Capa da publicação Teorias do Estado: ditadura inconstitucional
Artigo Destaque dos editores

Teorias do Estado: ditadura inconstitucional

Exibindo página 11 de 15
24/04/2018 às 13:00
Leia nesta página:

PARTE IX

FORÇA DE LEI

O ativismo judicial na Ditadura Inconstitucional

Por “força de lei” entende-se o pressuposto de que a lei tenha força suficiente (coerção) para se impor – como ordenamento jurídico – e assim levar a uma obediência mais ou menos padronizada dos indivíduos (Derrida, 2010). De acordo com esse modelo, a normatização (norma jurídica) leva à normalização das ações: regras sociais. O princípio erga omnes (contra todos) – decorrente da coerção aposta ao direito e às leis – deveria gerar comportamentos ou puni-los, se e quando estivessem em desacordo com a regra geral. Em conclusão inicial, pode-se dizer que o direito e a lei são indutores de cultura, pois a coerção da “força de lei” é a gestora das ações humanas. A “força de lei” constitui-se como “dever justo” que pressupõe a mínima aprovação da lei, do contrato, dos dogmas e das regras estabelecidas. Ao contrário da concepção de que os fatos sociais implicam em valoração (assertiva, como moral, ou punitiva como regra) e, por fim, em normas a serem seguidas: Fato – Valor – Norma (Reale, 2000).

Tal sentido majoritário com que se aborda a “força de lei” talvez esteja mais bem expresso na construção to enforce the law: como um direito que expressa uma força que vem de dentro, como força autorizada, justificada. Não é uma força ou possibilidade secundária ou suplementar. A partir de Kant, é a força essencial aplicada à justiça enquanto direito[285]. Não há direito que não implique enforced, aplicado à força. No entanto, se o objeto do direito é a justiça – como direito justo –, trata-se de um constrangimento externo que possa se conciliar com a liberdade de cada um. Nesse caso, o que diferencia a “força de lei” da injustiça? Qual força seria legítima e qual violência seria injusta? Qual força não será violenta? Qual a base de uma força justa?

Derrida (2010) parte de Gewalt (força), como em Benjamin (2013), mas também de poder legítimo ou da autoridade da força pública legitimada (Staatgewalt). O poder do Estado é a autoridade justificada, num sentido próximo de Hegel (1997)[286] e de Weber (1979). Para o filósofo alemão Hegel (1997): o Estado é a razão. Logo, em nome dessa suposta Razão de Estado, “os fins justificam os meios”. Veja-se que a frase maquiavélica muito provavelmente não foi escrita por Maquiavel (1979) e ainda que muito bem possa ter sido pronunciada pelo mesmo. Em todo caso, aqui se aplica como uma luva, pois se supõe que em busca da moralidade pública possa ser desfeito o Estado Democrático de Direito em suas garantias, liberdades e direitos fundamentais. A diferença estaria no fato de que, como poder originário, sem fonte anterior de legitimação – como se fossem reais “Homens de Virtù”, fundadores de Estado (Maquiavel, 1979) – a “força de lei” empregada não seria nem legal nem ilegal. Ou seria a força da lei criadora do Estado Primordial (Deleuze, 1992)[287].

A palavra força, por si, pode conter um sentido ocultista-místico, sem regra, arbitrário, e este é o sentido mais claro que se visualiza nas ações de exceção emanadas da Ditadura Inconstitucional. Nesse caso, invoca-se a diferença, mas como “diferença de força”. Se a justiça não é, exclusivamente, direito ou lei, por sua vez, só será justiça – “por” direito ou “em” direito – se empregada a força (democrática), exatamente, quando se detém a força (autocrática). Esse é o ato que se observa quando a força está em seu primeiro instante, quando é sua primeira palavra. Se o homem é linguagem (logos), trata-se da força da própria linguagem: “dizer o direito”, antes mesmo de aplicá-lo, antes de “fazer o direito”. O direito, então, não é a “força de lei” das classes dominantes que “falam o direito” por intermédio da força de sua ideologia? Esse fundamento místico do direito (ubi societas, ibi ius) não é o agir ideológico da força que conquista[288]?

