Capa da publicação Nomeações de Lula e Moreira Franco como Ministros e a discricionariedade do STF
Capa: Roberto Stuckert Filho
Artigo Destaque dos editores

Investidura de Lula e Moreira Franco aos cargos de Ministros de Estado.

A influência das convicções pessoais dos julgadores nas decisões do STF

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O trabalho expõe, através de uma revisão bibliográfica e jurisprudencial, como a discricionariedade do judiciário brasileiro influenciou diretamente nos julgamentos dos mandados de segurança 34070 e 34609 no STF.

Resumo: O trabalho expõe, através de uma revisão bibliográfica e jurisprudencial, como a discricionariedade do judiciário brasileiro influenciou diretamente nos julgamentos dos mandados de segurança 34070 e 34609, responsáveis pela impugnação da nomeação do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva e pela ratificação da nomeação de Moreira Franco para os cargos de ministro de Estado. A análise suscitada recorreu à linha teórica desenvolvida por Hans Kelsen (1998) que analisa o caráter interpretativo do judiciário e partiu de uma visão crítica realizada por Lênio Streck (2013) na obra O que é isto- decido conforme minha consciência?. Nesse sentido, pretende-se demonstrar como evitar que a arbitrariedade provocada por convicções pessoais dos julgadores, como nos casos dos MS 34070 e 34609, resulte em um meio de insegurança jurídica prejudicial ao sistema jurídico brasileiro?      

Palavras-chave: Discricionariedade; Insegurança Jurídica; Arbitrariedade.


1 INTRODUÇÃO

A Suprema Corte brasileira vem protagonizando decisões polêmicas como nos casos dos ex-deputados Ronaldo Cunha Lima e Natan Donadon, nas Ações Penais 333 e 396, respectivamente. Em 2007, Ronaldo Cunha Lima renunciou ao seu cargo após tentar matar o ex-governador da Paraíba cinco dias antes do início do julgamento da Ação Penal no Supremo e este decidiu que caberia ao Tribunal do Júri de João Pessoa julgá-lo. Já em 2010, o STF entendeu que a renúncia de Donadon na véspera do julgamento não tirava a competência da Corte para processá-lo e o condenou a mais de 13 anos de prisão por peculato e outros crimes.

Destacam-se, também, as decisões dos MS 34070 e MS 34609 – foco do trabalho em questão - responsáveis, respectivamente, por impugnar a nomeação do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva e por ratificar a nomeação de Moreira Franco para os cargos de ministro de Estado. Esses casos partem de situações fáticas e jurídicas semelhantes, mas resultam em realidades opostas. No primeiro foi inconcebível a investidura de um cidadão sob suspeita ao cargo de Ministro Chefe da Casa Civil. No segundo, não se viu qualquer impedimento para o acesso a cargo público antes de sentença condenatória transitada em julgado.

Nesse contexto, com assuntos de grande repercussão e posicionamentos discrepantes, discute-se a disparidade de conclusões acerca de casos semelhantes política e juridicamente, em um breve espaço temporal. Observa-se grande vicissitude nas decisões prolatadas pela Suprema Corte brasileira, causando oscilação de posicionamentos. Presume-se, então, que estes posicionamentos recebem influências do âmago dos responsáveis pela decisão, que se veem amarrados a agruras de suas ideologias de consciência e revestem suas decisões de pessoalidade.

Dessa forma, requer-se uma análise das consequências de decisões discricionárias e arbitrárias, pois, ainda que revestidas de aparente legalidade repercutem negativamente no contexto de crise política e econômica do Brasil atual. Por isso a necessidade de entender os significados de tais decisões. Por discricionariedade entende-se, numa primeira análise, a liberdade do intérprete diante de determinadas situações, alijando seus interesses particulares, mas guiado pela satisfação dos direitos individuais e coletivos. Já a arbitrariedade relaciona-se com decisões firmadas na vontade particular e autoritária do julgador. Assim, é preciso maior atenção para que ambas não passem a parecer sinônimas, sob pena de multiplicar-se as incertezas e a instabilidade de garantias, prospectando um meio de insegurança jurídica.

