Saúde suplementar: judicialização x equilíbrio contratutal

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O direito à saúde, consagrado na Constituição, faculta ao particular prestar serviços de assistência à saúde. Os litígios envolvendo contratos de planos de saúde tem crescido e há decisões judiciais que extrapolam as coberturas contratuais.

               INTRODUÇÃO

O direito à saúde, elevado à tutela constitucional, figura como direito fundamental. Trata-se de direito de interesse coletivo por estar relacionado diretamente à vida, à dignidade da pessoa humana.

A saúde pública e a saúde privada coexistem no sistema jurídico brasileiro. Enquanto o Estado deve garantir o acesso integral e universal aos serviços de saúde, ao particular é permitido explorar a prestação de serviços de assistência à saúde, de forma suplementar.

Por se tratar de atividade tipicamente econômica, o mercado de saúde suplementar exige regulamentação, fiscalização e controle para que seja viável e sustentável para todos os agentes envolvidos. O fenômeno da judicialização tem causado impacto nesse segmento devido às sucessivas decisões judiciais que concedem benefícios além das coberturas contratuais.

O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL

A Constituição Federal de 1988 foi a primeira a tratar expressamente dos objetivos dos Estado brasileiro e definiu a dignidade humana como fundamento da República, tornando o direito à vida como fundamental ao cidadão e, por consequência, o direito à saúde, na medida em que esta é condição essencial àquela.

O direito à saúde está no rol dos direitos sociais e a seguridade social, que compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destina-se a assegurá-lo. Constitucionalmente, pois, a saúde é direito de todos e dever do Estado, a ser garantido mediante políticas sociais e econômicas. Com vistas a implementar essas medidas, a Constituição prevê tanto o Sistema Único de Saúde (SUS), de caráter governamental, quanto o sistema de saúde suplementar, facultado à iniciativa privada.

A implantação do SUS ocorreu de forma gradual e, em 1990, promulgou-se a Lei Orgânica da Saúde, que fundou o SUS. No campo infraconstitucional, a norma do artigo 198 da Constituição, que trata das ações e serviços públicos de saúde, foi regulamentada pela Lei 8.080/90, que dispõe sobre o acesso aos serviços de saúde. O SUS é um projeto social único, que garante acesso integral, universal e gratuito para toda a população do país.

A Constituição, ao mesmo tempo em que disciplinou a saúde pública, facultou a assistência à saúde à iniciativa privada. Logo, a atual configuração da ordem social constitucional permite que coexistam, de forma independente, uma rede pública e uma rede privada de assistência à saúde.

A prestação suplementar de serviços à saúde constitui atividade tipicamente econômica, regida pelas normas de direito privado. No início da década de 80, já havia em torno de 15 milhões de clientes de planos de saúde, o que denota a relevância do segmento no sistema de saúde do Brasil desde aquela época. A expansão do mercado de assistência suplementar foi impulsionada nas décadas seguintes e emergiu a necessidade de regulamentar o setor. Todavia, somente em 1998, com a promulgação da Lei 9.656, a saúde suplementar foi regulamentada infraconstitucionalmente e, hoje, o mercado suplementar atende cerca de 50 milhões de vidas.

REGULAÇÃO DO SETOR DE SAÚDE SUPLEMENTAR

Embora já existissem, desde as décadas de 40/50, algumas organizações voltadas para a prestação de assistência à saúde, como a Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil (Cassi), foi nas décadas de 80/90 que se intensificou a comercialização de planos e seguros de assistência à saúde.

A exploração dos serviços de assistência suplementar, atividade privada típica de mercado, é um setor de relevante interesse para a coletividade. Por isso, a edição da Lei 9.656, que regulamentou esse nicho, foi um marco regulatório de grande importância.     A regulamentação objetivou, principalmente, corrigir as distorções quanto à seleção de riscos, então praticada pelas operadoras, e preservar a competitividade do mercado. Considerou necessário, entre outros aspectos: a ampliação de cobertura; o ressarcimento ao SUS; o registro das operadoras; o acompanhamento de preços pelo Estado; a obrigatoriedade da comprovação de solvência; o envio obrigatório de informações técnicas e financeiras e a proibição do monopólio de atividades por uma única empresa.

A Lei 9.656/98 disciplina tanto a relação jurídica de direito privado entre o beneficiário e a operadora de planos de saúde, quanto a relação jurídica de direito público entre estas e o Estado. Ademais, alcança todas as entidades que possuam planos de assistência à saúde com contraprestação pecuniária, independentemente de sua natureza jurídica.

