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Teorias do Estado: ditadura inconstitucional

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24/04/2018 às 13:00
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PARTE X

FORÇA DE LEI

Modelo (a)típico (i)legal

ARTE X - FORÇA DE LEI: Modelo (a)típico (i)legal

O título deste subitem permite visualizar quatro formulações político-jurídicas que estariam na base do Estado de Direito ocidental. Partindo-se de um pressuposto de Max Weber (1979) – modelo típico ideal – há quatro derivações válidas: modelo típico legal; modelo atípico ilegal; modelo atípico legal; modelo típico ilegal.

Por modelo típico ideal entenda-se o direito, a política, as ciências, as grandes construções humanas a partir do Poder Político: centralização do Estado. Sumariamente, esquece-se das imperfeições e variações históricas e culturais; busca-se um eixo, um tipo de núcleo duro, a permanência de determinadas categorias e cânones acordados e respeitados racionalmente.

O que seria, então, o modelo típico legal que sempre esteve presente no bojo da racionalidade jurídica fundante do Estado de Direito? Pode-se pensar, inicialmente, na diretriz racional da legalidade/legitimidade. Porque se trata exatamente das tradições institucionais criadas desde o Direito Romano, e que se sedimentaram, por fim, como baluartes do Estado de Direito: o bom senso como fonte legítima do direito; separação dos poderes; o Império da Lei na forma do vigor previsível no efeito erga omnes (“contra todos”); equilíbrio e ponderação racional entre normas jurídicas e regras sociais, construindo-se uma sustentável proximidade entre cultura e direito. O que culminaria no mesmo bom senso atuante no Princípio da Razoabilidade.

Ao reverso disso, o que seria um modelo atípico ilegal? A Ditadura Inconstitucional parece ser afeita a esses critérios: é atípica se comparada a outros tipos de Golpe de Estado: quartelada, Golpes Militares, Estado de Sítio. Será tipificada, por sua vez, se observar que em sua gênese os primeiros ensaios remontam a Honduras (2009) e ao Paraguai (2012).

O modelo de Ditadura Inconstitucional será típico se vier a ser implementado, doravante, como modelo de racionalidade político-jurídica que instaure outras tomadas de poder com o indevido subterfúgio do direito democrático. O projeto-modelo do Estado de Emergência francês, igualmente de 2016, estaria por aqui.

A Ditadura Inconstitucional, portanto, é ilegal no sentido de inconstitucional, uma vez que a Constituição Federal de 1988 sofreu de uma hermenêutica exorcista de seus principais apegos e nós democráticos. Porém, além disso, como apontado, há outras duas variáveis: 1. O modelo atípico legal, por exemplo, pode ser apreciado no chamado Estado Legal e que adviria sobreposto à Revolução Francesa (Canotilho, s/d), numa tentativa de se popularizar o direito e preservar a República da embocadura do capital dominante à época; 2. Sob o efeito de um modelo típico ilegal, seguem-se os passos das ditaduras tradicionais e as demais formas de Estado de Exceção verificadas: Estado Penal, Estado de não-Direito, soberania de conquista, Jus Puniendi Global.

A ditadura constitucional, presente na Alemanha Nazista, já traz outro mix de composição, uma vez que a Constituição de Weimar (1919) resguardava em seu seio o antidireito: pronto a ser usado em defesa da democracia, mas agindo primeiramente contra ela e seus defensores. Esse modelo vigora na imensa maioria dos países que adotaram o direito constitucional ocidentalizado: vide os artigos 136 e 137 da CF/88.

Mas, será que o Estado de Direito sempre foi atípico e ilegal, sobretudo, pensando-se que serviu aos Césares e Bonapartes? Caio Júlio César utilizou-se do denominado Senatus Consultum Ultimum – decisão com “força de lei” expedida pelo antigo Senado romano – para se defender de golpes de morte e contra-atacar com contragolpes ao poder que lhe era subtraído. Daí a derivação, atualização, do termo cesarismo por Antonio Gramsci (2000).