É, pois, pertinente a seguinte indagação: como evitar que a arbitrariedade provocada por convicções pessoais dos julgadores, como nos casos dos MS 34070 e 34609, resulte em um meio de insegurança jurídica prejudicial ao sistema jurídico brasileiro?

Para compreender tal questionamento, é preciso entender a forma de escolha do cargo em questão. Conforme artigo 84 da Constituição Federal assevera, os Ministros de Estado serão escolhidos pelo presidente da República dentre brasileiros maiores de vinte e um anos e no exercício dos direitos políticos. É uma indicação de caráter fiduciária, de cunho político e, como todo ato administrativo, requer observância a sua finalidade e motivação.

A partir disso, alguns pontos são importantes para análise dos casos: a legitimidade da impetração de mandado de segurança por partidos políticos e a finalidade da nomeação para o cargo de Ministro de Estado.

Primeiramente, no caso Lula entendeu-se pela legitimidade de partidos políticos impetrarem mandado de segurança coletivo. Já no caso Moreira Franco, tal legitimidade não foi reconhecida. Depois, verificou-se no primeiro caso, segundo relator Ministro Gilmar Mendes, que os motivos apontados como suporte eram escusos, uma vez que a intenção era obstruir as investigações da Lava Jato e impedir uma possível prisão preventiva. Já no caso Moreira Franco, para o relator, Ministro Celso de Mello, o desvio de finalidade não se presume, devendo ser demonstrada intenção inequívoca de alcançar objetivos diversos da ordem pública.

Destarte, a partir de tais casos é possível demonstrar as incertezas jurídicas criadas por decisões do Supremo Tribunal Federal. Não há quaisquer garantias previsíveis a serem reforçadas e protegidas, gerando um sistema jurídico suscetível a concepções particulares do julgador, tornando-o vulnerável quanto ao respeito das garantias processuais. Nessa perspectiva, recordamos Hans Kelsen, segundo o qual “interpretar para os tribunais é um problema de vontade, no qual o intérprete sempre possui um espaço que poderá preencher no momento da aplicação da norma – moldura da norma”(STRECK, 2013, p. 67). Dentro dessa moldura, haveria uma liberdade do aplicador, um espaço criativo seu. Já para Lenio Streck, no embate com o positivismo normativista, é inconcebível aceitar tal liberdade criadora dos juízes, pois é preciso previsibilidade e segurança nas decisões.

Para Kelsen, qualquer intérprete já se aproxima de uma norma a partir de uma pré-compreensão de seu contexto problemático, tratando sempre de sucessivamente reformular essa sua apreensão preliminar a fim de se decidir por um dado sentido. Ou seja, o aplicador carrega consigo forte carga de subjetividade, conceitos e ideias pré-formulados, conforme será possível inferir nos casos ora analisados. Streck reconhece a subjetividade do juiz, sua pré-compreensão de mundo, no entanto entende ser preciso que o jogo processual siga regras objetivas, que criem certa previsibilidade na decisão do juiz.

Disto isso, nesse trabalho demonstrar-se-á como a carga subjetiva do aplicador nos casos em questão reflete a necessidade de limitação do poder discricionário do intérprete, com base na teoria pura do Direito de Kelsen, quanto aos limites interpretativos e, também, com base na teoria da decisão de Lenio Streck, a qual rechaça a visão solipsista do juiz.


2 DESENVOLVIMENTO

2.1 Quadro comparativo

Objetivando-se maior clareza quanto a análise e a exposição dos argumentos utilizados pelos ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello realizou-se um quadro comparativo demonstrando as principais divergências do caso em questão. É preciso ressaltar que ambas foram decisões monocráticas dos ministros e que o trabalho é construído a partir de posições e argumentos antagônicos adotados por eles e provenientes das convicções particulares de cada um.