Para Derrida (2010), o momento fundacional é argumentativo (interpretativo) e baseado na crença. O direito é, então, ficção e mística; mesmo que não fosse um tipo de pensamento mágico[289]. Ainda que se invoque o “desencantamento do mundo” – como crescente racionalidade que impõe “desmagificação” (Weber, 1979) – a exceção não é decorrente do mesmo Estado Ético (a partir de 1793)? Nesse caso, o direito seria uma metáfora, uma experiência, uma travessia, uma aporia, ou a passagem da natureza à sociedade?

Pois bem, se o direito é directum (como caminho reto), não é aporia: um não-caminho. Como não é distopia: a ausência de utopia (algum lugar: u-topos). A justiça, sim, será uma aporia como apelo à justiça (Derrida, 2010, p. 30). Porque a lei aplicada ao caso concreto, subsumido, equivale ao direito respeitado; mas, não se sabe se a justiça também foi feita. Por isso, é um apelo à justiça. O direito é cálculo, mas a justiça é incalculável (e a injustiça o será ainda mais). Se o direito é sempre um endereço singular – e não se pode endereçar erroneamente – a justiça supõe a generalidade de uma regra. Pode-se seguir uma regra justa, mas – sem espírito de justiça – acabar como injusto. É o conceito de responsabilidade que regula a Justiça e a justiça dos atos daqueles que “fazem a lei”[290]. O que leva à conclusão inicial de que não faz justiça quem se entrega ao sono dogmático, porque a revolução vem do apelo à justiça, quando o direito é negado sistematicamente.

Desse modo, pode-se entender que a justiça é rebelde às regras, ao poder; enquanto o poder de Estado – a “justiça como direito”, codificada – é estatutário. A justiça requer a Epokké da regra, uma ação conservadora e, ao mesmo tempo, suspensiva da regra: reinventando-a na reafirmação nova e livre do princípio. Pela lógica, ao contrário, conclui-se que na fundação da Razão de Estado – ou do próprio Estado de Direito, como “justiça no direito” – o problema da justiça se colocará violentamente resolvido: dissimulado, enterrado, recalcado. O direito, especialmente sob o cálculo (dosimetria da pena, por exemplo), atuará como exceção à justiça (Derrida, 2010, p. 41-44). A ideia (ou ideal) de justiça, portanto, sempre será infinita; porque é irredutível e devida ao Outro – deriva do Outro, é vinda (subsumida) do Outro antes de qualquer contrato ou dogmatismo. E o Outro, por óbvio, é uma singularidade irredutível à generalidade subsumível.

A justiça é, assim, irredutível em seu caráter afirmativo; o problema da “ideia de justiça” é (de)marcar em alguns apenas um ideal de direito: miríade, mera ficção. Ou seja, a ideia de justiça – desejo de justiça e não senso de dominação legal/racional – não corresponde ao conteúdo de uma promessa messiânica. No entanto, parece que se esquece de que “a verdade supõe a justiça”. Sem o porvir – o futuro do Outro que vem – não há justiça. Sem o porvir do Outro, o direito é injusto. E, por isso, é que se vê a condição da história se reapresentar como experiência da arbitrariedade ou da alteridade absoluta. No primeiro caso, predominam os recolhos da história dos dominantes (Benjamin, 1987); em outro, predomina o Iluminismo: “há um excesso de justiça sobre o direito” (Derrida, 2010, p. 54- 56).

No fascismo, no Estado de Exceção, na Ditadura Inconstitucional ou no Golpe de Estado vigora o Império da Força da lei dos Mais Fortes. Também por isso o direito acaba mais importante (como cálculo, dosimetria de poder) do que a justiça. No Iluminismo que anima o Direito Ocidental, ao contrário, a luta política pelo direito impõe a reinvenção dos pressupostos (calculáveis) do direito. Essa luta pelo direito – do Outro – por sua vez, é uma luta por entre as classes: o melhor exemplo talvez seja a conquista do Direito à Autodeterminação dos Povos (a fim de que os outros não sejam os mesmos). Na ditadura legalizada e tal qual no Estado de Sítio nazista, ocorre a aniquilação do direito e não da justiça; porque esta teima em sobreviver como ideal[291]. A exceção superveniente é, então, demoniacamente ambígua: a violência fundadora (na tomada de poder e na produção do “novo” direito de exceção) em luta contra a violência conservadora: no caso, contras as forças democráticas.