O Golpe de Estado de 01/12/1851 levou Luís Bonaparte ao poder: na França, por longos 10 anos, atuou como Imperador. No mesmo período, outros dois autores analisaram o golpe, Proudhon e Victor Hugo: a respeito de quem formulou uma de suas principais sátiras, pois não se tratava de um herói, mas de uma farsa, como um “raio vindo do céu sem nuvens”. Assim, sob o espectro da luta de classes, Karl Marx (1978) retratou o bonapartismo como Golpe de Estado contra-revolucionário. Pode-se dizer que a Ditadura Inconstitucional, de 2016, incorpora efetivamente elementos dos quatro principais tipos e/ou modelos (a)típicos (i)legais.

Manipulações da Ditadura Inconstitucional

Na manipulação intrínseca do direito o certo se converte em duvidoso, as provas são refutadas com base em indícios, o senso comum destitui o bom senso. A posse/propriedade dos meios de manipulação do direito, agora refém do incorreto e do abusivo na permissividade da falta de razoabilidade, ganham “força de lei”.

Em nome de um humanitarismo – que é acerto de poder – o próprio direito republicano é sacrificado. Um exemplo simples está no fato de que a condenação em processo de impeachment (artigos 85 e 86 da CF/88) teve desmembramento da pena prevista. Não se conjugou o verbo todo, como demonstração de “razoabilidade jurídica” manietada por acordos de alcova (art. 52, I e II da CF/88[328]).

Parágrafo único. Nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis (grifo nosso).

A absolvição no último quesito da mesma pena – “inabilitação do exercício de função pública” – ainda não está totalmente clara quanto aos interesses e efeitos: para salvaguardar Eduardo Cunha!? Porém, é certo como contraprova que não houve crime de responsabilidade.

A manipulação extrínseca do direito se refere ao fato de que o mesmo processo de impedimento não reuniu elementos materiais – autoria e dolo – que fundamentassem o esmero do rito processual desprovido de legitimidade. Por isso, senadores que votaram “sim” ao golpe, em declarações públicas posteriores, admitiram não haver crime de responsabilidade e que assim agiram em razão de uma suposta “governabilidade”.

Mais uma evidência clara de que o processo jurídico-político (no “dever-ser”) foi convertido em mero procedimento político-jurídico: no “ser-aí” do realismo político. A natureza jurídica do processo (crime de responsabilidade) foi desprezada em virtude da razão política que esteve na base da tomada de poder. Isso é, se não há objeto jurídico perfeito, de nada valem os prestimosos formalismos jurídicos.

A manipulação intrínseca do poder pode ser vista na “nova” configuração – em verdade intempestiva – dos denominados Grupos Hegemônicos de Poder. Vemos a conjuração de forças entre partidos tradicionais (PSDB, DEM) e bancadas reacionárias e atuantes na exclusão da laicidade do Poder Político. O resultado é a tomada de poder pelo PMDB que nunca empossou um Presidente da República, efetivamente eleito em sufrágio universal.

A manipulação extrínseca do poder também pode ser denominada de cultura de exceção protofascista; pois, em adesão massiva (seguindo-se o “efeito manada” apresentado no Congresso Nacional) e em nome de um justiciamento secular, o povo admite abertamente o sacrifício do Estado de Direito Democrático.

O resultado dessa somatória espúria de direito e poder – como direito-poder – é a Ditadura Inconstitucional que serve aos grupos hegemônicos do capital: ruralistas, rentistas, grande empresariado, financistas e banqueiros.

Em detrimento, sucumbe o poder direito, a aliança entre o jurídico e a democracia, a proximidade entre cultura e direito. Ao se desfazer o bom senso como fonte do direito, acomoda-se o senso comum como eco jurídico provindo da voz rouca das ruas.

O Cavalo de Troia da Ditadura Inconstitucional

Muitas são as alterações ocorridas no país, desde a década de 1980, a começar da Constituição Cidadã de 1988 – que, para muitos, nunca fora realista, mas somente lendária – e da década seguinte – também conhecida como a “década perdida”, e se a Constituição Federal de 1988 logo mergulhou nos anos de 1990, talvez esteja aí a razão de nunca ter sido posta em prática.

