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A judicialização do direito à saúde

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A redução da judicialização do direito à saúde encontra-se condicionada a uma ponderação acerca dos princípios da universalidade e integralidade, dos pressupostos da escassez de recursos e da reserva do possível, da separação dos poderes e, claro, da necessidade da própria administração atualizar constantemente as políticas de saúde.

RESUMO: O presente artigo científico visa analisar a judicialização do direito à saúde, refletindo sobre as conseqüências que este fenômeno pode acarretar na sociedade. O objetivo é o de se discutir como a ponderação do direito à saúde, do auxílio de profissionais técnicos e a participação da comunidade, por meio dos conselhos de saúde, podem contribuir para a redução da judicialização do direito à saúde. Assim, a judicialização do direito à saúde será discutida frente aos princípios da universalidade e integralidade e sob a ótica dos pressupostos da escassez de recursos e da reserva do possível, da garantia do mínimo existencial, da equidade e do princípio da separação dos poderes. Por fim, os resultados obtidos demonstram que a ponderação do direito, a implantação dos Núcleos de Assessoramento Técnico (NAT) e a participação da comunidade são meios que podem auxiliar na redução da judicialização do direito à saúde.

Palavras-chave: Judicialização do direito à saúde. Escassez de recursos. Reserva do possível. Mínimo existencial. Separação dos poderes. Ponderação do direito. Núcleos de assessoramento técnico. Conselhos de saúde.

SUMÁRIO. 1 Introdução. 2 A Judicialização do direito à saúde. 2.1 A judicialização frente à universalidade e à integralidade do sistema único de saúde. 2.2 A reserva do possível e a escassez de recursos: uma realidade a ser observada. 2.3 O mínimo existencial e a reserva do possível: uma ponderação necessária com vistas à equidade no SUS. 2.4 A judicialização e a independência do poder executivo: o respeito às políticas públicas. 3 A concretização do direito à saúde: a judicialização e a ponderação dos direitos, as câmaras técnicas em saúde e os conselhos municipais. 3.1 A judicialização e a ponderação dos direitos. 3.2 Os núcleos de assessoria técnica (Nat). 3.3 Os conselhos de saúde . 4 Conclusão. 5 Referências.


1 INTRODUÇÃO

O presente artigo científico visa analisar a judicialização do direito à saúde, refletindo sobre as consequências que este fenômeno pode acarretar na sociedade.  O presente será direcionado com a finalidade de se discutir como a ponderação do direito à saúde, do auxílio de profissionais técnicos e a participação da comunidade, por meio dos conselhos de saúde, podem contribuir para a redução da judicialização desse direito.

Para tanto, a judicialização do direito à saúde será relacionada com dois princípios basilares do Sistema Único de Saúde – SUS, a universalidade e a integralidade do sistema, procurando-se demonstrar como a judicialização deste direito, de forma imperiosa e desprovida de critérios técnicos, pode ir de encontro às políticas de saúde implementadas pelo Poder Executivo.

Por conseguinte, dedicar-se-á a discutir o binômio reserva do possível e escassez de recursos, uma vez que, como o direito à saúde apresenta sua efetividade condicionada a prestações positivas por parte da administração pública, o pressuposto da finitude dos recursos deve ser observado e ponderado, pelo fato de ser considerado um limite fático à implementação do mesmo.

A garantia do mínimo existencial e a reserva do possível também serão relacionados, com o objetivo de demonstrar que as demandas judiciais relativas à saúde devem ir ao encontro dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, com vistas à equidade no sistema.

Por fim, abordar-se-á a judicialização frente ao princípio da separação dos poderes e ao respeito às políticas públicas de saúde, discutindo-se sobre a ingerência irrefletida do poder judiciário na administração pública.

Por fim, serão discutidas às hipóteses que podem corroborar para a redução da judicialização do direito à saúde: a ponderação do direito, a implantação dos Núcleos de Assessoramento Técnico – NAT e a participação da comunidade por meio dos conselhos de saúde.


2 A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 ao afirmar que a “saúde é direito de todos e dever do Estado”, caracterizando este direito como sendo direito público subjetivo, ratificou a justiciabilidade deste, ou seja, possibilitou que a saúde fosse pretendida e implementada pelo judiciário, quando ausentes as ações prestacionais de responsabilidade do Poder Executivo.