Quando se observa a partir de Benjamin (2013), o direito é recortado por duas formas de violência: Gewalt é violência e “força de lei”. O que, de certo modo, dá no mesmo, pois a lei sem força (violência) não é nada: uma arma sem munição. Portanto, a violência pertence à ordem simbólica (e fática) do direito. Não se questionam os fins. Não se pergunta – no âmbito da Razão de Estado tomada em Golpe de Estado – se os meios da violência são justos ou não. Porque a regra da violência não faz essa distinção. Nesse sentido, desde Rousseau (1987), não há que se perguntar se o interesse do direito (natural ou positivo) é o da preservação da ordem e do progresso do capital? Nesse curso, a violência não é externa (como fato social), uma vez que está no âmago da sociedade capitalista. Fenômeno, aliás, que se observa na dinâmica histórica do medo estatal diante do Poder Constituinte (Negri, 2002), posto que contém a violência intrínseca do direito ao direito (Bobbio, 1992). E, sobretudo, porque poderia ser um acerto de contas contra os restolhos da história: o direito à violência (sedição) contra o antidireito do capital hegemônico. Afinal, a inauguração do poder (violência) é a mesma do direito (Derrida, 2010, p. 83).

Outrossim, chega-se ao ponto da exceção que seria, posteriormente, retomada por Agamben (2004): Epokké. A “suspensão do direito”[292] é o antidireito que cria um “novo” direito: sendo de exceção[293] ou não. O Poder Constituinte tanto pode derivar a CF/88 quanto (pela tomada de poder) a Ditadura Inconstitucional. Nesse caso, tratar-se-ia do encontro com Kafka (2002) e as fantasmagorias do poder. Hoje, bastaria um vírus letal à saúde da sociedade informacional, uma superbactéria ou (no Brasil, de 2016) uma hermenêutica inconstitucional: “introduzir o equivalente da Aids nos órgãos de transmissão, no Gespräch hermenêutico” (Derrida, 2010, p. 88). Como há algo de podre no Reino da Dinamarca (Shakespeare, 2004), há algo de podre no reino do âmago do direito (Benjamin, 2013). Por isso, na exceção, a violência civil/militar conserva (ou interpreta em “novidades”) o direito posto.

Derrida (2010), por fim, não se atenta para duas questões centrais: o recorte ideológico de Benjamin (2013) que o leva à esquerda do poder instituído; a forma-Estado de Sítio (nem mesmo a Guerra da Argélia). A crítica do/ao direito como ficção (violência e coerção) é, pois, histórica: exceção ou emancipação? De outro modo, pode-se dizer que o combate à corrupção da coisa pública, pela exceção, não trará emancipação (porque há perda dos sentidos da justiça). No direito, os fins não justificam os meios; mas, ao contrário, os meios condicionam os fins. A não observância dessa “regra de ouro”, “o espírito das leis” corresponderia ao “espírito da ditadura”. O alegado “conjunto da obra” (tipificação ditatorial de “crime político”), como generalidade em face da tipicidade (inexistente), é o exemplo mais notório da Ditadura Inconstitucional. Sem o cordis (o Outro), o direito como violência sempre reinará enquanto houver uma relação meio-fim (do direito) para o poder.

Ao contrário do senso comum (direito = coerção), somente há o indecidível ditatorial se a justiça não excede o direito. Na justiça democrática, os fins estariam para os meios: mediação, arbitragem, conciliação; prevenção, precaução (art. 225 da CF/88), prudência (ius prudentia). Fora desse contexto há o reino da mística: o Destino Manifesto que comanda a autoridade (sem auditoria) e o direito-força. Como se sabe, autonomia sem auditoria é autocracia. Por seu turno – ou como contraprova da autocracia – a manifestação mítica do poder (salvacionista e, portanto, não-mística) é expedida por supostos “homens de virtù”: (re)fundadores da República criam um “novo” direito eivado de privilégios (privi legem) e não respeitoso das prerrogativas do contraditório social: direitos fundamentais sociais. No que também corresponde a uma parte da “dialética de altos e baixos” (Benjamin, 2013): soberana é a violência capaz de parir o direito; como a exceção é o direito à violência do soberano (Schmitt, 2006). Em 2016, entrou-se nessa encruzilhada: o ativismo judicial quer (re)fundar a República, alegando a vigência de “tempos excepcionais”.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

