Desde o julgamento da Arguição de Preceito Fundamental nº 186 pela Suprema Corte brasileira, não mais se discute a constitucionalidade do sistema de cotas em universidades públicas[1]. Nessa linha de primazia à igualdade material, leis de âmbito federal (Lei 12.990/14) e estadual (como no Rio Grande do Sul com a Lei nº 14.147/12) positivaram, no ordenamento jurídico brasileiro, o sistema de cotas para as vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos. A própria CRFB/88, em seu artigo 37, inciso VII, prescreve que a lei reservará percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os seus critérios, revestindo-se de uma norma constitucional de eficácia limitada já que delega ao legislador a adoção dos critérios para a instituição das cotas nos concursos públicos.
Apesar da omissão constitucional, ampla corrente dos operadores jurídicos defende as cotas raciais nos concursos públicos, como se observa pelo atual posicionamento do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ao ajuizar a Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 41, pugnando pela declaração da constitucionalidade da Lei nº 12.990/14, utilizando, como um de seus argumentos, o fato de a população negra/parda “não representar 30% dos servidores públicos”[2]. Com o posicionamento do STF a respeito das cotas nas universidades públicas, presume-se ser questão de tempo o “referendo constitucional” das cotas nos concursos públicos.
Não se discute, aqui, a constitucionalidade da extensão das cotas em concurso público à determinada população racial (étnica), mas, sim, o fato de um candidato cotista, seja em razão de sua origem étnico-racial ou portador de deficiência, usufruir de sua condição para entrar em efetivo exercício em outro cargo/emprego público, já sendo servidor/empregado público.
Nesses termos, urge definir qual o telos da ação afirmativa que estabelece cotas para as pessoas portadoras de deficiência ou para pessoas pertencentes à determinada raça/etnia. Independentemente de seu argumento jurídico justificador (reparação de danos pretéritos, corrigir desigualdades na inserção no mercado de trabalho, quebra da política de exclusão,...), ao institucionalizar o sistema de cotas para os certames públicos, primando por uma igualdade substancial a pessoas que estejam em desvantagem para disputar as concorridas vagas na esfera pública e que, inegavelmente, sofrem preconceitos para a inserção no mercado de trabalho, objetiva-se, em sua finalidade última e basilar, o ingresso do candidato cotista no cargo/emprego público.
Nessa linha, estando o cotista nomeado e em exercício no seu cargo/emprego público, a finalidade da lei ou do ato administrativo foi alcançada(o), afastando o mérito democrático baseado na igualdade formal, para promover uma sociedade pluralista livre de preconceitos em razão da condição étnica, racial ou física da pessoa.
Contudo, é inegável a ilação de que o candidato já servidor/empregado público, ao se candidatar a outro cargo/emprego público pelo sistema de cotas, se nomeado, empossado e em efetivo exercício, a finalidade da lei – da ação afirmativa em sua essência - fora desvirtuada, eis que o candidato cotista já estava inserido no setor público, não mais se encontrando em situação de vulnerabilidade que justifique a intervenção do Direito. Aliado a isso, este servidor cotista alijará outro candidato cotista a ingressar no cargo/emprego público, criando um verdadeiro sistema autofágico: ao invés de beneficiar o candidato cotista com dificuldade na inserção no mercado de trabalho, permite-se que um servidor/empregado público, já oriundo, ou não, do sistema de cotas, assuma diversos cargos/empregos públicos, prejudicando o acesso a outros candidatos de origem universal e, inclusive, os demais candidatos cotistas.
Esse paradoxo criado pelos critérios do atual sistema de cotas em concurso público é de fácil correção: no momento de inscrição do candidato cotista no certame, o mesmo deve declarar se já foi nomeado e entrou em exercício em outro cargo/emprego público.
[1] A ADPF nº 186 versa sobre a política de instituição de cotas raciais pela Universidade de Brasília (UnB). Na ocasião, o STF, por unanimidade, considerou as cotas raciais na UnB como constitucionais, julgando improcedente a ação ajuizada pelo Partido dos Democratas (DEM), fixando, pois, o precedente de constitucionalidade das cotas raciais em universidades públicas.
[2] http://www.oab.org.br/noticia/28639/cotas-raciais-no-servico-publico-sao-constitucionais-defende-oab