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“Barbeiragens” nos crimes de trânsito entram em vigor

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O legislador brasileiro desperdiçou excelente oportunidade para solucionar a famigerada e antiga deficiência de reprimenda penal satisfatória para os crimes de trânsito com vítimas fatais ou feridas cometidos por motoristas embriagados.

No dia 1º de novembro de 2014, entraram em vigor, após meses de vacatio legis, as criticadas alterações nos crimes de trânsito promovidas pela Lei Federal nº 12.971, de 09 maio de 2014.

A Lei nº 12.971 inaugura mais um episódio nas sucessivas e capengas reformas ocorridas nos últimos anos no Código de Trânsito Brasileiro – CTB (Lei Federal nº 9.503/1997).

Não obstante as modificações implementadas também no âmbito de algumas infrações administrativas (“multas de trânsito”), as quais tiveram elevados os valores das sanções pecuniárias e maior divulgação midiática, as modificações impostas às infrações penais de homicídio e “racha” na direção de veículos automotores representam verdadeiras “barbeiragens” legislativas.

No tocante aos acidentes com vítimas fatais, a nova lei criou uma “pseudoqualificadora”, inserida no § 2º do art. 302 do CTB, com a pretensa intenção de impor maior rigor ao homicídio culposo praticado por motorista embriagado (com capacidade psicomotora alterada) por álcool ou outra substância psicoativa, ou nos casos em que o agente participa de “racha”.

Ocorre que o preceito secundário ora acrescentado para essa circunstância qualificadora apresenta uma diferença irrisória meramente quanto à espécie da pena privativa de liberdade, cominando “reclusão” ao invés de “detenção”, como previsto para o tipo penal simples do caput do art. 302, mantendo, entretanto, a mesma quantidade da pena (de 2 a 4 anos). Trata-se, na verdade, de um infeliz arremedo de qualificadora.

Na prática, a “nova” sanção poderá no máximo influir no regime de pena a ser cumprido (Código Penal, art. 33), isso em raros casos nos quais não houver substituição por penas restritivas de direito (Código Penal, art. 44) ou ainda suspensão da pena (Código Penal, art. 77).

Uma vez mais o legislador brasileiro desperdiçou excelente oportunidade para solucionar a famigerada e antiga deficiência de reprimenda penal satisfatória para os crimes de trânsito com vítimas fatais ou feridas cometidos por motoristas embriagados. Com isso, infelizmente devem perdurar a discussão e a descabida pressão por distorções para interpretações jurídicas mais duras envolvendo a configuração de culpa (regra) ou dolo eventual (exceção), distanciando-se ainda mais do adequado e técnico tratamento legal há muito esperado e proposto pela melhor doutrina.

Com efeito, a cada acidente de trânsito grave com repercussão, parcela sensacionalista da mídia, sempre atenta aos índices de audiência, porém desprovida de conhecimento técnico-jurídico mais aprofundado e tampouco de compromisso com a atuação estatal legalista, ainda insiste (e continuará a insistir) em banalizar o instituto do dolo eventual, incorretamente pretendendo imputá-lo como se regra fosse. Ora, se é certo que a pena para o homicídio culposo nesses casos é insuficiente, mais certo ainda é a necessidade de aplicação escorreita da legislação num Estado Democrático de Direito, despida de paixões e pautada pelo respeito às garantias e direitos fundamentais de todos, indistintamente.

Vale lembrar que, para a configuração de uma conduta a título de dolo eventual, exige-se que as circunstâncias do caso concreto denotem que houve representação e aceitação do resultado pelo motorista infrator e, sobretudo, que ele demonstrou indiferença às eventuais consequências de seu ato, com total desapreço ao bem jurídico tutelado. A regra, repise-se, é a modalidade culposa, na forma de culpa consciente, na qual o sujeito vislumbra a possibilidade do resultado danoso, porém acredita ter condições de evitá-lo.

Poderia (e deveria) o Poder Legislativo ter inserido qualificadoras para os crimes de homicídio e de lesão corporal culposos na direção de veículos automotores nas hipóteses de estado de embriaguez do agente ou de sua participação em “racha”, cominando para tais circunstâncias patamares de pena efetivamente mais severos, e não um despiciendo recrudescimento da espécie de pena privativa de liberdade de “detenção” para “reclusão”, com idêntico quantum de pena do tipo comum.

Lastima-se também que o “estrago” legislativo não tenha se limitado à ausência de uma necessária sanção penal mais rigorosa para motoristas bêbados e altamente inconsequentes. Isso porque, ao concentrar como qualificadora a circunstância do motorista encontrar-se embriagado, o novo texto retira a autonomia do delito de “embriaguez ao volante” em relação ao homicídio culposo, entendimento até então majoritário, que viabilizava o concurso entre os dois crimes e propiciava o aumento da reprimenda estatal, tanto pela somatória das penas (para aqueles que consideravam se tratar de concurso material), quanto pelo sistema da exasperação (para os filiados à tese do concurso formal).

Assim, a sanção penal aplicável ao motorista embriagado homicida torna-se mais branda, de reclusão de 2 a 4 anos, da nova figura “pseudoqualificada”, restando o delito de embriaguez ao volante por ela absorvido.

Ademais, como a pena máxima em abstrato não suplanta 4 anos, facultará, como regra, o arbitramento de fiança nos casos de prisão em flagrante delito (CPP, art. 322), o que até então podia ser afastado pelo Delegado de Polícia quando de sua deliberação jurídica pelo concurso de crimes em sede de segregação provisória extrajudicial.