CONTEXTO DA NOMEAÇÃO

Lula

Em meio próximo de impeachment, Dilma Rousseff nomeou Lula como seu ministro da Casa Civil. O petista já era investigado pela força-tarefa da Operação Lava Jato, em Curitiba, sob suspeita de ter recebido vantagens indevidas de empreiteiras envolvidas no esquema de corrupção na Petrobras. O PSDB e o PPS ingressaram com mandado de segurança para suspender a nomeação alegando que ocorreu um “desvio de finalidade”.

Moreira

Moreira Franco era secretário-executivo do governo e foi elevado ao status de ministro três dias após o STF homologar as delações premiadas da Odebrecht. Homem forte do governo Temer, Moreira foi citado na delação do ex-diretor de Relações Institucionais Claudio Melo Filho como tendo pedido recursos para o PMDB em 2014. Em planilhas que detalham supostas contribuições ilegais para campanhas ele foi chamado de Angorá, mas nega as acusações. Ele não é oficialmente investigado. Rede e PSOL alegaram desvio de finalidade de Temer. A nomeação seria para garantir foro ao peemedebista.

RELAÇÃO INVESTIGADO X POSSÍVEL CONDENAÇÃO

Min. Gilmar Mendes

Avaliou que Lula estava na iminência ser implicado em Curitiba e que os áudios mostravam a intenção de mudar de foro judicial.

"Pairava cenário que indicava que, nos próximos desdobramentos, o ex-presidente poderia ser implicado em ulteriores investigações, preso preventivamente e processado criminalmente. A assunção de cargo de ministro de Estado seria uma forma concreta de obstar essas consequências. As conversas interceptadas com autorização da 13ª Vara Federal de Curitiba apontam no sentido de que foi esse o propósito da nomeação".

Min. Celso de Mello

Citou jurisprudência que diz que só condenados, e sem chance de recorrer de suas sentenças, devem ser impedidos de assumir cargo.

"A existência de qualquer vício no ato administrativa não passa de mera elucubração. Não há qualquer investigação em curso contra o ministro e, conforme a jurisprudência desse Supremo Tribunal, o impedimento do acesso a cargos públicos antes do trânsito em julgado de sentença condenatória viola o princípio da presunção de inocência"

MANDADO DE SEGURANÇA

Min. Gilmar Mendes

Reconheceu que já foi contra o uso de MS por legendas partidárias, mas recorreu a uma série de juristas para defender a mudança. Foram citados o ministro Teori Zavascki e José Afonso da Silva, além do livro de Alexandre de Moraes indicado ao Supremo.

“Eu mesmo registrei discordância quanto à possibilidade do partido político impetrar segurança em favor de ‘interesses outros que não os de seus eventuais filiados’. Percebo que a análise que fiz daquela feita foi excessivamente restritiva. Os partidos políticos têm finalidades institucionais bem diferentes das associações e sindicatos. Representam interesses da sociedade, não apenas dos seus membros. Representam até mesmo aqueles que não lhes destinam voto. A ideia de “representação” pelos partidos é da essência da própria definição legal incorporada ao direito brasileiro”.

Min. Celso de Mello

Evitou o debate direto com o Min. Gilmar Mendes, entretanto citou diversos precedentes do próprio tribunal na linha de que não cabe mandado de segurança por partido político.

“O plenário desta Suprema Corte (..) reconheceu que as instituições partidárias não dispõem de qualidade para agir, em juízo, na defesa de direitos difusos, pois, além de não existir autorização legal para tanto, o reconhecimento de tal prerrogativa em favor das agremiações partidárias, sem quaisquer restrições, culminaria por conferir a essas entidades a possibilidade de impugnarem qualquer ato emanado do Poder Público”.

DESVIO DE FINALIDADE

Min. Gilmar Mendes

Apontou ser possível analisar o desvio de finalidade, sendo que Dilma praticou ato em conformidade com a Constituição, mas ao fazê-lo produziu resultado concreto de todo incompatível com a ordem constitucional em vigor: conferir ao investigado foro no Supremo Tribunal Federal.