Por sua vez, a suposição leva a dois caminhos: efetivar a Constituição Lendária ou desconstruir a Constituição sob os moldes de um poder, este sim, muito realista. É óbvio que essas opções não são individuais. Muito menos suas críticas. São escolhas coletivas e políticas; quer dizer que os rumos políticos adotados no país podem cumprir/construir mais direitos (Art. 5º, LXXVIII, § 2º da CF/88)[329] ou refutar os que existem.

Portanto, trata-se de escolhas políticas regressivas ou emancipatórias – vale dizer, civilizatórias. No atual momento, nossas inclinações são regressivas e repressivas. (Nossa realidade lembra um romance surreal bem conhecido nos cursos de direito).

Apenas como exemplo, houve um tempo em que só se admitiam provas lícitas e legítimas. Hoje, acolhem-se provas já refutadas pelo mesmo órgão acusador. Além disso, o acusado tem de provar sua inocência. A história se baseia no fato de que uma prova recusada serviu de base para firmar outra comprovação. Essa segunda acusação de crimes, os mais graves crimes contra a coisa pública, tiveram sua denúncia acolhida.

Faz-se, então, um paralelo com o cotidiano: analogia. Imagina-se, insolitamente, que qualquer um faça uma denúncia contra um vizinho que, supostamente – até que se prove a culpa –, é um abusador dos direitos alheios. Um abusador de crianças, por exemplo. Chama-se a polícia, grita-se no portão, reúnem-se testemunhos que “comprovam alguma coisa insólita” e muitos “ouvi dizer”. Com a chegada da polícia, o sujeito abusador (já bem condenado pela opinião pública circunvizinha) é levado “coercitivamente” para depor: prestar esclarecimentos.

Num segundo momento, o vizinho é acusado por outra testemunha que lhe é desafeta. Na verdade, alguém que o detesta. Por motivações meio insólitas, o próprio delegado que ouviu o “inimigo” do abusador declara que seu depoimento é inválido. Não se sabe ao certo se o depoimento era insólito ou se as contrarrazões que decretaram sua nulidade. Também não importa muito, porque, numa terceira fase da operação, outro delegado – mas a serviço do primeiro – usa e abusa do tal depoimento insólito já invalidado.

Assim, mais uma vez, nessa denominada Operação Cavalo de Troia[330], na própria delegacia, o vizinho abusador encontra-se na alça de mira da “autoridade coatora”. Ali entrou para depor como condenado.

Em resumo, está bastante claro que não se discute aqui se o vizinho abusou ou não do direito e da criança. Até porque – fora do sítio imposto pelo Cavalo de Troia – o ocorrido nunca será apurado adequadamente, pelo fato elementar de que o cavalo tripudiou os fatos e a avaliação isenta dos mesmos.

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Basta lembrar que, ainda que a avaliação pudesse ser isenta – o que, como visto, está longe disso – os fatos foram emporcalhados pelo animal que serve, mitologicamente, de duas formas:

  1. É serviçal aos propósitos do primeiro Estado de Sitio já narrado (Homero, em Ilíada).

  2. É o melhor exemplo de arapuca armada pelos que se dedicam à dissimulação da justeza dos fatos e da (in)justiça imposta a eles.

Pelo conjunto da obra, parece mesmo que a década perdida começou em 2016.

A quebra institucional do Judiciário

O Judiciário é feito de política, mas não “para a” a política – desde os gregos antigos a política é “a arte da liberdade”; sem capacidade de livre expressão (isegoria), o sujeito é “aneu logou”: um não-cidadão. Se o magistrado expressa sua opinião sobre um caso, imediatamente (por força normativa), declara-se sua suspeição. Pois, agiria com prejulgamento ou preconceito, dado que ainda não teria analisado os fatos processuais concretos. Formaria um julgamento de valor anterior ao julgamento de realidade.