O ativismo judicial como forma da exceção no Estado Ético

O assim chamado ativismo judicial é uma deturpação do positivismo jurídico, porque sequer segue as regras do Estado de Direito. Como reflexo de um pragmatismo jurídico, obedece aos impulsos escalonados pelo realismo político predominante, mandatário, oligárquico, classista, racista, misógino. Além de ilegais, as ações do ativismo judicial têm se mostrado abusivas e próprias de regimes de Exceção, como as táticas mais usuais praticadas na Ditadura Inconstitucional brasileira. Atualmente, o ativismo judicial segue caminhos tortuosos que se encontram lá pelo fim do Direito Ocidental:

  1. Não há controle jurídico, constitucional, sobre os abusos do Poder Judiciário.

  2. O mesmo Judiciário não encontra limitações na lei porque age de acordo com certa opinião pública e aos moldes do realismo político.

  3. A realidade política, então, impõe que se escolha um lado; pois, o direito, na Ditadura Inconstitucional, é partidário: atua a “força de lei eleitoral”[294].

  4. Fragmentos político-partidários “aparelham” os já aparelhados “aparelhos repressivos de Estado”[295].

  5. Contra os inimigos de Estado, o direito ganha o vigor de manu militari: o direito vira truculência militar[296].

  6. Essa opinião pública encontra ressonância tanto no senso comum (classe média e lumpemproletariado) quanto nas oligarquias e frações de classe que sempre dominaram o país.

  7. As mesmas frações de classe que monopolizam o Legislativo – em bancadas variadas, tipo: Bala, Bíblia, Boi (e Bancos) – endossam os abusos porque lhes preserva o poder secular.

Muitas vezes, o ativismo judicial de exceção age por meios sádicos[297], voltando-se contra “inimigos” e não réus, no sentido jurídico. Ironicamente, o próprio sadismo se comprova com a revogação de algumas ações inicialmente perpetradas[298]. Fato/fator que, por sua vez, comprova a desproporcionalidade dos meios de exceção[299]. Esse descaminho, na declaração do jurista Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ocorre a partir de um caso concreto – mas que se aplica a qualquer um: “caso ele seja condenado sem provas ou sem garantias fundamentais, será uma medida de exceção e não uma medida de Direito do Judiciário” (grifo nosso)[300]. Os mecanismos de exceção seriam autorizados pelo mesmo Judiciário que jurou, antes de sua posse, defender a Constituição e o Estado de Direito.

Os desembargadores da corte afirmam que as situações da “lava jato” escapam ao regramento genérico. Além disso, "uma ameaça permanente à continuidade das investigações" justificaria tratamento excepcional em normas como o sigilo das comunicações telefônicas (grifo nosso)[301].

De uma só vez, 25 advogados foram grampeados pelo fato de representarem um cliente que não corresponde mais aos interesses dos Grupos Hegemônicos de Poder[302]. O mal-estar da civilização que desmorona, na imposição dos meios da força de lei excepcional, começa com a revogação do Direito Ocidental – o que, de quebra, ilustra bem um direito que não é ciência, mas mera disciplina axiológica – e conclui sua tarefa com a prática do sadismo judicial. Porém, nominado sutilmente de “constrangimento”[303]. A verdade é que, muito pior do que a corrupção do erário é a corrosão do direito; desse modo, o combate à corrupção da coisa pública não pode ocorrer com a corrupção da justiça e do Estado de Direito[304]. Só na exceção a “força de lei” é desproporcional e desumana[305].

A tergiversação do poder na Ditadura Inconstitucional

Na conta final da trama que leva ao poder – mas que não eleva em nada a política, pelo contrário – está a certeza de que não se faz justiça com menos direitos. Entretanto, como se sabe, em todas as guerras os culpados são os vencidos. O realismo político que cria fatos como Golpes de Estado – e mais graves ainda quando ocorrem no momento seguinte à tomada de poder: dita governabilidade – não pode servir de álibi ao Judiciário para ser complacente com os erros de um enquanto é severo inquisidor de outro. O tratamento não pode ser de outro modo, a não ser isonômico. Principalmente se foram almas gêmeas de poder, até os instantes finais da quebra institucional que levou um ao poder, tão logo o outro fosse defenestrado. Apenas fora da isonomia (exceção) é que se preserva àquele que saiu do poder toda a “força de lei” (violência); enquanto, ao que ocupou seu trono, lhe fosse servido um “juízo atenuatório”. Portanto, para quem foi removido do poder resta só o prejuízo da pena, decorrente do pré-juízo do poder ocupante do cargo. Tal qual na guerra, o culpado é quem foi vencido e a este cabe pagar a custa processual do poder de exceção.