“O argumento do desvio de finalidade é perfeitamente aplicável para demonstrar a nulidade da nomeação de pessoa criminalmente implicada, quando prepondera a finalidade de conferir-lhe foro privilegiado”.

Min. Celso de Mello

Defendeu que a nomeação para ministro tem que preencher requisitos e que o impedimento do acesso a cargos públicos antes do trânsito em julgado de sentença condenatória viola o princípio da presunção de inocência. Para o ministro, não se pode presumir o desvio de finalidade. Tem que se provar. Ele citou ainda que não há investigações contra Moreira.

“A nomeação de alguém para o cargo de Ministro de Estado, desde que preenchidos os requisitos previstos no art. 87 da Constituição da República, não configura, por si só, hipótese de desvio de finalidade (que jamais se presume)”.

FORO PRIVILEGIADO

Min. Gilmar Mendes

Citou as diferenças entre os tempos de apuração do Supremo e da primeira instância.

“Não há aqui pedido de nomeação para o cargo, mas há uma clara indicação da crença de que seria conveniente retirar a acusação da 13ª Vara Federal de Curitiba – a ‘República de Curitiba’ –, transferindo o caso para uma ‘Suprema Corte acovardada’ (em referência a declaração de Lula em interceptações)”, escreveu o ministro.“Não se nega que as investigações e as medidas judiciais poderiam ser retomadas perante o STF. Mas a retomada, no entanto, não seria sem atraso e desassossego. O tempo de trâmite para o STF, análise pela PGR, seguida da análise pelo relator e, eventualmente, pela respectiva Turma, poderia ser fatal para a colheita de provas, além de adiar medidas cautelares. Logo, só por esses dados objetivos, seria possível concluir que a posse em cargo público, nas narradas circunstâncias, poderia configurar fraude à Constituição”, completou.

Min. Celso de Mello

Defendeu que o foro privilegiado não representa um benefício, uma vez que não impede as investigações.

“Cumpre insistir, portanto, em que a investidura de qualquer pessoa no cargo de Ministro de Estado não representa obstáculo algum a atos de persecução penal que contra ela venham eventualmente a ser promovidos perante o seu juiz natural, que, por efeito do que determina a própria Constituição”.

2.2  Legitimidade das agremiações partidárias

Pelo artigo art. 5º, LXX – o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por: a) partido político com representação no Congresso Nacional. Regulando tal dispositivo, o art. 21 da Lei nº 12.016/2009 entende que o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por partido político com representação no Congresso Nacional, na defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária.

Para o ministro Celso de Mello, no MS 34609, a lei impõe barreiras plausíveis em consonância com a Constituição para proposição de mandado de segurança, evitando, assim, “que o mandado de segurança seja instrumentalizado pelos partidos políticos, transformando-se em indesejável veículo de judicialização excessiva de questões governamentais e parlamentares” (MELLO, 2016).

Já o Ministro Gilmar Mendes adotou o entendimento de que os partidos possuem fins intrínsecos divergente das associações e sindicatos, pois não representam apenas interesses dos seus filiados, mas de toda a sociedade. Cita, pois, Teori Zavascki, quanto ao entendimento de que é preciso analisar a relação entre o interesse defendido e os fins programáticos do partido para aferir a pertinência da impetração de mandado de segurança por essas instituições.

O ministro Gilmar Mendes reconhece, ainda, sua mudança de visão:

Eu mesmo registrei discordância quanto à possibilidade do partido político impetrar segurança em favor de ‘interesses outros que não os de seus eventuais filiados’. Percebo que a análise que fiz daquela feita foi excessivamente restritiva. Os partidos políticos têm finalidades institucionais bem diferentes das associações e sindicatos. Representam interesses da sociedade, não apenas dos seus membros. Representam até mesmo aqueles que não lhes destinam voto. A ideia de “representação” pelos partidos é da essência da própria definição legal incorporada ao direito brasileiro.(MENDES, 2016).