O Judiciário não tem “vocação” para a política. Como dizia Max Weber (1979), “fazendo política” não se respeitará a mínima independência e imparcialidade. Pelo contrário, fazendo-se “em” política, o Judiciário se desfaz enquanto poder julgador. O Judiciário não é conhecedor do realismo político, é refém deste – ainda mais sob uma Ditadura Inconstitucional. Não tem a “virtú” necessária – como queria Maquiavel – e assim desconhece o vigor das relações políticas e a “prudência”: leão e raposa.

Hoje, o poder julgador é inerente ao processo de abdicação institucional. Isso se chama “cesarismo”, na referência de Gramsci. A ironia desse caso é que, nessa fase de “cesarismo regressivo” (retrógrado), a política se desprende da liberdade e poder anula o direito adquirido democraticamente.

O direito que resta – mais no sentido daquele que será produzido – não é julgador, mas sim inquisidor. Por isso, tem-se uma dupla sensação: suspensão do direito; prolongamento da política como “arte da guerra”. O primeiro fato seria explicado pelo Iluminismo pós-1793, mas constante desde Kant (direito = coerção). Já, o Renascimento explicaria o segundo fato/fenômeno aos magistrados. De resto, aprender-se-ia que, sobretudo na guerra, se é derrotado pela imprudência (Sun Tzu).

Pela natureza da política que se amalgama na Ditadura Inconstitucional, o próprio Judiciário conhecerá a “força de lei” que emana do poder estabelecido. Sentirá como muitos já partilham da violência diagnosticada por Benjamin: a negação fática da “ius prudentia” do Direito Ocidental. Portanto, ao se propor a “fazer política”, fora dos domínios da liberdade e da igualdade, o Judiciário desconstitui a isonomia. Por óbvio, também se conclui que, sem isonomia (repartição de poderes, sem sujeição de um pelos outros), o Judiciário não é necessário. Basta o Poder Moderador encarnado no Mito do Salvador. E sob tal proteção do Mito invocado, e com absoluto desconhecimento (no sentido de desvelamento) da política, o Poder Judiciário participa como “polo político ativo” do desfazimento do próprio Político. Nesse sentido, o pior “ativismo judicial” é aquele que confunde a política com o Poder Político e o Político com a Razão de Estado.

Ou seja, será o ativismo judicial (judicialização partidária da política) o seu próprio carrasco. Porque na base da relação “amigo inimigo” (Schmitt), o Judiciário será vitimado pela mesma política de poder absolutista que atualmente corrobora em sua produção. E, em breve também, quando não for mais necessário, ver-se-á que esse resultado será exatamente o oposto: “a Corte Especial do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF4) manteve, nesta quinta-feira (22), por 13 votos a um, o arquivamento da representação contra o juiz federal Sérgio Moro interposta por 16 advogados, no mês de abril”[331].

O que é um contrassenso para a lógica do direito – a quebra institucional da isonomia – para o poder absolutista é regra de senso comum. E essa é a última lição que o Judiciário retirará do realismo político da Ditadura Inconstitucional.

Caça ao Supremo Tribunal Federal

O direito é dialético? Para muitos, o direito expressa apenas o poder de quem comanda o jogo. Tanto é assim que comandantes geram antidireito, ou seja, privilégios para si e remédios jurídicos amargos para os inimigos do poder. Em todo caso, também cabem ressalvas a esse modelo interpretativo: a Declaração Universal dos Direitos Humanos; a metamorfose dos direitos individuais, desde 1215, em direitos individuais homogêneos coroando milhões de pessoas. Entretanto, nessa dinâmica “progressista” não há dialética. Mesmo que se diga que o sagrado direito à propriedade não mais se apresentou como direito fundamental depois de 1948, em nenhum documento da ONU o direito rompeu a barreira do capital, colocando-se limites.

No plano nacional aberto em 2016, violou-se irrecuperavelmente o que separava o direito ao poder a descoberto. A somatória entre Estado de Direito, Constituição e democracia não mais existe. Assim, o processo do impeachment construído sob o tema “conjunto da obra” seria suficiente para ver como o direito serve aos “donos do poder”. Porém, fatiar a pena constitucional – por ato de misericórdia, humanitarismo – foi a consagração de que é uma Constituição de Papel (Lassale, 1985). Mas, dado que o afastamento já tem o selo da Ditadura Inconstitucional, resta ver o que vem pela frente. Para os trabalhadores, menos direitos; para os corruptos, a segurança jurídica de que não serão julgados fora de seus mandatos; para o capital virão muitos patos de ouro.