De igual sorte, o concurso entre a lesão corporal culposa e a embriaguez ao volante torna-se também outra celeuma, pela ausência de qualificadora ao motorista embriagado nessa hipótese, o que permite, em tese, o concurso entre os delitos. Contudo, a pena máxima para esse concurso, seja material (5 anos) ou formal (4 anos e meio), resulta numa incoerente sanção maior do que aquela prevista para o homicídio cometido por motorista embriagado (agora de 4 anos). Em síntese, pela literalidade da estapafúrdia novel redação dos crimes de trânsito, ao motorista bêbado delinquente é menos grave matar do que machucar uma vítima. A triste saída provavelmente será a absorção da embriaguez pela lesão corporal culposa, com a única diferença que passa a ser de ação penal incondicionada (CTB, art. 291, § 1º, I).

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Já para a figura penal do “racha”, percebe-se que o tipo comum, do caput do art. 308 do CTB, deixou de ser infração de menor potencial ofensivo, porquanto a pena máxima cominada, antes de 2 anos, foi aumentada para 3 anos (Lei nº 9.099/95, art. 61).

O delito do art. 308, caput, torna-se o terceiro, dos onze crimes do CTB, a cominar pena máxima que admite de início a prisão em flagrante delito (e não elaboração de termo circunstanciado), juntamente com o homicídio culposo e a embriaguez na direção de veículo automotor, sendo cabível também o arbitramento de fiança criminal na fase extrajudicial (CPP, art. 322). Consigna-se, todavia, que, como a pena mínima cominada em abstrato é inferior a um ano, o agente poderá ser beneficiado com a suspensão condicional do processo (Lei nº 9.099/95, art. 89).

O problema reside nas figuras qualificadas do “racha”. Enquanto o novo § 1º do art. 308 considera o resultado lesão corporal grave culposa como circunstância que qualifica o delito, impondo sanção penal de 3 a 6 anos de reclusão, o § 2º traz como qualificadora a morte produzida a titulo de culpa (não quis o resultado – dolo direto; nem assumiu o risco de produzi-lo – dolo eventual), apenada de 5 a 10 anos de reclusão.

No entanto, a conduta típica de causar a morte culposamente quando da participação em corrida, disputa ou competição automobilística sem autorização pela autoridade competente se subsume de igual modo ao tipo penal da nova figura qualificada do § 2º do art. 302, o qual, porém, comina pena muito inferior, de 2 a 4 anos de reclusão, como já apontado. Trata-se de inaceitável falha na técnica legislativa. O delito de perigo (“racha”), por óbvio, deve ser absorvido pelos mais graves, de dano (homicídio e lesão corporal).

Com isso, sob um prisma jurídico, a solução apropriada será aquela mais favorável ao investigado ou réu, ou seja, o enquadramento na figura qualificada do homicídio culposo do § 2º, do art. 302, tornando na prática letra morta o § 2º do art. 308 com idêntica hipótese fática.

Importa assinalarr que a discrepância entre a pena cominada ao “racha” qualificado pela lesão do § 1º do art. 308 (de 3 a 6 anos) com a pena a ser aplicada ao mesmo delito quando houver resultado morte (de 2 a 4 anos do art. 302, § 2º), também ensejará a inaplicabilidade dessa figura qualificada do “racha”. Por coerência e ausência de outro tipo penal (ou qualificadora) adequado, o agente acabará respondendo pelo crime de lesão corporal culposa do art. 303, do CTB, com a suave pena de 6 meses a 2 anos.

O mais inacreditável de tudo isso é que o citado erro grosseiro quanto às qualificadoras do “racha” já havia sido indicado durante a tramitação do Projeto de Lei que originou a Lei nº 12.971/14 (Projeto nº 2592/07), em relatório da Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania, com trecho abaixo transcrito:

“Todavia vislumbramos que no Projeto original encontra-se uma incongruência de natureza redacional. Ora a parte final do § 2º do art. 302 e o disposto no art. 308, ambos alterados pelo Projeto de Lei nº 2.592-A/07, aprovado na Câmara dos Deputados em 24/4/2013, existe duplicidade de condutas típicas, pois, em acatando emenda de Plenário, esqueceu o Relator de verificar que o fato já estava tipificado em outro dispositivo”.

É impressionante que uma aberração jurídica dessa natureza tenha sido aprovada pelo Poder Legislativo e sancionada pelo Poder Executivo e ainda que tenha permanecido sem correções durante todo o período de vacatio legis, talvez porque a mobilização política esteve concentrada nas eleições. Espera-se que o Congresso Nacional, parcialmente renovado, seja dotado de melhor qualidade técnica e vontade legislativa, para retificar tais “barbeiragens” e providenciar o mínimo das urgentes reformas e ajustes que o ordenamento precisa.


NOTA

[1] Ensaio elaborado com base no artigo “Lei Federal nº 12.971/2014: mudanças e “barbeiragens” legislativas nos crimes de trânsito”, disponível em <http://jus.com.br/artigos/28611>.

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Sobre os autores
Rafael Francisco Marcondes de Moraes

Mestre e Doutorando em Direito Processual Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Graduado pela Faculdade de Direito de Sorocaba. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo. Professor concursado da Academia de Polícia de São Paulo (Acadepol). Autor de livros pela editora JusPodivm: www.editorajuspodivm.com.br/autores/detalhe/1018

Francisco Sannini

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. Professor Concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. Professor da Pós-Graduação em Segurança Pública do Curso Supremo. Professor do Damásio Educacional. Professor do QConcursos. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Rafael Francisco Marcondes ; SANNINI NETO, Francisco Sannini. “Barbeiragens” nos crimes de trânsito entram em vigor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4238, 7 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33392. Acesso em: 4 nov. 2024.

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