Já o ministro Celso de Mello, insistiu em contrariar a própria jurisprudência do STF, ao afirmar que a ausência de restrições para impetração de mandado de segurança pelos partidos daria a eles poder de impugnar qualquer ato emanado do poder público.

Nota-se, então, duas interpretações distintas acerca de um dispositivo constitucional, visto que os ministros partiram de um ponto comum, qual seja, art. 21 da Lei nº 12.016/2009 que regulamenta o art. 5º, LXX da CF, e assimilaram juízos diferentes. Com isso, suscita-se o questionamento da semelhança da discricionariedade com arbitrariedade. Segundo Streck, ambas “são frutos de consensos artificiais, de conceitos sem coisas, somente possíveis a partir do deslocamento entre lei e realidade.” (STRECK, 2013, p. 68),

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2.3  Finalidade do ato

A Lei 4.717 de 1965 regula a ação popular e versa em seus artigos iniciais sobre a nulidade de atos administrativos considerados lesivos. Dessa forma, determina a possibilidade de se considerar nulo o ato administrativo praticado com desvio de finalidade, explicitando em seu artigo 2º, parágrafo único, alínea e que “o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência”.

Ainda, conforme a Carta Magna, art. 5º LXIX, é cabível mandado de segurança para proteger direito líquido e certo quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público. Com isso, infere-se que tal direito líquido e certo pode ser compreendido como aquele que não exige dilação probatória para ser comprovado, sendo induvidoso e podendo ser demonstrado através de prova pré-constituída. Assim, trata-se de direito perfeitamente determinado, podendo ser exercido prontamente, uma vez que é incontestável.

Na visão de muitos especialistas, como do advogado Pedro Estevam Serrano em entrevista à Carta Capital, no caso de Lula, acolheu-se um mandado de segurança que possuía fato controverso, pois se havia a intenção de o ex-presidente obstruir a Operação Lava Jato, isso deveria ser provado. Além disso, o desvio de finalidade é alegado pelo Ministro Gilmar Mendes (2016) ao ressaltar que “o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva teria sido empossado justamente para deslocar o foro para o STF e salvaguardar contra eventual ação penal sem a autorização parlamentar prevista”.

Após a exposição das gravações realizadas durante as investigações da Operação Lava Jato e a consideração das mesmas como provas válidas, o Ministro Gilmar Mendes concluiu afirmando estarem presentes os elementos objetivos do desvio de finalidade bem como a intenção de fraude do procedimento da posse do cargo a ser assumido por Lula. Conforme fundamentado pelo relator, constituiu-se em um ilícito atípico, pois apesar de ostentar uma legalidade aparente, destoa do seu escopo constitucional que lhe deu causa.

Assevera, ainda, serem irrelevantes os motivos subjetivos que impeliram à prática de tal ato. No entanto, a própria decisão preocupa-se em revelar esses motivos: a existência de investigações que ensejou medida de busca e apreensão contra Luiz Inácio Lula da Silva, bem como haver denúncia pendente de apreciação, com pedido de prisão preventiva. Ainda que nenhum inquérito tenha sido instaurado nem mesmo a investigação concluída, o relator deferiu liminar, entendendo que o deslocamento de competência gera obstrução ao progresso das medidas judiciais e reconheceu, portanto, que apesar de serem retomadas pela Corte Suprema, haveria prejuízo de tempo e qualidade das investigações.

Já no caso Moreira Franco, o Ministro Celso de Melo (2017) ressaltou a inexistência de provas documentais idôneas justificáveis e afirmou que a existência de qualquer vício no ato administrativa não passaria de mera elucubração, não havendo qualquer investigação em curso contra o ministro e, conforme a jurisprudência do Supremo Tribunal, o impedimento do acesso a cargos públicos antes do trânsito em julgado de sentença condenatória violaria o princípio da presunção de inocência.