E, se é certo que todo “mas” congrega um “mais”, haverá mais ameaças às instituições republicanas. A violação constitucional revela que não há abrigo para ninguém: a inamovibilidade de juízes e de ministros do STF, descontentes com o poder, já está na alça de mira. Aliás, como bem postado no plano de poder proposto, “o negociado deve se sobrepor ao legislado”. E isso não acomete apenas à classe trabalhadora; pois, na única regra incomensurável da lógica jurídica, “quem pode o mais (impeachment) pode o menos”. Por exemplo, far-se-á exegese constitucional restritiva para afastar um juiz específico[332], sem que haja excomunhão do próprio texto constitucional. Como doravante qualquer interpretação inconstitucional será admitida, a inamovibilidade poderá permanecer como decoração. Mas, sem eficácia, será indecoro.

Em verdade, assombra o mundo[333] que o legal e o legítimo são serviçais pragmáticos da pior fase fascista aposta ao Estado de Direito. Antes, o fascismo era um poder nu (Einstein, 1994), agora se cobre com pelegos: o manu militari[334] foi metamorfoseado em exorcismo inconstitucional e antidemocrático. Como o cobertor é pequeno para todos, salvo os já acobertados, os regimentos internos do Senado e da Câmara Federal provar-se-ão inúmeras vezes mais fortes do que a Constituição. Mas (mais), ainda se espera que alguém prove o “conjunto da obra” como tipo legal. Pode-se estar enganado, mas (mais) ainda não se viu nenhum “operador do antidireito” sustentar essa base legal. Afinal, entra-se com tudo na era do Exorcismo Pragmático Constitucional.

Delírios de poder

Já sacramentada a Ditadura Inconstitucional, cabe abordar algumas razões para desconstruir o projeto de criminalização proposto pelo Ministério Público Federal (MFP)[335], buscando encaminhar projeto de iniciativa popular que tipifique novas condutas delituosas e agrave as penas: encarceramento como vingança pública. Em primeiro lugar, porque se trata de mera vingança pública – atendendo o clamor público com o primitivismo penal – mas que, em verdade, camufla uma briga intestina de poder, recheada de delírios acachapantes pelo poder renhido espaço público privatizado[336]. Além do fato de que a motivação de todo o imbróglio jurídico repousa no processo de justificação inconstitucional do impedimento presidencial – este que, por sua vez, é a raiz e o plasma da Ditadura Inconstitucional que se alberga no país desde 2016. Nesse caso, não só se violaria a Constituição como haveria evidente atentado à democracia[337]. Implantou-se, sem modéstia, condições de exceção[338] em tribunal de exceção: Senado + presidência do STF (Supremo Tribunal Federal).

Em segundo lugar, porque o projeto segue a tutela do Estado Penal – aquela visão de mundo pública (porque decorre do Poder Público) em que o Direito Penal é superfaturado e, em decorrência, aumenta exponencialmente o sistema punitivo e prisional. Às vezes, chega a haver um fetiche por penas, prisões, restrições de liberdade. Outras vezes sugere prognóstico de apreço pelo patológico, em que a punição exemplar (“olho por olho”) demarca traços psíquicos mais profundos. Em outros termos, nas palavras do presidente do Senado Federal, a casa legislativa encarregada de aprovar (ou não) o impeachment é apontada como hospício[339]. É evidente que o sadismo e o Terrorismo de Estado são o eixo psicológico do Estado Penal e, por isso, dever-se-ia reler Da Colônia Penal, de Franz Kafka (1993). Sadismo que se completa com a lucratividade de todo o sistema. Pois bem, quanto ao projeto em si, cabe salientar pontualmente dez deslizes próprios da Lei de Exceção – notadamente quando resguarda para si meios adicionais de poder:

  1. Maior transparência “para” o Judiciário e Ministério Público. Nada diz da transparência “do” Judiciário e do agente acusador. E esse seria o caso explícito da denominada “investigação seletiva”.