Quer dizer, o Golpe de Estado passa a ser atenuante para se garantir a governabilidade de quem se apossou do poder[306]. Faz-se um golpe, depõe-se o desafeto e minutos depois se invoca o beneplácito do Judiciário para não ser punido pelo crime cometido. Afinal, é preciso garantir a governabilidade. Nesse caso, pode-se matar o vizinho – sob a alegação que matou sua esposa – invadir a casa, tomar os filhos vivos como reféns, fazer da mulher dele a sua e, ao final, alegar que dali não poderia ser removido porque, a partir de então, sou protetor daquele lar?

De fato, teria êxito no pedido se invocasse o direito junto ao Tribunal de Exceção[307]. Porque, naquele ambiente, a regra é praticar a exceção: agir de acordo com os meios de exceção disponíveis; julgar com a exclusão das provas; suspender o direito como regra; punir sempre, com exceção dos amigos. Isso é, trata-se de Tribunal de Exceção – e não de decisão monocrática – porque, por 13 votos a um, decidiu-se que a exceção é superveniente à regra. Descontando-se a regra do Golpe de Estado, que impõe a exceção como medida salutar aos seus tribunais. E esse é o tropeço da democracia.

Tropeção na democracia

Tropeça-se na democracia, no dizer do Ministro do STF que conduziu o impeachment: “Mas encerra exatamente um ciclo, daqueles aos quais eu me referia, a cada 25, 30 anos no Brasil, nós temos um tropeço na nossa democracia. É lamentável”[308]. Dizia-se que, quando alguém tropeçava num evento singular é porque tinha achado aquilo por sorte. Primeiro que não tivemos sorte alguma, muita luta foi desferida para se chegar a um ponto histórico democrático. Em segundo lugar, nessa fase atual, obviamente, não houve tropeço democrático – porque não há democracia – e sim golpe institucional provocador das sequelas próprias de uma ditadura. A diferença, então, da fala do ministro até o realismo político, é que se houve tropeço em 1988, em algo que parecia ser o anúncio de uma democracia, hoje se caiu de cara no chão da realidade política. Isso é fato, está-se jogado de cabeça na Ditadura Inconstitucional. Nesse conjunto político-jurídico – além do desmonte do Político –, o próprio juiz da ação diz que aqui se prende até que se consiga reunir provas[309].

O Político se desfaz – em outro exemplo de que o fascismo é o moto-contínuo da ditadura legalizada – quando um policial comum de patrulhamento de ruas comemora, largamente, a anulação das condenações dos responsáveis pelas mortes de mais de 500 presos, em 1992, no complexo prisional do Carandiru[310]. O Político também se desfaz quando os direitos fundamentais sociais são aniquilados por meio de emendas constitucionais, sendo abertamente inconstitucionais diante das cláusulas pétreas. No mesmo curso que se anula a eficácia do Estado Laico. Contudo, o fim do Político prospera – acima de tudo – quando no rol da “cultura da torpeza”, fascista “por si”, prospera o que Hannah Arendt, judia proscrita pelos nazistas, chamou de Banalização do Mal no julgamento de Eichman, em Jerusalém: “confluência da destruição democrática com a burocratização da vida pública” (Arendt, 1999). Essa somatória de burocratização do espaço público sem que haja senso ético de responsabilidade deve ser acrescida do impulso à corrupção e da rotinização da exceptio em seu combate. Não só dentro do Estado ou contra o Estado, mas no cotidiano dominado por práticas fascistas.

Honestidade é virtude, honraria que se compra ou vende em igrejas, famílias sacras, centros conservadores de honrarias e demais confrarias. Por obra bem azeitada de ajuste ideológico (mentiroso, neste caso) à “cultura de torpeza”, esquece-se da trivialidade: ser honesto é obrigação. Portanto, dar um fim à democracia de 1988 e à Constituição que ali nasceu é algo natural, esperado no interior da cultura que é fascista em cada expressão popular ou na violência institucional. Não há mistério.