Para o relator, a configuração de desvio de finalidade pressupõe intenção deliberada por parte do administrador público de atingir objetivo diverso da ordem pública, o que não se presume. Por isso, cabe a quem imputa ao administrador provar tais alegações, o que não se verificou pela agremiação partidária impetrante, segundo o relator. Para o mesmo, a prerrogativa de foro é consequência natural e necessária decorrente da investidura no cargo de Ministro Estado e tal condição não outorga imunidade a esse agente, pois perante o STF não se tem qualquer benesses de ordem pessoal ou tratamento prioritário e especial.

Discutir critérios jurídicos na atual conjuntura política do país tornou-se prática intrincada, em razão da alta complexidade de interesses que envolvem as decisões dos aplicadores. Ambas as decisões, de todo modo, expõe o casuísmo dos relatores e tal disparidade e desarmonia de decisões refletem a excessiva atomização do Tribunal, capaz de provocar na população sensação de arbitrariedade e, consequentemente, desgaste da imagem da Corte.

2.4  A insegurança jurídica como consequência da discricionariedade judicial

Nos entendimentos de Hans Kelsen (1998), as normas superiores estabelecem apenas uma espécie de moldura dentro da qual uma autoridade do Estado tem competência para tomar decisões. Daí resulta que todo o ato jurídico em que o Direito é aplicado, é em parte um ato de pura execução, determinado pelo Direito e em parte indeterminado e regido pela interpretação. No mais, para o autor, qualquer intérprete já se aproxima de uma norma a partir de uma pré-compreensão de seu contexto problemático, tratando sempre de sucessivamente reformular essa sua apreensão preliminar a fim de se decidir por um dado sentido. Ou seja, o aplicador tem ideias pré-formuladas, mas Kelsen não reconhece os reflexos da prática social no sistema de normas, pois a validade das regras parte do próprio Direito, daí sua Teoria Pura do Direito.

Se a norma apresenta inúmeras possibilidades de aplicação diante do julgador, existem, então, várias possibilidades de interpretação dentro de um espaço – moldura - que são conforme o Direito, ou seja, “o sentido verbal da norma não é unívoco, o órgão que tem de aplicar a norma encontra-se perante várias significações possíveis” (KELSEN, 1998, p. 249). Por isso, qualquer das intepretações escolhidas pelo aplicador seria válida, desde que adstrita a esse âmbito - “a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que - na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar - têm igual valor” (KELSEN, 1998, p. 247).

O juiz não seria, assim, meramente “boca da lei”, pois lhe caberia uma atividade criativa, desamarrado da expressão literal do texto, mas encadeado pela moldura da norma geral, representada pelo próprio texto. Apesar de Kelsen ter se preocupado com os limites interpretativos do julgador, ao lhe estabelecer uma moldura como fronteira, esta não destoa do subjetivismo do intérprete, pois é construída por ele mesmo e suas preconcepções. Nesse sentindo, assevera Fernando Vieira Luiz,

[...] nem mesmo a criação da moldura afasta o completo arbítrio do intérprete. Primeiro, porque é ele mesmo quem cria a o quadro, ou seja, remontando a própria filosofia da consciência, na subjetividade do próprio intérprete é que haverá distinção de qual das interpretações estarão dentro da moldura e quais permanecerão fora dela, demonstrando, claramente, como o método, dentro do conhecimento apresenta-se como momento máximo da subjetividade do intérprete. (LUIZ, 2013, p. 50).

É assim que a decisão judicial é entendida como ato de vontade do julgador, “ele decide por ato de vontade, porque não há um critério – ou mesmo um macrocritério – para distinguir, entre as possibilidades possíveis de interpretação, aquela que deve ser aplicada ao caso” (LUIZ, 2013, p. 49).