Nessa seara, plano privado de assistência à saúde é definido como a prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando a assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor. A cobertura assistencial, por sua vez, é o conjunto de procedimentos a que o consumidor tem direito ao contratar o plano.

  Com a edição da lei, diversos mecanismos de regulação foram introduzidos: autorizações prévias, franquia e coparticipação, por exemplo. Além disso, referida lei previu exceções, como a não cobertura de tratamentos experimentais; de procedimentos com fins estéticos; de inseminação artificial e de fornecimento de medicamentos importados não nacionalizados.  

    A crescente necessidade de especialização do setor de saúde suplementar e de harmonizar a relação econômica entre operadoras e consumidores, além da insuficiência dos mecanismos de autorregulação, fomentaram a criação de uma agência estatal independente e autônoma, responsável pela regulação setorial do mercado de saúde suplementar.         A Agência Nacional de Saúde (ANS) foi criada em janeiro de 2000 (Lei 9.961), como autarquia sob o regime especial, vinculada ao Ministério da Saúde, para atuar na regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades de assistência suplementar à saúde.

     Ao contrário dos órgãos de Defesa do Consumidor, cuja atuação concentra-se nos direitos individuais, a ANS intervém nos mercados formados por consumidores e empresas e deve orientar a regulação para se obter um equilíbrio vantajoso para a sociedade. Referida Agência tem competência de polícia normativa, decisória e sancionadora. Os regimes de direção técnica e fiscal e a liquidação extrajudicial são exemplos de procedimentos que a ANS pode adotar sempre verificar irregularidade que comprometa o atendimento à saúde contratado. Outro exemplo é o processo sancionador em que, constatada infringência a dispositivo legal ou regulamentar, a ANS aplica multa à operadora.

      JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE SUPLEMENTAR X EQUILÍBRIO CONTRATUAL

      O contrato é, por natureza, um fenômeno econômico, materializado por meio de um instrumento jurídico no qual a manifestação da vontade (consenso) importa, assim como os efeitos dessa avença perante a sociedade. Primando pelo equilíbrio contratual, a lei passou a exercer papel de limitadora da autonomia da vontade para proteger interesses sociais. Na concepção atual de contrato, além da vontade, o princípio da função social do contrato tem grande relevância e determina que os interesses individuais das partes sejam exercidos em conformidade com os interesses sociais, sempre que estes se apresentem. Os contratos ainda devem observar os princípios norteadores das relações contratuais, quais sejam: Liberdade Contratual, Obrigatoriedade do Pactuado (Pacta Sunt Servanda), Autonomia da Vontade e Boa-Fé.

      A Lei 9.656/98 definiu diferentes tipos de planos de assistência à saúde, seja quanto à forma de contratação, à data de assinatura do contrato, ao tipo de cobertura assistencial e à abrangência geográfica. Os contratos de planos de saúde são aqueles em que o consumidor, diretamente ou por intermédio da empresa ou associação da qual faz parte, contrata uma operadora para, mediante prestação pecuniária, disponibilizar serviços de assistência à saúde. A essência desses contratos é a cobertura contratual financeira das despesas associadas a doenças e acidentes pessoais que afetem a saúde do usuário e que são imprevisíveis.

       As operadoras de planos de assistência à saúde oferecem diversos tipos de planos, com variadas coberturas e mensalidades. Cabe ao beneficiário analisar as possibilidades e contratar o que melhor lhe convier. Ao contratar um plano com restrição de cobertura assistencial, o beneficiário assume os riscos de eventual necessidade pela cobertura restrita, não tendo a operadora obrigação de suportar tais despesas, senão, haverá violação contratual, o que fere os princípios contratuais mencionados.

       Especialmente nos contratos de planos de saúde, o consumidor não pode ser visto como um sujeito que tudo pode, nem as operadoras que tudo devem garantir. Aquele que requer cumprimento de obrigação não existente no contrato está contrariando o que preceitua a função social do contrato pois, conforme ditame legal, também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

       Entretanto, tem-se verificado decisões judiciais que condenam as operadoras, mesmo inexistindo previsão contratual ou legal, à obrigação de suportar despesas ou de ressarcir o beneficiário quanto às despesas eventualmente tidas com assistência médica. Tal situação reflete o fenômeno de deslocamento de decisões políticas e sociais dos Poderes Legislativo e Executivo para o poder Judiciário, denominado judicialização da saúde.