É o que se pode extrair da seguinte lição de Figueiredo (2007, p. 103):

A ideia de justiciabilidade do direito à saúde aponta diretamente para o reconhecimento de posições jurídico-subjetivas em favor de quem titule este direito, seja no sentido de exigir respeito e não-interferência (pretensão defensiva), seja no que concerne a demandas por proteção e fornecimento de bens (pretensões de caráter prestacional) [...].

Os pedidos são os mais diversos possíveis: atendimento médico, medicamentos, insumos terapêuticos, tratamentos experimentais, vagas em hospitais, leitos de UTI, tratamentos à dependentes químicos, entre outros.

O fato é que a chamada judicialização ou justiciabilidade do direito à saúde tem aumentado significativamente nos últimos anos, fato que vem acarretando diferentes posicionamentos no que concerne à atuação do poder judiciário na “concretização” do direito à saúde. É o que se pode verificar, por exemplo, nas palavras de Serrano (2009, p. 119), segundo a qual

[...] o incremento na busca do Judiciário por direitos sociais provoca o desenvolvimento e aperfeiçoamento do próprio exercício democrático, buscando, no caso da saúde, o aprimoramento do SUS, com o fito de atingir a concretização do sistema, tal qual previsto delineado pela Constituição Federal, que rompeu com toda a sistemática anterior, com claro caráter universalista [...].

E de Gustavo Amaral (2001, apud MENDES; COELHO; BRANCO, 2010, p. 829), uma vez que,

Nessa linha de análise, argumenta-se que o Poder Judiciário, o qual estaria vocacionado a concretizar a justiça do caso concreto (microjustiça), muita vezes não teria condições de, ao examinar determinada pretensão à prestação de um direito social, analisar as consequências globais de destinação de recursos públicos em benefício da parte com invariável prejuízo para o todo.

Cumpre ressaltar que a questão é tão polêmica que imperiosa faz-se sua análise mitigada, devendo-se levar em consideração argumentos tais como, o princípio da dignidade da pessoa humana, a reserva do possível, o mínimo existencial, o orçamento público, os princípios do SUS, a separação dos poderes, entre outros.

2.1 A JUDICIALIZAÇÃO FRENTE À UNIVERSALIDADE E À INTEGRALIDADE DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

A CF/88 e a própria Lei 8.080/90, ao versarem que a integralidade da assistência é entendida como um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema, não condicionaram a efetivação do direito à saúde na existência de atendimentos médicos, insumos terapêuticos, exames e medicamentos diversos a qualquer custo, sem a observância se estes se encontram regulamentados, testados e aprovados pelo Sistema Único de Saúde (BRASIL, 1990a).

O fato é que a integralidade vem sendo empregada pelo poder judiciário de uma forma diversa daquela preceituada pelo Ministério da Saúde. É o que se pode constatar na lição de Cezar Médici (2010, p. 82):

Nos últimos anos, as cortes judiciais no Brasil têm inter­pretado o tema da integralidade de forma distinta do conceito utilizado pelo Ministério da Saúde. Para o Ministério, a in­tegralidade deveria ser garantida por um conjunto de bens e serviços de saúde de eficácia comprovada no tratamento dos principais problemas epidemiológicos da população brasilei­ra. Mas, em grande parte das demandas judiciais, o que acaba ocorrendo é a exigência de se tratar certa doença com o uso de determinado produto farmacêutico, procedimento ou terapia não incorporados pela evidência médica disponível, mesmo que o tratamento desta doença já esteja contemplado no SUS por meio de alternativas terapêuticas comprovadamente mais eficazes pelos parâmetros disponíveis [...].

Desta forma, a garantia da saúde não pode ser entendida sob a ótica de que aos cidadãos caberá todo e qualquer tipo de serviços de saúde sem que estes estejam contemplados pelo Poder Público.

Acerca desta problemática, cabe trazer à luz parte do acórdão proferido pela 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – TJ/RS, no julgamento da Apelação Cível nº 70014801005, de relatoria do Desembargador Araken de Assis[1]:

[...] Não há prova alguma de que a autora, realmente, necessite dos medicamentos indicados na inicial, e na posologia prescrita, exceto a opinião de seu médico assistente. Mas, qual é o valor dessa prescrição? A única lealdade desse médico é com seu paciente. Daí, para ela pode pretender o impossível: medicamentos não fornecidos pela rede pública, ou de preço muito elevado, ou sequer ainda aprovados pelo Ministério da Saúde. Também pode ter a preferência por algum laboratório em especial, ou em relação a alguma marca, em detrimento do mesmo fármaco genérico, confeccionado no laboratório estatal [...]. 