Nesse sentido, as decisões acima retratadas refletem as várias possibilidades existentes à disposição do intérprete, todas dentro do âmbito da moldura da norma, a qual seria a legalidade fundamentadora dos pareceres. Pela teoria de Kelsen, ambas as decisões estariam corretas e possíveis, pois não destoariam dos limites da norma.

Entretanto, a partir dessas inúmeras possibilidades, problemas na interpretação judicial da lei começam a adquirir novos contornos, especialmente em relação à discricionariedade judicial, pois ficaria a cargo do juiz decidir o que é o direito conforme sua consciência em cada caso concreto.

Para Lenio Streck, “é possível dizer, sim, que uma interpretação é correta e a outra é incorreta”. Uma interpretação seria correta, então, quando se torna objetivada de forma natural, desaparecendo questionamentos acerca dela. Será correta do ponto de vista hermenêutico para aquele caso e deverá estar justificada no plano de uma argumentação racional.

Dessa maneira, Lenio Streck reconhece a subjetividade do juiz, todavia, não pode dizer o quiser sobre o Direito. Propõe então a Teoria da Tomada de Decisão, pela qual “em vez de nos perdemos no universo particularista das vontades individuais e emoções do sujeito julgador, deve(ría)mos investir na prospecção e descrição fenomenológica do sentido publicamente compartilhado e que deve(ria) sustentar/legitimar as decisões judiciais” (STRECK, 2010). Assevera ainda,

Ora, na medida em que sempre há um déficit de previsões, as posturas positivistas “delegam” ao juiz uma excessiva discricionariedade (excesso de liberdade na atribuição dos sentidos), além de dar azo à tese de que o direito é (apenas) um conjunto de normas (regras). Também não se pode, a pretexto de superar o problema da arbitrariedade (subjetivista-axiologista) do juiz, “desonerá-lo” da “tarefa” de elaboração de discursos de fundamentação (...) (STRECK, 2010).

Com isso, ao se adotarem tais decisões, os ministros olvidaram a imprescindível objetividade nas decisões e deixaram suas vontades individuais superarem o desenvolvimento da isonomia processual proclamada por Lenio Streck. É preciso, para o autor, objetividades hermenêuticas que consigam amarrar as emoções do sujeito-julgador a um caráter objetivamente racional. A discricionariedade é tida como prejudicial, como assevera Streck:

Portanto, ficam afastadas todas as formas de decisionismo e discricionariedade. O fato de não existir um método que possa dar garantia à “correção” do processo interpretativo não autoriza o intérprete a escolher o sentido que mais lhe convém, o que seria dar azo à discricionariedade típica do convencionalismo exegético positivista. Sem textos, não há normas. A “vontade” e o “conhecimento” do intérprete não permitem a atribuição arbitrária de sentidos e tampouco uma atribuição de sentidos arbitrária. (STRECK, 2010).

Tem-se, assim, a problemática da segurança jurídica como percalço das sentenças judiciais. O desenrolar do processo envolve tensão e insegurança constantes, ameaçando qualquer garantia que houver, visto que tamanha falta de imprevisibilidade deixa a justiça brasileira suscetível a variações de vontade do julgador. Mais do que nunca, a decisão não pode ser fruto da vontade única e egoísta de quem a profere.

O debate entre Kelsen e Lênio nunca foi tão pertinente como nos julgados dos MS 34070 e 34609, pois perceptivelmente a vontade do julgador prevalece. Tem-se um âmbito muito vulnerável ao estado íntimo do julgador, o que é prejudicial à garantia de lisura e coerência do processo.

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Sobre as autoras
Natália Leal Soares e Silva

Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Piauí.

Verônica Maria Moura Lima

Graduanda do curso de Direito da Universidade Federal do Piauí,

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Natália Leal Soares ; LIMA, Verônica Maria Moura. Investidura de Lula e Moreira Franco aos cargos de Ministros de Estado.: A influência das convicções pessoais dos julgadores nas decisões do STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5403, 17 abr. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59835. Acesso em: 22 dez. 2024.

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