  2. Criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos. Além da fixação em criar penas mais cruéis, segue-se outra vez a seletividade que cria exceções. É óbvio que o agente público é corrompido pelo capital privado. Todavia, nada se fala sobre a prisão de capitalistas, bem como não há investigação sobre o sistema financeiro (exatamente porque mexem com o capital hegemônico).

  3. Crime hediondo para corrupção de altos valores e aumento de pena. Não bastasse o fato de que os crimes hediondos são leis de exceção (são um caso à parte, extemporâneo ao próprio espírito da CF/88), não há uma linha acerca da recuperação do dinheiro desviado e de medidas civis e administrativas que teriam muito maior eficácia para a salus pública.

  4. Eficácia dos recursos no processo penal. Aqui, então, há um show para quem gosta de excepcionalidades jurídicas; pois, requer-se o trânsito em julgado quando for “caracterizado abusivo o direito de recorrer”. Nessa brilhante lição do involutivo processo civilizatório, revogaremos o direito de ampla defesa.

  5. Celeridade nas ações cíveis de improbidade administrativa. Visa estimular a “delação premiada” – agora como regra e principal mecanismo de controle social. Criar-se-ão turmas, varas e câmaras e, é claro, mais empregos e gastos públicos.

  6. Reforma do sistema de prescrição penal. Em outra modalidade de exceção, praticamente, abole o mecanismo da prescrição. É uma defesa contra a morosidade ou inércia do próprio Judiciário: aos interesses amigos pede-se “vistas do processo”, mas sem data fixada.

  7. Ajustes nas nulidades penais. É possível que aqui esteja a cereja do bolo, uma vez que não haverá nulidades nos “casos necessários”. Ótimo: quem determinará o que é necessário? Serão o agente acusador e o Judiciário, ambos lotados no lodo de legitimidade em que se afunda o imoral Estado de Necessidade Política?

  8. Responsabilização dos partidos políticos e criminalização do caixa 2. Mais e mais tipos penais e crimes políticos. Porém, quem é mesmo que financia as campanhas eleitorais e move a pauta do Legislativo? Serão os grupos de pressão? Desses nada se fala.

  9. Prisão preventiva para assegurar a devolução do dinheiro desviado. Não basta reter o passaporte, é preciso prender indefinidamente – ou com soltura rápida, se assim entender o juiz. Para um Estado de Exceção, um Judiciário a contento.

  10. Recuperação do lucro derivado do crime. Deve-se apoiar, em primeiro lugar, que se faça uma ampla investigação sobre a origem dos recursos enviados para o exterior. Mas isso é um mito, fantasia, ideal pequeno burguês de quem se preocupa com a saúde da República.

Razões finais: Do que foi exposto pelo MPF não há uma linha quanto às ações práticas do referido órgão no tocante às “investigações seletivas” da corrupção pública. Por que um partido político sim, e outro não? Há mais empuxo para alargar medidas investigativas sem controle democrático; afinal, quais provas seriam lícitas e quais, ilícitas? Quem define o que é democrático, republicano, necessário, saudável para a crise contundente na cultura política nacional? Onde está a criminalização do Poder Econômico que agrava a crise política e solapa a democracia? Esqueceu-se de aprisionar os donos da imprensa que selecionam, criminosamente, os casos a serem investigados? O povo certamente não reconhece os perigos constantes nas entrelinhas desse projeto abusivo de poder. Os poderes de exceção, cesaristas, já estabelecidos certamente não serão tipificados. O que só reforça ainda mais a percepção de que essa iniciativa prevê apenas outra Lei de Exceção. Por isso, como fundamento do fascismo anti-iluminista, cresce tanto no embolado cotidiano, na vida comum do homem médio, quanto na teoria e na prática jurídica uma cultura de exceção com total força político-legal.