Não obstante de que o ente público não pode olvidar de atualizar seus protocolos clínicos com a finalidade de propiciar aos usuários serviços de saúde mais modernos e eficazes, o acórdão acima demonstra de forma nítida que a diretriz da integralidade, na forma como vem sendo empregada pelo judiciário, traz prejuízos ao Sistema Único de Saúde e à coletividade, uma vez que para o adimplemento destas demandas retiram-se recursos financeiros do orçamento público que são empregados em favor de um indivíduo para a realização, por exemplo, de tratamentos não contemplados pelo sistema público ou que ainda sequer tiveram sua eficácia comprovada pelos órgãos competentes.                                      

Destarte, cabe também analisar a seguinte decisão da Ministra Ellen Gracie[2], que, na Suspensão de Tutela Antecipada nº 91/AL, julgada em 2007, ao deferir, em parte, o pedido do Estado de Alagoas, suspendendo a decisão que foi proferida em ação civil pública que determinou o referido Estado a arcar com o fornecimento de todos os medicamentos necessários ao tratamento de pacientes renais crônicos, foi ao encontro do preceituado pelo princípio da integralidade do SUS. Segue parte da decisão: 

b) ocorrência de grave lesão à economia pública, porquanto a liminar impugnada é genérica ao determinar que o Estado forneça todo e qualquer medicamento necessário ao tratamento dos transplantados renais e pacientes renais crônicos, impondo-lhe a entrega de "(...) medicamentos cujo fornecimento não compete ao Estado dentro do sistema que regulamenta o serviço, (...)" (fl. 08). Nesse contexto, ressalta que ao Estado de Alagoas compete o fornecimento de medicamentos relacionados no Programa de Medicamentos Excepcionais e de alto custo, em conformidade com a Lei n.° 8.080/90 e pela Portaria n.° 1.318 do Ministério da Saúde.

5. A Lei 8.437/92, em seu art. 4º, autoriza o deferimento do pedido de suspensão de execução de liminar para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas. Verifico estar devidamente configurada a lesão à ordem pública, considerada em termos de ordem administrativa, porquanto a execução de decisões como a ora impugnada afeta o já abalado sistema público de saúde. Com efeito, a gestão da política nacional de saúde, que é feita de forma regionalizada, busca uma maior racionalização entre o custo e o benefício dos tratamentos que devem ser fornecidos gratuitamente, a fim de atingir o maior número possível de beneficiários.

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A referida decisão ao asseverar que ao Estado de Alagoas não caberia fornecer indistintamente todo e qualquer medicamento necessário ao tratamento, bem como que o medicamento pleiteado não dispunha de comprovação técnica pelo Ministério da Saúde acerca de sua eficácia, ratificou o princípio da integralidade, uma vez que o SUS “busca uma maior racionalização entre o custo e o benefício dos tratamentos[3]”.

É fato também que a “concretização” do direito à saúde pela via judicial de forma indiscriminada e sem critérios técnicos pode acarretar graves prejuízos ao já “abalado sistema de saúde público[4]”.

Nota-se também que, a partir da análise jurisprudencial, a grande maioria dos pedidos são prontamente atendidos pelo judiciário. Corroborando com este entendimento, Fernando Scaff (2011, p. 107) assim leciona:

Existe a nítida convicção no meio jurídico brasileiro que a concretização da Justiça só pode ocorrer através do Poder Judiciário, como se este tivesse o monopólio da realização da justiça, sendo impossível alcança – lá através de ações dos demais Poderes ou dos entes privados. Esta ideia faz com que muitos dos operadores jurídicos – advogados públicos e privados, membros do Ministério Público e da Polícia e, especialmente os membros do Poder Judiciário – assumam uma função de verdadeiros paladinos da justiça, deixando muitas vezes a legislação de lado e interpretando diretamente a Constituição a seu talante. É como se tivéssemos retornado à época da Escola do Direito Livre, onde cada juiz aplicava a norma segundo sua convicção pessoal.

A partir desta premissa, a posição que o Poder Judiciário adota frente às demandas que envolvem o direito à saúde é a de, muitas vezes, negar também outro princípio norteador das ações e serviços de saúde: a universalidade do SUS.