Que outros operadores do direito ajam em descompromisso com o Estado de Direito, não é de se estranhar, pois são formatados pela máquina que gere os aparelhos repressivos do Estado. O que talvez assuste é a velocidade com que se desmancha (no ar) o bom senso, a exemplo de advogados que festejam a deposição do Princípio do Contraditório. Para esses, a defesa do não-contraditório significa que eles não têm um papel necessário, porque não são “precisos” (no duplo sentido) na defesa de direitos já inexistentes. Essa eterna confusão entre o patrimônio público e os interesses corporativistas visa somente à perpetuação da classe dominante no poder.

Na Alemanha, em 1794, publicou-se o código Allgemeines Landrecht für die Preussischen Staaten que, pela primeira vez, estabeleceria a Regra da Bilateralidade Jurídica com a lei obrigando também aquele que a promulgou e é o que se entende por Estado de Direito. Todavia, sob a ditadura legal, é urgente que se faça um recorte com o cesarismo (Gramsci, 2000), em que o embate de classes (regressivo em direitos) associa o combate à corrupção com a Razão de Estado e, assim, justifica-se o enraizamento do Estado de Exceção. Com isso, dentro e fora do poder público, a exceção é tida como mal necessário ou, o que é pior, como algo natural em um país subdesenvolvido.

Em situação paralela, mas análoga, o próprio juiz da ação alega a ocorrência de “tempos excepcionais” para subscrever o uso de medidas ainda mais excepcionais. Como se a corrupção da coisa pública viesse como justificativa da exceptio que controla a ditadura legalizada[311].

Novos césares da Ditadura Inconstitucional

O que não se leva em conta é que césares tiveram argumentos e/ou fundamentos diversos para, enfim, fazerem uso dos mesmos mecanismos de anulação do Princípio Democrático que deve reger o Direito Ocidental, e não acidentalmente inscrito nas formas do Estado de Direito. Por sua vez, alternativas ao “nome/conceito” de Estado de Exceção seriam buscadas no Poder Judiciário sob o codinome de espetacularização das operações policiais/judiciais[312]. Nesse sentido, a lide judicial (feminino) também se evidencia como perspectiva atribuída “ao lide” (masculino) político-institucional. Destacando-se “o que” e “como se faz”: “o que se faz” implica no “para que” assim se fez. No plano ideal da justiça, o “para que” implicaria no agir em prol da República, em ações nitidamente distintas da conotação partidária. No plano real, “o que se faz” é prender, para depois investigar e obter provas (quando possível). Desse modo, o “para que” – e na lógica jurídica mediana seria o combate à corrupção institucional – muda de escrutínio e se revela político-partidário. O “como se faz”, em parte já predito, também altera-se diante de “tempos sombrios” ou “tempos excepcionais” – em tese segue a mesma noção – agora “como” justificativa para o uso/abusivo de meios excepcionais de poder. No sentido político-jurídico, naturaliza-se o Estado de Exceção como recurso inevitável para se debelar a corrupção da coisa pública. Assim, a própria República é confundida com a Razão de Estado e a democracia é suspensa para que o poder se normalize. Na regra da exceção, os amigos são premiados e os inimigos, punidos[313].

O poder a ser normalizado, por óbvio, é aquele que se instituiu como expressão do Poder Político ou a ele equiparado. Nessa denominação institucional, o Estado se fez Razão de Estado e, desse modo, transmutou-se o fim (quer seja o Poder Político, quer seja o Estado de Direito) em sua própria justificação (o meio). Ou seja, Poder Político e Razão de Estado passam a ser sinônimos (mais do que equivalentes). Numa conclusão temporária, o Político é sacrificado em prol da Razão de Estado: o poder que se ocupa do Estado. Daí que o Direito Ocidental – conjunto e fundamento formado por democracia, cidadania e direitos civis, Justiça Social e direitos fundamentais sociais, República e Estado de Direito, liberdade e igualdade (ainda que na base da isonomia) – é sacrificado para que o poder investido (por impeachment) seja ainda mais naturalmente aceito como a razão que se constrói em “tempos excepcionais”.

Na mesma contramão da criminalização da democracia que instigou um Judiciário autônomo e uma imprensa livre – como mínimo denominador comum da República liberal – membros ativos do poder julgador atacam a liberdade de informação quando seus votos são contrariados[314]. No cenário institucional, para se ter uma amostra da dimensão da incorreção política, é oportuno observar que – enquanto o presidente do Senado Federal passa por investigação junto ao STF[315] – o Poder Político nomeia como ministro um agente político que já é réu na Corte Suprema[316]. Como suporte propriamente repressivo, a Ditadura Inconstitucional assegura suas conquistas e a tomada do poder com o uso sistemático e seletivo dos aparelhos repressivos de Estado, determinando previamente quem são os “inimigos” políticos[317].

