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Teorias do Estado: ditadura inconstitucional

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24/04/2018 às 13:00
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PARTE VIII

A “FORÇA DE(A) LEI” CONTRA O IMPÉRIO DA LEI

O senso comum na Ditadura Inconstitucional

Na mesma linha em que se posta a trilogia dos Princípios Gerais do Direito[235], também trilham os direitos, as liberdades e as garantias – na estrutura básica do Direito Ocidental – bem como tem seguimento os componentes do clássico Estado de Direito: Império da Lei; prevalência dos direitos fundamentais; separação dos poderes. Ao que, ainda, poder-se-ia acrescer a impecável rotina histórica: a luta pelo direito é uma luta política que (se) expressa (n)a luta de classes. Mas, o que é o Império da Lei[236]? Na música de Caetano Veloso (Lyrics):

“O império da lei há de chegar lá

O império da lei há de chegar lá

Quem matou meu amor tem que pagar

E ainda mais quem mandou matar”

Por outro lado, o que é força de/da lei[237]? No primeiro sentido, há que se destacar uma distinção essencial em relação a Derrida (2010), quando se refere à “força de lei” (enforced), própria da força que carrega ou congrega o direito e o impõe, executando-o: “não há direito sem força”; não há “direito sem coerção”. Do mesmo modo, agora entre os funcionalistas que se socorrem de Durkheim (1999): o direito é um fato social, logo, é eivado de coerção. É uma força que se faz em lei, mas que também provém da lei (to enforce the law). É a força que permite à lei – de ali – ser imposta e executada. A “força de lei” é o direito posto e imposto coercitivamente (direito positivo). Todo direito é posto: Gewalt <força>; Staatsgewalt: poder do Estado. O direito positivo é imposto: legal enforceability <imposição e obrigatoriedade legal>. Portanto, a força que provém do direito – imposto como direito positivo – é uma força que advém diretamente do poder. Numa combinação de Benjamin (2013) e de Deleuze (1992), o direito como força estaria presente tanto do Estado Primordial (originário das “hordas”) quanto na forma Estado dirigida pelo Direito Ocidental.

O que aqui se denomina de força da lei (e não de) é uma espécie de assombro[238] – o peso da lembrança cultural da dor de não ser social – um constrangimento consciente ou inconsciente que reverbera costumes, práticas, tradições de um passado auricular que ecoa como se fosse “lei válida”. Aprende-se, pela cultura, o que é certo e errado e se confunde o certo com o direito, como se o direito fosse tudo que é certo e assim pertencesse aos justos. Também no senso comum diz-se que “eu tenho o direito”, quando muitas vezes não o tem, porque prescreveu ou porque nunca teve. A força da lei é o senso comum: para os mais ingênuos ou “alienados da lei”. A força da lei implica, simplesmente, no hábito de ser assim, fazer cumprir determinações porque foi ensinado que “isso” ou “aquilo” é o correto. É evidente que imperam exterioridade e generalidade, contudo, a anterioridade observada remonta ao imemoriável precedente da própria lei. Assim, pode simplesmente ser a força inaugural, incrustada na “força da cultura”: Urstaat (Estado primordial[239]).

Por isso, religiosamente, também se imiscuem preceitos e mandamentos (como: “não roubarás”) com a percepção do que é legal. Logo, vê-se a moral impondo sua força ao direito. Nesse caso, trata-se da lei prevista: a cultura impulsiona à necessidade da legalização – toda normatização leva à normalização (naturaliter da força, do poder, naturalizado como direito). Naturalizar o poder implica em normalizar as relações, os interesses, as disputas e demandas na forma de “fatos sociais” (regulados pela coerção). Naturalizando-se o poder de impor a normatização/normalização, naturaliza-se a necessidade do direito (naturaliter). A referida naturalização do poder, elaborando-se pela racionalização progressiva das disputas, cria uma tecnoburocracia especializada na dominação racional-legal (Weber, 1979) e que instrumentaliza, definitivamente, o “saber como poder” (Bacon, 2005). Ocorre, por fim, uma disseminada e ameaçadora proliferação das instâncias tecnocráticas (Bobbio, 2015)[240].