       Nos litígios envolvendo os contratos de planos de saúde, nota-se que os juízes tendem a decidir com fundamento no direito constitucional à saúde, à vida, à dignidade da pessoa humana, entre outros princípios. Situação específica desses contratos são os pedidos de tutela antecipada em que, muitas vezes, há prescrição médica sobre qual tratamento ou procedimento adequado à manutenção da saúde e da vida do beneficiário. O pedido de tutela antecipada nesses casos tornou-se verdadeira indústria de liminares e judicializou a saúde. Os magistrados, sensibilizados pelo pedido e pelo caráter inconteste de urgência com que este é apresentado, acompanhado por laudos médicos, deferem a tutela antecipada; quiçá para não assumirem o risco de negar a realização de um procedimento capaz de salvar uma vida, ainda que o contrato não possua tal cobertura.  

       No entanto, essas decisões ignoram as peculiaridades do contrato sub judice e podem comprometer o equilíbrio contratual das operadoras além de, indiretamente, provocar a elevação dos preços dos serviços, que afeta toda a classe de consumidores. É mister cumprir o que dispõe a lei e o contrato, mesmo que na análise do caso concreto o juiz identifique que o requerente, sob a ótica médica, necessite do tratamento solicitado e negado pela operadora de planos de saúde. Impor à operadora obrigação além das existentes no contrato contraria o avençado e afeta seu equilíbrio econômico-financeiro, o que pode causar prejuízo a centenas de outros beneficiários. A harmonia das cláusulas contratuais deve ser observada de maneira a preservar o equilíbrio contratual e, mais que isso, para manter a higidez do sistema de saúde suplementar, que é de interesse coletivo. Como bem leciona Maria Sylvia Zanela de Pietro:                       

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[...] O grande risco da concessão judicial indiscriminada na área dos direitos sociais é que o summum jus (concessão de um direito individual mal investigado) se transforme em summa injuria (interesse coletivo desprotegido). Isto sem falar que o juiz se substitui ao Legislativo e ao Executivo na implementação de políticas públicas, concentrando em suas mãos uma parcela de cada um dos três Poderes do Estado, com sérios riscos para o Estado de Direito e para a segurança jurídica. (2015, p.4). 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a regulamentação do setor de saúde suplementar e a criação da ANS, houve uma homogeneização do sistema, além da ampliação da cobertura assistencial dos contratos de planos de saúde e de outros benefícios aos consumidores, como a proibição da limitação do número de consultas, de cobertura para exames e de prazo para internações, mesmo em leitos de alta tecnologia. A legislação trouxe também como benefício o princípio da não discriminação dos consumidores, em função da essencialidade do serviço, em consonância ao princípio da dignidade da pessoa humana. 

Desde a vigência da Lei nº 9.656/98, o setor de saúde suplementar vive uma enorme transformação e, hoje, a judicialização é um dos grandes desafios para esse mercado. O ponto de equilíbrio entre direitos individuais abrangentes e estratégias de empresas, capaz de assegurar a existência de um mercado competitivo e diversificado, formado por empresas sólidas e consumidores esclarecidos, ainda está por ser alcançado.

Uma regulamentação mais incisiva que considere todos os agentes do setor, promovida pela ANS; uma legislação mais robusta, a exemplo do segmento fechado de previdência complementar; consumidores mais conscientes de seus direitos e dos princípios norteadores desse sistema; e decisões judiciais que atenham-se às normas contratuais e regulamentares, são fatores que podem contribuir para o equilíbrio desse segmento no longo prazo. Caso contrário, o desequilíbrio econômico pode afetar de tal forma as operadoras que a prestação do serviço será inviabilizada ou os custos, consideravelmente elevados, não serão suportados pelos consumidores. Evidente, pois, a necessidade de debate entre os variados agentes que integram o setor: beneficiários, operadoras, ambiente regulatório e prestadores de serviços.

REFERÊNCIAS

DI PIETRO, M. S. Z.  Judicialização de políticas públicas pode opor interesses individuais e coletivos. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-mai-28/interesse-publico-judicializacao-politicas-publicas-opoe-interesses-individuais-coletivos#top. Acesso em 11/07/2016.

FIGUEIREDO, L. V. Curso de Direito de Saúde Suplementar - Manual Jurídico de Planos e Seguros de Saúde. São Paulo: MP Ed., 2006.

PETTER, L. J. Princípios constitucionais da ordem econômica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

VARELLA, D.; CESCHIN, M. A Saúde dos Planos de Saúde. São Paulo: Paralela, 2014.

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Sobre a autora
Jaqueline Resende Candido Mello

especialista em Direito Processual Civil e pós-graduanda em Direito Previdenciário. Assessora no Banco do Brasil.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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