Acerca deste princípio, já abordado em tópico anterior, cabe ainda enfatizar que o sistema público de saúde visa atingir a todos os cidadãos de forma igualitária e equitativa, sendo seu acesso universal, de forma que a implementação das políticas

públicas em saúde existentes possam reduzir as desigualdades socioeconômicas entre a população.

Ocorre que ao revés deste princípio, a cultura existente acaba por favorecer a parte em detrimento do todo, uma vez que tutela jurisdicional que não observe o caráter universal do sistema pode privilegiar um indivíduo em detrimento da coletividade. É o que se pode perceber no seguinte julgado, de lavra do eminente Ministro Celso de Mello[5]:

“[...] Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição da República (art. 5º, caput), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: o respeito indeclinável à vida[...]”.

A interpretação do direito à saúde como sendo ilimitado é plenamente insustentável perante as particularidades que uma política pública apresenta. Destarte, esta concepção vai de encontro à universalidade do sistema, uma vez que “[...] como não se pode dar tudo a todos, dá-se tudo a alguns, e necessariamente menos, ou nada, a outros [...]” (FERRAZ; VIEIRA, 2009, p. 243).

Outro aspecto relevante a ser observado é o de que o acesso à justiça ainda é “privilégio” de uma minoria que detém maiores condições de renda.  Nas palavras de Sarlet e Figueiredo (2008, p. 25),

[...] Um dos argumentos centrais da tese – não sem respaldo em dados concretos – sublinha o fato de que as decisões judiciais tutelam apenas quem tem acesso à justiça, e que esta é uma minoria da população, e uma minoria que não reflete exatamente o conceito de “necessitado”. Se o direito à saúde é um direito social, e se os direitos sociais têm por objetivo a redução das desigualdades fáticas, de forma a promover a emancipação das pessoas menos favorecidas da população – e no Brasil é enorme o número de pessoas que (sobre)vivem em condições de pobreza ou até de miséria absoluta –, a prestação sanitária assegurada judicialmente, sobretudo por meio de ações individuais, nem sempre se mostra em sintonia com o princípio constitucional da igualdade substancial, nem parece atender aos objetivos fundamentais da República, elencados no artigo 3º da CF [...].

O trecho acima explicita categoricamente que a efetivação do direito à saúde pelo judiciário, sem a necessária ponderação que um direito deste talante exige, acarreta o efeito contrário do pretendido por este, uma vez que, de forma indireta, privilegia-se um indivíduo detentor de maior renda em detrimento de uma coletividade de necessitados.

Na Suspensão de Tutela Antecipada nº 91/AL[6], já abordada neste capítulo, a Ministra Ellen Gracie também discorre acertadamente sobre a universalidade do SUS, como se pode perceber em parte da decisão a seguir:

Entendo que a norma do art. 196 da Constituição da República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde. No presente caso, ao se conceder os efeitos da antecipação da tutela para determinar que o Estado forneça os medicamentos relacionados "(...) e outros medicamentos necessários para o tratamento (...)" (fl. 26) dos associados, está-se diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde básicos ao restante da coletividade. (grifo nosso)

Neste sentido, os princípios da universalidade e da igualdade no acesso aos serviços de saúde não devem ser sopesados pelo interesse de uma minoria e, por conseguinte, os recursos financeiros disponíveis para a implementação das políticas públicas já existentes e para o desenvolvimento de outras novas e mais eficazes, não podem ser comprometidos em demandas judiciais que não cumpram com a finalidade de promover, proteger e recuperar a saúde dos cidadãos de forma universal e igualitária.  

Cumpre ressaltar, portanto, que os princípios norteadores do SUS, em especial a universalidade e a integralidade da assistência devem ser observados no julgamento das demandas que envolvam prestações sanitárias, sob pena de que, caso não o sejam, os resultados produzidos pelo judiciário irão à contramão do preceituado pela pelas políticas públicas de saúde. 

2.2 A RESERVA DO POSSÍVEL E A ESCASSEZ DE RECURSOS: UMA REALIDADE A SER OBSERVADA

Os direitos sociais, cuja efetivação é dependente das prestações positivas por parte do Estado, em especial, o direito à saúde, estão condicionados à previsão de recursos financeiros para sua concessão, fator que impõe uma limitação real que necessariamente deve ser observada.