Mas, como definir sua natureza jurídica?

A natureza jurídica da Ditadura Inconstitucional sinaliza para a ditadura legalizada, não-convencional, e que faz uso de determinada hermenêutica antidemocrática ou, em concomitância, aprimora-se por meio de uma mutação constitucional regressiva e violadora do Estado Democrático de Direito. Trata-se de ditadura não-convencional, por vezes difícil de ser detectada aos olhos leigos, porque não há decretação de Estado de Sítio ou de golpes militares – sem emprego de manu militari – e porque se baseia, sobretudo, na “força de lei” de que fala Derrida (2010). Como experimento aprimorado de experiências em Honduras (2009) e no Paraguai (2012), torna-se inconstitucional, por sua vez, quando emprega o ordenamento jurídico – ou uma interpretação a contrário sensu do Princípio Democrático – para esquadrinhar restritivamente, regressivamente, o que se promulgou na Constituição Federal de 1988. De modo simples, se a CF/88 ainda está em vigor, e se o Texto Constitucional consagrou o direito democrático, qualquer interpretação restritiva, antidemocrática, da Carta Magna é, obviamente, inconstitucional.

Juridicamente, a Ditadura Inconstitucional mantém interpretação excessiva das regras que, outrora, definiam a prisão após a conclusão do processo – como, de resto, prescreve a Constituição Federal de 1988: outra vez, a justiça distributiva se torna exceção e a prisão a regra[318]. Em um exemplo concreto, por decisão do Supremo Tribunal Federal, o próprio direito passará a ser negado; pois, os condenados em segunda instância serão presos, sem necessidade do trânsito em julgado – conforme previsto no inciso LVII do art. 5º da CF/88[319] e de acordo com a jurisprudência do mesmo STF, desde 2009. Desse modo, o cidadão comum poderá ser preso enquanto recorre da condenação. Na prática, as garantias de sua liberdade foram subtraídas e, assim, o direito que previa sua inocência até que se provasse o contrário já não existe mais. Em meio à tempestade que acusa o impeachment de quebra institucional, o que garante que essa decisão do STF não tem cunho político-partidário, isto é, prender e impedir que determinado indivíduo seja candidato em 2018?

O que não se diz ao cidadão mediano, submetido às leis e interpretações cada vez mais restritivas do direito, é que hoje se liquidou com o <direito do preso>; mas, amanhã serão os direitos civis e políticos. Sem considerar que 250 mil pessoas já estão presas sem sulgamento. Sobre isso, o STF não se pronunciou. Também há a condenação por crimes famélicos. Assim, na perversa lógica da exceção, corruptos contumazes – via de regra – só eram punidos depois dos julgamentos de segunda instância. Porque, é óbvio, sempre tiveram meios para recorrer. No “novo” modelo do STF, o preso pobre será trancafiado na segunda instância e o preso rico provavelmente só conhecerá a masmorra (e nos milagres que ocorrerem) em última instância. Pode-se dizer que o modelo de 2009 beneficiava os ricos – que podiam pagar para recorrer – porém, o mais novo prejudica a todos. Para os contumazes violadores da “força de lei”, sempre haverá uma brecha, uma chicana ou uma “nova” interpretação benevolente dos seus direitos. Quebrar bancos, sonegar e evadir receitas, ou abrir Ofhsores, nunca foram considerados como crime graves. Espera-se, inclusive, repatriação premial dos recursos sonegados, não declarados e evadidos do país.

Para provar que essa decisão não é um caso isolado, o STF também autorizou a devassa financeira do cidadão sem expressa autorização judicial: o que representa “quebra de sigilo bancário” sem a necessária atuação de magistrados. Com tal decisão, basta o poder da Receita e outras autoridades fiscais para obter dados bancários de contribuintes sem autorização judicial[320]. O poder autorizou o poder a promover devassas na vida privada de todos. Para o poder nu, importa que "vim, vi, venci" e, assim, volta-se à Roma antiga. Por isso o Brasil é um país coordenado por exceções que se tornam regras. Outro aspecto, inerente ao soberano que se manifesta pela Razão de Estado (“salvar a república!”) implica em manejar o direito de acordo com os grupos de poder hegemônicos. Essa é a capacidade decisional do direito: homologar, legitimar, obrigar ao cumprimento das normativas ressoantes do poder constituído.