A tecnocracia jurídica libertou o povo de uma “natureza humana” estranha à sociabilidade; mas, o fez por meio da “força da lei”, do direito naturalizado que é parte integrante da Humanidade. Gradativamente, é como se tivessem saído do terror do Político (ou de sua ausência) à era do medo à lei. Com isso, também naturaliza-se o poder de impor o direito por meio da “força de lei”: criar o direito, “fazer a lei” (Derrida, 2010). Como ato de fazer, “fazer a lei” por quem faz e obriga[241], pode-se objetar que haveria dois sentidos: forte e fraco. A lei provém da sociedade, dos fatos sociais e culturais – como fato, valor e norma e não em sentido inverso (Reale, 2000) – que fomentam o jurídico. Todavia, como direito positivo (obrigado: erga omnes), tem um sentido forte porque é derivado de um poder: Poder Legislativo, se há Estado de Direito. E tem um sentido fraco – porque não propriamente jurídico: sem isonomia – quando ditado pelas classes sociais dominantes (Grupos Hegemônicos de Poder) ou pelo soberano que detém os meios de exceção que comandam o direito. Então, o direito não é só cultura, assim como a cultura não é somente uma “segunda pele” (Laraia, 2009); mas, sim, necessidade premente. Ou melhor, é a condição humana da sociabilidade que regula os fatos sociais (força da lei); mas, é a “força de lei” que há de vir como direito imposto. É o devir histórico e teleológico: do provérbio “dente por dente, olho por olho” (Êxodo 21:24)[242] ao chamado direito premial[243].

O segundo sentido é o da lei prescrita: a essência da força da lei. Posto que um dia fora lei de fato – na forma de direito ou regra social positivada ou com os mesmos efeitos – até que se viu revogada por novas nomenclaturas de poder social, daria ou deveria dar vazão ao “novo” direito. Mas, em sua origem que não se desprende dos fatos sociais vindouros, atua como “coerção irresistível”, “temor reverencial” ou simplesmente como conveniência e hábito. A Revolta da Vacina (1904) poderia ser um exemplo, com o machismo se voltando contra a saúde pública: “não é permitido tocar nas carnes das mulheres”. Também se relaciona com polidez, convencionalismos ou, no popular “deixar como está, para ver como fica”. A pergunta clássica nesse caso é: a força de(a) lei é referente ao direito posto ou à força normativa da justiça? Esta, por si, é uma das mais controversas questões em debate no mundo jurídico. No entanto, sob a Ditadura Inconstitucional, como modalidade expeditiva do Estado de Exceção no século XXI, é fato que não há justiça onde reina a desigualdade sistemática e sistêmica, a negação de direitos fundamentais e a exclusão da soberania popular.

Pois bem, como ambos os cânones do direito ocidental (“força de lei” e império da lei) ajustam-se à Ditadura Inconstitucional?

No “conjunto da obra” – modelo (a)típico (i)legal da Ditadura Inconstitucional – “o acordado se sobrepõe ao legislado”, assim como o Império da Lei sucumbe à “força de lei” que provém da exceção: hoje é crime, amanhã se aprova expediente normativo para que o usurpador desenrole a mesma ação em total inocência. E assim um acórdão leva ao poder – sobre todos os acórdãos da justiça democrática – o Estado de Direito vive sem democracia, bem como a República se dobra à coerção dos “novos” mandatários do poder. O retrato, contudo, segue certo modelo ou padrão que vem sendo gestado na América Latina.

É o caso de Honduras, em 2009, quando o então presidente hondurenho Manuel Zelaya foi tirado à força de sua casa e colocado em um avião que o levou para a Costa Rica. Ou do Paraguai, em 2012, quando em menos de 48 horas o Congresso Nacional votou pelo impeachment relâmpago de Fernando Lugo. Em ambos os casos, semelhanças que remetem ao atual momento do Brasil: a movimentação pela deposição de um mandatário escolhido pelo voto popular, através de dispositivos legais instrumentalizados por parlamentares e juízes, quando não empresários do setor industrial ou do agronegócio[244].

A democracia não mais existe, nem o direito que a protegia. Os cidadãos são regidos pela sombra desse direito chamado Constituição, pois restou apenas a força da lei do antidireito: uma sombra sinistra, um terror impiedoso do que deveria ser. Afinal, esse é um dos fenômenos verificados nas entranhas do Estado de Exceção: a força da lei (do direito deposto) é invocada para açodar o outrora vigente Império da Lei; muitas vezes é a própria democracia que lhe deu vértice na origem.

A tese histórica comprova que toda força da lei – a coerção irresistível acomodada aos “fatos sociais”: coercibilidade, anterioridade, generalidade (Durkheim, 1999) – é, por sua natureza, ato e prova do antidireito: a coerção (tradição) impede a eficácia democrática e anula a efetividade do direito que quer ser posto por força da lei da mudança social. Assim sendo, a força da lei do status quo ante refreia, impede, obnubila o direito nascente. Na República, o Princípio Democrático – como “Espírito da Constituição” – impedia a mutação e a violação constitucional, obstava o próprio Estado de Exceção. Na Ditadura Inconstitucional, a mutação constitucional repressiva de direitos – Gramsci (2000) chama isso de cesarismo regressivo – impede a Justiça Social (art. 170 da CF/88).