O princípio da reserva do possível tem origem alemã e sua construção teórica remonta à década de 70. Na concepção de Ingo Sarlet e Mariana Figueiredo (2007, p. 188), “[...] a efetividade dos direitos sociais a prestações materiais estaria sob a reserva das capacidades financeiras do Estado, uma vez que seriam direitos sociais dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos [...]”.

A doutrina não é unânime acerca da aplicação deste princípio para afastar a obrigatoriedade de adimplir as determinações judiciais que versam sobre o direito à saúde. Como se pode observar na lição do ilustre doutrinador Canotilho (2007, p. 481-482), “[...] um direito social sob ‘reserva de cofres cheios’ equivale, na prática, a nenhuma vinculação jurídica [...].”

Em contrapartida, Vivian Rigo (2007, p. 177) assim leciona:

Os direitos sociais condicionados à prestação do Estado (como é o caso da saúde) sujeitam-se à reserva do possível, que está vinculada ao limite de recursos do Estado, significando, em síntese, que a pessoa somente pode exigir do Estado uma prestação que seja razoável para o Estado cumprir. A cláusula da reserva do possível abrange a possibilidade e o poder de disposição do Estado, colocando os direitos sociais prestacionais na dependência da conjuntura socioeconômica.

É fato que este artigo não pretende, de forma alguma, negar o caráter prestacional do direito à saúde, muito menos condicioná-lo exclusivamente a previsão de recursos financeiros por parte do Estado, bem como que as políticas públicas que integram o SUS não possam ser alcançadas pelo judiciário quando o ente da federação responsável pelas mesmas, por algum motivo, não cumpri-las.

Ocorre que há a necessidade de se observar o fato de que o Estado não apresenta recursos ilimitados, tendo que, portanto, realizar escolhas alocativas dos recursos existentes em todas as áreas de interesse social como, por exemplo, educação e segurança.

Nas palavras de Antônio José Avelãs Nunes (2011, p. 37),

O que é verdade e é relevante é que não há – em nenhum país do mundo! – recursos financeiros bastantes para atender, sem limites, todas as exigências de todos quanto à satisfação plena dos direitos sociais, econômicos e culturais. E – é bom lembrar – também quanto à efectiva realização dos clássicos direitos, liberdades e garantias.

Além disso, de acordo com Christopher Newdick (2005, apud FERRAZ; VIEIRA, 2009, p. 226),

Ainda que soubéssemos exatamente que políticas são eficazes para se garantir o mais alto grau de saúde possível a toda a população, seria impossível implementar todas essas políticas. Isso porque, enquanto as necessidades de saúde são praticamente infinitas, os recursos para atendê-las não o são, e a saúde, apesar de um bem fundamental e de especial importância, não é o único bem que uma sociedade tem interesse em usufruir. 

A fim de ilustrar a dificuldade que a judicialização, muitas vezes despida de critérios técnicos, como já mencionado no decorrer deste capítulo, acarreta no orçamento da administração, de acordo com dados do Governo do Estado do Espírito Santo (2011a), no ano de 2010 foram gastos mais de dez milhões de reais para o cumprimento de diversas demandas judiciais, dentre as quais 587 ações que versavam sobre a compra de medicamentos que não se encontravam na lista oficial da Secretaria Estadual de Saúde. Do início do ano de 2011 até a data de 21 de setembro de 2011, o Estado já foi citado para se defender em 1.848 ações, uma média de 7 ações por dia. Destas, 724 dizem respeito à compra de medicamentos; 440 referem-se à realização de cirurgias; 212 à realização de exames; 150 a tratamentos diversos; 105 à compra de equipamentos e materiais; 86 a atendimentos médicos e 131 a outros pedidos.

De posse destas informações, não há como negar que a natureza prestacional do direito à saúde acarrete uma justa ponderação entre a pretensão e disponibilidade financeira da Administração Pública, sob pena de, caso contrário, privilegiarem-se à individualidade em detrimento da coletividade, muitas vezes, usuários mais necessitados, com baixo poder aquisitivo e que apresentam maior necessidade e urgência às prestações sanitárias.

2.3 O MÍNIMO EXISTENCIAL E A RESERVA DO POSSÍVEL: UMA PONDERAÇÃO NECESSÁRIA COM VISTAS À EQUIDADE NO SUS

Outro aspecto a ser observado acerca da judicialização do direito à saúde é o binômio “mínimo existencial” e “reserva do possível”.