De certo modo, na prática, o Decisionismo Jurídico Cesarista se arvora como detentor do poder constituinte originário, como se este fosse o intérprete legítimo dos fundamentos do Poder Político. Assim, outra vez acaba por subsumir o Político sob os interesses do Poder Político.

A precarização do Poder Público – como alegoria de que se deve privatizar o excesso de público, ao invés de se desprivatizar esse mesmo espaço público – impõe-se como regra do capital transnacionalizado. Num efeito que talvez indique a real motivação da Ditadura Inconstitucional: a privatização de riquezas naturais[321] e de setores essenciais ao desenvolvimento nacional. Bem como quitar dívidas e/ou empréstimos contraídos juntos a organismos internacionais[322], numa operação que não finda uma vez que se arca somente com os juros e nunca se ataca o principal. Sem contar, ainda, que uma auditoria da dívida externa está absolutamente fora dos padrões da ditadura legalizada. O que poderia caracterizar sua natureza econômica.

Por sua vez, a precarização da República tem como item fundamental o fim do Estado Laico[323]. Porém, no curso da naturalização da exceção, a evangelização política e partidária cresce sob o manto de que religiosos são honestos combatentes da corrupção pública[324]. De acordo com esse crescimento infra-estrutural[325] da evangelização político-partidária não será difícil visualizar o dia em que um ministro do STF – indicado por um presidente evangelizado pelo Antigo Testamento – votará contra os “direitos das mulheres”. Essa seria a base da natureza religiosa da ditadura legalizada; por fim, esse “conjunto da obra” traria toda a “força de lei” que diferencia uma ditadura legal da nossa “atual” ditadura legalizada.

Ditadura legal ou legalizada

Cabe averiguar uma diferenciação substancial entre dois termos empregados de forma corrente: ditadura legal e ditadura legalizada. Pois, com a primeira expressão (ditadura legal), pode-se remeter à figura da ditadura constitucional e, pela segunda (ditadura legalizada), talvez esteja mais palatável ao cenário nacional do pós-2016. Por “ditadura constitucional” (Schmitt, 2006) entende-se a previsão constitucional que admite formas jurídicas típicas do Estado de Exceção. O próprio Texto Constitucional traria restrições ao livre curso democrático, como modelo típico ideal do poder de exceção: ou simples legalização do Estado de Exceção (artigos 136 e 137 da CF/88). O artigo 48 da Constituição de Weimar, sendo invocado para alavancar um poder soberano capaz de sufragar a derrota da democracia social, é o exemplo histórico e basilar.

Quanto à ditadura legalizada, observam-se as ações em desconformidade à Constituição do Estado Democrático – por ingerências do Executivo e ações promulgadoras do Legislativo. Quer se intentem interpretações restritivas do ordenamento constitucional, quer se pavimente uma mutação constitucional repressiva – como cesarismo regressivo (Gramsci, 2000) – importa que as ações de tomada do poder são, gradativa e seguramente[326] naturalizadas como formas organizadas da exceção. Além dos direitos civis serem revogados na ação político-judicial (presunção de inocência), a liberdade de comunicação e de expressão é severamente controlada: o embargo judicial do WhatsApp – especialmente porque a resposta negativa da empresa teria vindo em inglês – é uma pequena amostra de que falta um controle democrático sobre o Judiciário (auditoria); agravando-se o fato de que a autonomia se converte em autocracia político-judicial. Essa regra geral implica que a Ditadura Inconstitucional alinha-se à sociedade de controle (Deleuze, 1992). Vazamentos em segurança, de órgãos de segurança que gerem a sociedade de controle e o Jus Puniendi Global[327], ocorrem, sem dúvida; porém, são escapes ou exceções que confirmam a regra. E a regra, cinicamente, é a naturalização do Estado de Exceção.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Teorias do Estado: ditadura inconstitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5410, 24 abr. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65594. Acesso em: 23 nov. 2024.

Mais informações

O presente trabalho é resultado de uma pesquisa de Pós-Doutorado em Ciências Políticas, realizada no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da UNESP/Marília, sob a supervisão de Marcos Del Roio, professor titular em Ciências Políticas pela mesma universidade.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos