quem pleiteia judicialmente o direito à saúde.
Nesta senda, os ensinamentos de Ana Paula de Barcellos (2007, p. 20) assim elucidam:
[...] Que espécie de prestação da saúde deve ser obrigatoriamente oferecida pelo Estado à população como um todo? Não será possível afirmar, evidentemente, que todas as prestações existentes estão nesse rol, sob pena de esvaziar totalmente o espaço de escolha política na matéria e conduzir os recursos públicos a uma possível exaustão, considerando a progressiva sofisticação e o incremento do custo dos serviços de saúde. Isso não significa, de outra parte, que não haja um conjunto de prestações mínimas que deva ser oferecida pelo Estado independente do grupo político no poder.
De fato, o Estado como responsável por implementar e executar as políticas de saúde não consegue abarcar todas as necessidades dos cidadãos em relação às prestações sociais. No caso da saúde, este aspecto é mais evidente e, por conseguinte, é imprescindível a ponderação acerca dos pressupostos que envolvem o direito à saúde, tendo por finalidade a busca pelo equilíbrio entre o dever estatal e a atividade jurisdicional.
3.2 OS NÚCLEOS DE ASSESSORIA TÉCNICA (NAT)
Os Núcleos de Assessoria Técnica começaram a ser implantados a partir da Recomendação nº. 31, de 30 de março de 2010, aprovada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no Fórum Nacional do Judiciário para Monitoramento e Resolução das Demandas de Assistência à Saúde, que foi instituído em 03 de agosto de 2010.
A recomendação era para que os tribunais adotassem medidas para subsidiar as decisões dos magistrados, a fim de assegurar-lhes mais eficiência na solução das demandas relativas à saúde, por exemplo, com apoio técnico de diversos profissionais da saúde (CNJ, 2011a).
A própria doutrina já elencava que esta aproximação ente justiça e profissionais técnicos seria uma forma de se reduzir a judicialização do direito à saúde, na medida em que os magistrados teriam o suporte técnico necessário para julgarem as demandas de forma a preservar o acesso universal e igualitário ao SUS, realizando, desta forma, a ponderação que este direito pressupõe.
Nas palavras de Sarlet e Figueiredo (2008, p. 35).
[...] A necessidade de profissionais especializados e que não apresentam conflitos de interesses com a matéria discutida na demanda em juízo abre espaço não somente para a formação de experts, quanto para a colaboração das entidades de classe, especialmente dos profissionais de saúde – revelando, também aqui, outra faceta dos princípios constitucionais da subsidiariedade, da eficiência, da solidariedade e da cooperação, pela procura por informações e quem possa dispor e prestar com maior propriedade e isenção.
O primeiro NAT a ser implantado foi no Estado do Rio de Janeiro, em 2008, antes mesmo da própria recomendação do CNJ. O NAT carioca é composto por 26 profissionais de diversas áreas da saúde, como médicos, farmacêuticos, enfermeiros, nutricionistas, que atuam com o objetivo de subsidiar os magistrados em suas decisões sobre as demandas de saúde e, desta forma, dar tranquilidade aos juízes nos momentos das decisões relacionadas ao tema, bem como evitar fraudes neste tipo de solicitação judicial (CNJ, 2011b).
No Estado do Espírito Santo, o NAT foi regulamentado pelo Tribunal de Justiça (TJES) no Ato Normativo nº. 135, de 14 de setembro de 2011, e encontra-se em funcionamento desde 21 de setembro de 2011, em parceria com o Poder Executivo. São quatro farmacêuticos e um médico que auxiliam o Poder Judiciário na resolução das demandas de saúde postas em julgamento (ESPÍRITO SANTO, 2011a).
Os profissionais, ao analisarem os pedidos, devem atuar em conformidade com seus respectivos códigos de ética, contribuindo, desta forma, para o respeito aos usuários e às próprias políticas de saúde já estabelecidas.
Na doutrina de Barcellos (2007, p. 22)
É bem verdade que, salvo diante de situações extremas, o intérprete jurídico dificilmente terá condições de avaliar, sozinho, se a política pública adotada pela autoridade é minimamente eficiente. Neste ponto, será indispensável a comunicação do Direito com outros ramos do conhecimento, que poderão fornecer essa espécie de informação ao jurista com consistência científica. Não se trata, repita-se, de julgar entre eficiências maiores ou menores, nem de substituir a avaliação política da autoridade democraticamente eleita pela do juiz, mas apenas de eliminar as hipóteses de ineficiência comprovada. Assim, se houver consenso técnico – cientifico de que o meio escolhido pelo Poder Público é ineficiente, ele será também juridicamente inválido, pois não se poderá considerá-lo um meio legitimamente destinado a realizar o fim constitucional.
Com este auxílio, espera-se que as demandas sejam mais bem analisadas, visto que contarão com os pareceres técnicos do NAT, o que acarreta em economia de recursos e justiça a todos os cidadãos.
O magistrado possuirá, desta forma, o embasamento técnico para negar os pedidos que atentem contra as políticas públicas, proporcionando que os já escassos recursos não sejam desperdiçados com tutelas de interesses individuais e que não coadunam os objetivos do Sistema Único de Saúde. Destarte, o mesmo embasamento servirá para que o próprio magistrado concretize o direito à saúde quando este, por algum motivo, não for implementado devidamente pela autoridade administrativa.
3.1 OS CONSELHOS DE SAÚDE
Os conselhos de saúde foram instituídos pela Lei 8.142, de 28 de dezembro de 1990, como forma de possibilitar a participação da comunidade no âmbito do SUS. O artigo 1º, §2º assim o define:
Art. 1º. [...]
§ 2º. O Conselho de Saúde, em caráter permanente e deliberativo, órgão colegiado composto por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários, atua na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera do governo [...] (BRASIL, 1990b).
Os Conselhos atuam nas três esferas governamentais, federal, estadual e municipal e são importantes meios de participação popular nas discussões para a melhoria do Sistema Único de Saúde. Por deverem ser compostos de forma paritária pelos representantes acima, garantem a democracia na discussão sobre as políticas de públicas de saúde.
A lei 8.142/90, ratificando a relevância da implantação dos conselhos, condicionou que os repasses financeiros de verbas federais à administração só seriam efetivados caso, nas três esferas governamentais, os conselhos de saúde já estivessem implantados, de acordo com o artigo 4ª, inciso II da referia lei.
Acerca da participação da sociedade, Schwartz (2001, p. 182) assim leciona:
A sociedade organizada também faz parte do equacionamento da questão da saúde, agindo e/ou influenciando os órgãos competentes, no sentido de tutelar seus interesses, pois a saúde é um problema cuja solução não se restringe a um único agente.
Neste aspecto, a comunidade, por meio dos conselhos de saúde, atua de forma a proteger seus interesses, não deixando apenas à critério da administração pública as “escolhas políticas” em relação à saúde.
Deve-se analisar também que a ingerência do Poder Judiciário na Administração Pública, da forma como vem ocorrendo, afronta o próprio princípio da participação popular, uma vez que as deliberações dos conselhos sobre possíveis políticas públicas para a saúde são negadas ou marginalizadas pela atuação do judiciário.
Nesse sentido, os conselhos também podem contribuir no processo de redução da judicialização da saúde, na medida em que propiciem debates acerca das necessidades dos usuários do SUS, bem como das especificidades que cada indivíduo apresenta. Como órgãos de fiscalização, atuam diretamente na proteção dos interesses da comunidade, realizando o controle social do SUS.
Nas palavras de Ivo de Carvalho (1997, apud SCHWARTZ, 2001, p. 189),
“A experiência dos Conselhos tem certamente servido de campo para a consideração do interesse público, não apenas na perspectiva de igualdades básicas, mas, também do respeito às diferenças, propiciando e acolhendo demandas que buscam legitimação e solução não pela extensão de direitos iguais e prestações padronizadas, mas sim pela discriminação de necessidades específicas, decorrentes da diversidade das situações sociais e culturais”.
Muitas demandas que chegam ao judiciário, dependendo de sua natureza e complexidade, podem ser discutidas, primeiramente, no âmbito dos conselhos de saúde, uma vez que se pode chegar a um entendimento entre os possíveis demandantes e a própria administração, evitando-se, desta forma, o ingresso na via judicial para se solucionar, por exemplo, demandas sobre medicamentos já padronizados e que, sob algum motivo, não se encontram disponíveis para todos os usuários.
Ainda, os conselhos devem atuar como meios de conscientização da população acerca das políticas de prevenção, como forma de reduzir os agravos e, consequentemente, o dispêndio de recursos em serviços mais complexos para a recuperação da saúde. Com isso, os recursos existentes poderão alcançar e beneficiar um maior número de indivíduos.
O fortalecimento da democracia é, sem dúvida, um meio eficaz de permitir que interesses da coletividade sejam valorizados e que as ações e serviços de saúde desenvolvam-se na busca da efetivação do direito à saúde a todos, não somente, por exemplo, a determinados grupos que possuam maior acesso à justiça.
No ensinamento de Bolzan de Morais (1997, apud SCHWARTZ, 2001, p. 189),
“Se a democracia permite o avanço das demandas sociais, mesmo sob o risco real de que isto possa produzir os impasses que hoje se vislumbram, em razão mesmo das respostas produzidas, será a mesma democracia que permitirá o encontro de alternativas suficientes e eficientes para a construção de um novo espaço social”.
A participação popular, possibilitada pela democracia do SUS, contribui, portanto, para que os serviços de saúde sejam mais bem implementados e que as políticas de saúde estejam em constante desenvolvimento, com vistas a conferir aos usuários uma saúde de qualidade, desde o aspecto preventivo, até o promocional e curativo.