Segundo o jurista Ricardo Lobo Torres (1999, apud FIGUEIREDO, 2007, p. 188), o mínimo existencial diz respeito a “[...] um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas [...]”.

Importa salientar que a garantia do mínimo existencial não é consagrada explicitamente na Constituição, sendo conceituada pela doutrina ora como direito pré-constitucional, ora como direito tipicamente fundamental, versando sobre a integridade física, implicitamente ligada à dignidade da pessoa humana e a outros direitos fundamentais (FIGUEIREDO, 2007).

Como exemplo dos direitos abarcados pela garantia do mínimo existencial, no que tange aos direitos sociais, professor Barroso (2007, p. 10) afirma que esta garantia “[...] corresponde às condições elementares de educação, saúde e renda que permitam, em uma determinada sociedade, o acesso aos valores civilizatórios e a participação esclarecida no processo político e no debate público [...]”. 

De posse do conceito e de premissas básicas acerca da garantia do mínimo existencial, cumpre agora analisá-lo especificamente em relação ao direito à saúde.

Assim sendo, na concepção de Gelis Filho (2001, apud FIGUEIREDO, 2007, p. 208), as obrigações constituintes desta garantia são concretizadas por oito elementos integrantes das ações de efetivação do direito à saúde:

[...] educação sobre os problemas prevalentes de saúde e sobre os métodos de preveni-los e controlá-los; provisão de adequados suprimentos de alimentos e nutrição adequada; suprimento de água e saneamento básico; cuidados com as crianças e com as mães, incluindo-se o planejamento familiar; imunização contra as principais doenças infecciosas; prevenção e controle de doenças endêmicas; tratamento adequado de doenças e lesões comuns; e fornecimento de medicamentos essenciais. 

O conceito acima elencado não esgota todos os possíveis, mas delimita com precisão grande parte das ações a serem observadas para a efetivação do direito à saúde, por meio das prestações positivas do Estado. Tais ações, por sua vez, integram o rol das políticas públicas em saúde já existentes e empregadas pelo SUS.

Não obstante, garantir apenas o mínimo para uma vida digna não pode ser considerado como medida exaustiva que isente o ente público de maiores obrigações, uma vez que ao Estado caberá a busca constante por ações e recursos que contemplem a promoção, prevenção e recuperação da saúde em maior amplitude.

O fato é que, o Poder Judiciário, sob a justificativa de se garantir o “mínimo existencial”, sem a devida observação à teoria da reserva do possível, retira o “mínimo” de uns para conferir o “máximo” a outros, indo de encontro aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade.

De acordo com estes princípios, a concessão de poderes, privilégios ou benefícios deve observar as ideias de justiça, equidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida, proibição de excesso, direito justo e valores afins (MENDES; COELHO; BRANCO, 2010).

Sendo assim, não é proporcional retirar escassos recursos da administração e conferi-los a um único indivíduo, em detrimento da coletividade de usuários do sistema público, nem razoável, tendo em vista que, por exemplo, muitas decisões compelem a administração a arcar com tratamentos que sequer sejam reconhecidos e testados pelos órgãos competentes.

Todavia, de acordo com Sidney Guerra e Lilian Emerique (2006, p. 392),

Os valores de ordem econômica não são postos como absolutos que sobressaiam à efetivação dos direitos sociais cujo propósito consiste na concretização dos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, embora seja preciso ter certa dose de cautela para não cair no extremo de pensar que o Estado pode tudo, também não se deve admitir que o Estado não possa nada ou quase nada em função das crises econômicas, neste meio termo se situa a necessidade de equilíbrio entre a dinâmica de emprego da reserva do possível em seu grau máximo, principalmente impedindo retrocessos nas conquistas sociais.

Neste sentido, torna-se inevitável a busca pela equidade nas prestações judiciais, sendo esta entendida como sendo a “[...] redução ou a eliminação das diferenças que advém de fatores considerados evitáveis e injustos, criando, desse modo, igual oportunidade em saúde e reduzindo as diferenças injustas tanto quanto possível” (VIANA; FAUSTO; LIMA, 2001, apud FERRAZ; VIEIRA, 2009, p. 242).