A cultura de exceção na “força de lei”

Em síntese preliminar, o direito deposto atua como sombra, espasmo de um paciente moribundo à espera de um “novo” remédio jurídico que não lhe será ofertado da forma adequada. Ainda que seja administrado, será homeopaticamente, quando, por necessidade, deveria vir como prescrição de alopatia. Portanto, na teimosia de morrer, o próprio paciente serve de álibi aos seus algozes: “protegemos a democracia de si mesma, nem que tenhamos de acabar com ela”. Para entender essa força de lei do antidireito, ou seja, como substrato que rumina na cultura de exceção protofascista, e mais especificamente sob a Ditadura Inconstitucional, é preciso conhecer das Ciências Sociais. Tal pressuposição decorre de dois vetores: 1. No fascismo prevalece o poder-direito: Strengh, Gewalt; 2. O antidireito não se explica pelo direito-poder: O Direito que denota a intersubjetividade democrática, o reconhecimento legítimo e construído por coletivos democráticos e inclusivos. Na Ditadura Inconstitucional a força democrática da Constituição é metamorfoseada por manobras inconstitucionais (supressão do objeto) e a Força Normativa da Constituição não provém dela mesma, mas sim do poder que a manipula. Na ditadura constitucional da Modernidade Tardia (Giddens, 1991), mas tradicional, a própria Constituição contém dispositivos que a aniquilam; assim se deu com o art. 48, § 2º da Constituição de Weimar, manuseado pelo nazismo.

Na Ditadura Inconstitucional, ao largo disso (veja-se os artigos 136 e 137 da CF/88), a pior das manobras se dá na subversão de todos os postulados garantidos pelo Princípio Democrático, isso é, salva-se o conteúdo constitucional “liberto” das amarras democráticas. A Constituição sobrevive como sombra do que defendera: no fascismo que a apodera, não sobrevive a força de lei democrática. O efeito corrosivo está em que a mesma Constituição dita democrática (CF/88) possa ser interpretada antidemocraticamente: “o negociado é superior ao legislado”. Sem esquecer que a legislação infraconstitucional também se sobrepõe aos princípios constitucionais protetivos dos direitos fundamentais individuais e sociais. Mais do que uma Constituição de Papel (Lassale, 1985), a “força de lei” em vigor é antipopular; a “hermenêutica protofascista” usa, eufemisticamente, a defesa da democracia contra os interesses do povo. A soberania migra para o Poder Político (resumido em Razão de Estado) e a “governabilidade” se garante à custa da perda da soberania popular. Evidência concreta é o fato de que “operadores do antidireito” desconhecem, ignoram as próprias garantias do direito. Como não vigoram os Princípios Gerais do Direito, deturpam e atropelam o direito positivo para manter o poder entronizado; como não vigora o bom senso, basta o senso comum.

Diante da “força de lei de exceção”, alimentada pela cultura da torpeza (cultura popular de exceção e fascista), pode-se dizer que há poucos momentos em que a dialética histórica reflui; mas, no caso brasileiro, depois da “quebra institucional” de 2016, o status quo ante deveria ser celebrado, posto que retomaria o Princípio Democrático. Todavia, o desejo de se retomar a teleologia jurídica acertada na CF/88, movidos pela “esperança”, cordialidade (de cordis: em que se é inocente até prova em contrário) ou, simplesmente alienação (retirando-se a consciência) e ingenuidade política, acredita-se na perfectibilidade democrática (ex nunc). Esquecem, outrossim, da força de lei do patriarcalismo (ex tunc). Na “nova” batuta do poder, sob as vestes da racionalidade da Ditadura Inconstitucional, será lembrado como um triste fim do que foi deposto: a própria esperança na democracia. Como legado de sobrevivência (luta por conservação do poder empossado), restará o péssimo início do que está posto pela intersubjetividade fascista: <aceitação e internalização acrítica do antidireito>.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Teorias do Estado: ditadura inconstitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5410, 24 abr. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65594. Acesso em: 23 nov. 2024.

Mais informações

O presente trabalho é resultado de uma pesquisa de Pós-Doutorado em Ciências Políticas, realizada no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da UNESP/Marília, sob a supervisão de Marcos Del Roio, professor titular em Ciências Políticas pela mesma universidade.

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