Na exceção, exclui-se o senso mais elementar da verdade

No caso da Ditadura Inconstitucional é seguro que o tradicionalismo (“golpe de classe”) abateu a jovem democracia, fez refluir o Estado de Direito que a consagrava, desprotegeu a República dos crimes praticados “por atos estranhos ao exercício de suas funções” (art. 86, §4º da CF/88). Os novos ocupantes do Poder Político não podem ser julgados por atos anteriores à tomada de poder. Do passado ao presente, tanto Hitler estava convicto do seu Mal – que para ele era o bem – quanto se está o povo bastante convicto e esclarecido de que vive uma feroz ditadura: imoral, ilegal, aviltante do mínimo de respeito ao direito e ao bom senso. Nesse sentido, a força de(a) lei do Golpe de Estado, de 2016, é ilegal (inconstitucional) e, ex tunc/ex nunc, para trás e para frente[245], sempre será ilegítima. No fascismo, o senso comum (força da lei) substitui o bom senso e a justiça (autoridade como poder legítimo), impondo-se como “força de lei” da exceção. Por edição do poder, impelem-se leis injustas com irrestrita “força de lei”[246].

Na Ditadura Inconstitucional, o máximo do antidireito vem com a presunção de culpa baseada na livre convicção do senso comum: “todos são culpados até prova em contrário” – mas, como, se não precisa de comprovação? Como há Mal que não se acabe, o fim do Estado Laico não só é protagonizado institucionalmente[247] como é alimentado pelo institium do Estado Penal (Wacquant, 2003). A proposta persecutória admite que provas obtidas ilegalmente sejam validadas, em prol, é claro, do Bem Maior[248]. Diz-se soberamente: “não há como provar, mas há convicçoes”[249]. Ou seja, na exceção, abre-se um fosso medieval entre provas e acusações[250]. Por isso, se ainda pode ser pior, a declaração vem soberbamente declarada por “autoridade” que deveria fiscalizar o bom andamento do direito. Nessa toada, sem o direito à presunção da inocência, evapora-se com o Direito Ocidental. "Substitui-se o direito pela moral"[251]. Na Teoria Política se chama Estado de Justiça, seguindo-se o Princípio Ético de Hegel (1997)[252]. Assim, a vida privada e a pública passam a ser regidas pela moral do soberano. A tal soberano – que é quem domina os meios de exceção – por sua vez, sempre há dúvida sobre sua verdadeira condição: um rei em seu castelo[253] está seguro em seu poder? Está (res)guardado em segurança? Ou está emparedado? Isso precisa de provas? Ou só há indício de que está sitiado pelo próprio poder?

No reino do Estado de Justiça, o povo está imerso em estado de ilusão com a justiça, e desilusão acompanhada de depressão provocada pelo "governo dos homens". Esquecem, pois, o "governo das leis”[254]. No governo dos homens não há o Princípio do Contraditório; portanto, não há o livre exercício da advocacia em razão e em defesa dos direitos e de suas garantias[255]". De acordo com alguns ministros do STF o ativismo judicial pode reforçar os mecanismos de exceção – nos moldes do que se teve sob a ditadura militar de 1964[256]. Arrependido ou não, o ativismo é inerente à exceção; no mínimo, porque antecipa juízo de julgamento. Isso ocorre porque o julgamento de valor (pré-conceito: o que vem antes da verdade dos fatos) precede o julgamento de realidade: conceito formado com o empirismo dos fatos; no caso, provas irrefutáveis – essa que é a principal lição de Bacon (2005) ao firmar a Ciência Moderna. Por essas e por outras, confirma-se o óbvio, não há ciência no direito: um tipo de vício redibitório ("ab ovo") de uma mera “axiologia" porque o direito ou é refém ou é beneficiário do realismo político[257].

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A exclusão das provas na Ditadura Inconstitucional

Para o homem de ciência, sua última convicção morreu na porta de entrada da academia. Se manteve “fortes convicções” (a não ser o apego à “dúvida metódica”) depois disso, é porque nunca foi e jamais será um “homem da verdade”. A ciência, toda ela, requer comprovação para obter validação e daí virá o reconhecimento – ainda que sofra com uma contracorrente. O senso médio adverte em sentido semelhante: “Sem que se tenha procurado por provas, tem-se a firme convicção de que aquela opinião vale – exatamente – o mesmo que a sua”. Pois bem, isso pode dizer várias coisas: 1) embasa-se na intuição; 2) não se tem motivos para duvidar, daí não procurar pelas tais provas (ou “pelos em ovo”); 3) não se quer provar o que desagrada: inocência ou culpabilidade; 4) não se procura por prova alguma[258]; 5) não se diferenciam provas de indícios; 6) não se sabe a diferença entre provas e coação[259]. O fato é que a inexistência das provas – não importam os motivos – aponta inúmeras possibilidades de inconclusão: algumas mais estapafúrdias do que outras, mas isso tampouco importa. Outra conclusão, agora mais racional, conta que as provas impõem um único caminho: o caminho da verificação da verdade.