O acolhimento do princípio da equidade faz-se mister pelo fato de que se deve priorizar os usuários mais necessitados em detrimento daqueles que, muitas vezes, dispõem de recursos financeiros não somente para arcarem com os serviços pretendidos, mas também acionar a justiça. É o que se pode perceber nos estudos de Vieira e Ferraz (2009, p. 26), a partir do seguinte trecho:

No espaço que nos resta queremos apenas destacar uma outra consequência, menos evidente, mas particularmente grave que a desconsideração do fator da escassez de recursos pode gerar em relação à equidade do sistema. A realocação judicial dos recursos da saúde não é totalmente aleatória, mas obedece muitas vezes, ainda que não deliberadamente, a uma lógica perversa de transferência de recursos dos mais necessitados aos mais privilegiados na sociedade.

Desta forma, cabe a discussão, à luz do princípio da equidade, da necessidade de comprovação da hipossuficiência do usuário em arcar com o pedido da demanda, partindo-se da premissa da reserva do possível/escassez de recursos e de que as ações e serviços de saúde, oferecidos pelo Sistema Único de Saúde, devem priorizar os usuários que apresentam maior risco no que tange ao aspecto social, cultural e econômico, bem como as ações de prevenção e proteção da saúde, sabidamente menos onerosas de que a recuperação da mesma.

Há também a necessidade de prova do pleiteado nas demandas sanitárias, como forma de não se ferir o princípio da equidade. A esse respeito, Araken de Assis[7], em julgamento na 4ª Câmara Cível do TJ/RS assim dispõe, de acordo com parte da decisão a seguir:    

[...] É evidente no caso em tela que a prova produzida nos autos da ação citada é falha e inconclusiva. A autora, alegando ser portadora de arritmia, doença cardiovascular, sustenta que necessita de tratamento contínuo com os remédios Amitriptilina 25mg e Verapamil 800mg. Da singela prescrição médica que instrui a petição inicial não se revela possível concluir acerca de algumas questões importantes para o deslinde da causa, quais sejam: a gravidade da doença, a eficácia da medicação indicada, e a possibilidade de substituição por outros fármacos [...]. 

Destarte, não há como negar a necessidade de provas que venham ratificar o pleito, caso contrário, poderá se averiguar resultado diverso do pretendido pelo próprio Poder Judiciário acerca da “concretização” do direito à saúde.

Com base nas premissas acima elencadas, ressalta-se a relevante observação acerca dos critérios que devem permear os julgamentos das demandas que envolvam o direito à saúde e sua implementação, sob pena de se privilegiar determinados usuários e, em contrapartida, não se ater ao principio da equidade do sistema, sob a ótica da finitude dos recursos financeiros. 

2.4 A JUDICIALIZAÇÃO E A INDEPENDÊNCIA DO PODER EXECUTIVO: O RESPEITO ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 2º, estabelece que “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário” (BRASIL, 1988).

A independência dos poderes pressupõe, entre outros aspectos, que a organização e execução dos serviços é livre a cada um, não necessitando, por exemplo, da anuência do outro para realizar suas respectivas atribuições. Quanto à harmonia, esta verifica-se, primeiramente, no trato cortês que cada poder deve dispensar ao outro e, no respeito às prerrogativas de suas respectivas funções (SILVA, 2010).

No que tange às atribuições, ao Poder Legislativo cabe, sucintamente, a edição de regras gerais e abstratas, impessoais e inovadoras, ou seja, as leis; ao Poder Judiciário, a atividade jurisdicional, aplicando-se o direito aos casos concretos a fim de se dirimir os conflitos de interesse postos em julgamento; Ao Poder executivo, caberá executar as ações governamentais e administrativas (SILVA, 2010).

Como a administração do orçamento disponível destinado à efetivação das prestações sanitárias incumbe ao Poder Executivo, o Poder Judiciário, ao ordenar que o Executivo arque com os pedidos deferidos nas demandas que versam sobre direito à saúde, afronta categoricamente a separação dos poderes, disposta no Artigo 2º da CF/88, princípio de natureza fundamental do Estado Democrático de Direito.

Ao atuar desta forma, o Poder Judiciário acaba por desestabilizar as políticas existentes, uma vez que sua decisão não tem o poder de “criar” novos recursos financeiros para arcar com todos os pedidos deferidos acerca de medicamentos, consultas, insumos, exames, entre outros (MARIN, 2010).

O eminente professor, Antônio José Avelãs Nunes (2011, p. 38) faz o seguinte paralelo entre a separação dos poderes e a atuação do Judiciário:

E como os recursos financeiros ao dispor do estado são sempre escassos para satisfazer plenamente todos os direitos de todos, é necessário escolher qual parte desses recursos que se destina a cobrir as despesas decorrentes da satisfação dos direitos, liberdades e garantias e a qual parte que vai cobrir as despesas para tornar efectivos os direitos econômicos, sociais e culturais. E esta é uma escolha política [...].

Portanto, não cabe ao Poder Judiciário o exercício das “escolhas políticas” no que tange a elaboração e implementação das políticas de saúde para a sociedade, visto que, além de não apresentar competência formal para a mesma, também não dispõe de competência técnica para esta atividade.

A esse respeito, a doutrina de Masseli Gouvêa (2003, apud BARROSO, 2007, p. 27) é categórica:

O princípio da separação de poderes compreende, portanto, uma vertente político-funcionalista que não se pode desprezar, sob pena de restringir-se a soberania popular. Afora esta componente, a separação de poderes traduz-se numa consideração técnico-operacional. O Legislativo e principalmente o Executivo acham-se aparelhados de órgãos técnicos capazes de assessorá-los na solução de problemas mais complexos, em especial daqueles campos que geram implicações macropolíticas, afetando diversos campos de atuação do poder público. O Poder judiciário, por sua vez, não dispõe de iguais subsídios; a análise que faz do caso concreto tende a perder de vista possíveis implicações fáticas e políticas da sentença, razão pela qual os problemas de maior complexidade – incluindo a implementação de direitos prestacionais – devem ser reservados ao administrador público[...].

O trecho acima também elucida outra questão: a soberania popular. O fato, portanto, é que estas “escolhas políticas” partem da premissa do sufrágio universal, uma vez que é a sociedade quem confere o poder para o Executivo elaborar e executar as políticas públicas de saúde, não cabendo ao Judiciário usurpar esta prerrogativa.

Caberá ao Judiciário apenas zelar para o cumprimento das políticas já existentes, ou seja, se determinado bem ou serviço de saúde já são contemplados pelas políticas do SUS e, por algum motivo, o ente público não os efetiva de forma universal, igualitária e integral, a via judicial torna-se adequada neste caso.

No entanto, como já discutido anteriormente, a práxis judicial não é esta. Nos dados do Governo do Estado do Espírito Santo (vide tópico 4.2, p. 42), a maioria dos medicamentos pleiteados e concedidos via judiciário não constavam na listagem padronizada pelo poder público. E esta problemática não é somente privilégio deste estado.

A ingerência do Judiciário na Administração Pública também provoca o desperdício dos já escassos recursos orçamentários, uma vez que verbas são destinadas a financiar tratamentos e medicamentos cuja efetividade sequer tenha sido comprovada pelos órgãos competentes, ou que, para os mesmos casos, já existam outros tratamentos e intervenções comprovadas, porém de menor custo.

Analisa-se também o fato de que os recursos a serem utilizados por conta desta ingerência são, em sua grande maioria, objetos de dispensa de licitação, o que eleva o custo deste processo.

Como é sabido, a administração pública deve atuar de acordo com os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, sendo que, no caso das dispensas de licitação, os princípios da legalidade e da eficiência não são observados.

Além disso, de acordo com Marin (2010, p. 60),

A utilização das escassas verbas existentes no atendimento de pedidos especiais coloca em risco a saúde de toda comunidade, resultando em dano ao programa global de assistência do Sistema, podendo gerar resultados catastróficos à população carente, porquanto esta também tem necessidade de medicamentos e assistência em geral, que serão diminuídos com a destinação de recursos a situações particularizadas.

Desta forma, o princípio da separação dos poderes não pode ser desrespeitado pela atuação do Poder Judiciário, sob pena de que, os resultados por este pretendido sejam opostos daqueles que a macro justiça necessite.

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Sobre os autores
Wagner José Elias Carmo

Advogado, Pós-Graduado stricto sensu em Mestrado Profissional em Tecnologia Ambiental, Pós-Graduado em Direito de Estado, Professor da Faculdades Integradas de Aracruz.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARMO, Wagner José Elias ; MONTOVANI, Samuel Torezani. A judicialização do direito à saúde . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3985, 30 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29028. Acesso em: 6 out. 2024.

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