Ao falar de ciência, as provas seguem um caminho sem fim – porque a verdade científica é pautada por postulados que se refazem conforme evoluem os modelos e as comprovações obtidas. Assim sendo, fanatismo, religião ou “pensamento mágico” (senso comum, ideologia), ao contrário do pensamento científico, parecem ter o mesmo caminho parecido a uma “rua de mão única”: “é a sua versão contra a minha”. Aplica-se, nesse caso, o Princípio do Terceiro Excluído, esquecendo-se de que as duas versões (senso comum), comumente, estão erradas. No direito se diz que cada parte tem sua versão, e a terceira história é a verdadeira. Já, a ciência, pela chave inescusável da verificação/validação, requer o vai e vem, a confrontação e a checagem por meio do Princípio do Contraditório: desdizer, dizer contra.

A leitura a “contra pelo” permite, literalmente, escovar as inverdades, as falhas, a falta de provas ou (re)provar as provas falhas. Mais ou menos em decorrência disso, outros dirão: “Só se sabe ao saber”. Com um pouco mais de investimento ter-se-ia uma sentença mais clara: “Só se sabe com saber”. Isso é, “com o saber” – a investigação que, bem sucedida, resultou em conhecimento –, arrisca-se a uma dedução plausível (ainda que inicial) e pela qual julgamo-nos sabedores de algo; e ainda que seja parcial e incompleto, será um conhecimento lógico. Esse caminho lógico sem fim também recebeu o codinome de “desencantamento do mundo”: desmagificação ou perda dos sentidos (Weber, 1979). Ou seja, a crescente racionalização força a perda dos sentidos baseados no senso comum.

O direito deveria, inclusive pela “força de lei” (o ônus da prova cabe a quem acusa; só há presunção de inocência), seguir o conhecimento lógico – aquele deduzível a partir de um mínimo de “empirismo”, ou seja, de comprovação fática. Como não se pauta na ciência, o direito reverbera as tais “firmes impressões” (pré-conceitos: o que se sabe, antes do saber) que logo se tornam convicções: algumas ideologias são inverdades contadas mil vezes, até que se acredite nelas. No século XXI, a mídia tem se colocado com maior eficácia para o desempenho desse papel. Isso é importante porque, após convencer-se de algo, passa-se ao convencimento alheio. Nesse misto de “achismo”, escapismo e fatalismo forma-se uma ideologia jurídica funcional ao establishment.

Como disciplina axiológica – e não ciência das humanidades – o direito tem nos axiomas os frutos da árvore da verdade. Porém, como não tem capacidade cognitiva para suportar investidas contra sua própria “razão de ser” (e que não é a justiça), basta um fruto podre para que toda a árvore apodreça. O conceito do direito, se fosse possível relegar os pré-conceitos (pensamento mágico, ideológico), deveria desvelar, desnudar, o fato de que a força do direito está no poder e não nos axiomas. Os axiomas, por sua vez, não são confirmados a não ser pela moral. O problema aqui, então, é ainda mais grave, porque se o direito segue a moral, basta perguntar “que moral” e quem controla a moral?

E a questão se fecha – com as provas históricas da racionalidade – porque não existe nada mais datado, com prazo bem estreito de validade, do que a moral e o moralismo político e jurídico. Por fim, cabe a conclusão lógica de que o direito baseado na moral, sem comprovação fática, é o antidireito que se reforça com a injustiça. Por isso, o direito serve ao poder que se (a)prova nos fatos concretos. Ao contrário do direito que é ficção, o poder é concreto – ou não passa de um tipo de convicção: potência. E esse é o lado mais perverso do direito, pois assim é só produto, reprodutor da exceção. A primeira excluída, e não terceira, é a justiça. Nesse caso, vive-se o Totalitarismo das Convicções egoicas e unilaterais[260]. Vergados pelo “homem da moral”, que é aquele que deturpa a “verdade dos fatos”, para provar um fato específico.

A obviedade que se esconde na falta da veracidade

O resultado, óbvio, é o antidireito produtor de injustiças incorrigíveis. Porque se perpetra uma aliança de antidireito entre Ministério Público, magistratura e mídia no Terrorismo de Estado. Assim também manifestam-se algumas entidades colegiadas preocupadas com as prerrogativas funcionais dos juristas[261]. Além de manifestações individuais, como o ex-vice-procurador geral e ex-Ministro da Justiça, Eugênio Aragão, a Rodrigo Janot (à época, atual Procurador Geral da República).

Na crítica à Lava Jato, entretanto, tenho sido franco e assumido, com risco pessoal de rejeição interna e externa, posições públicas claras contra métodos de extração de informação utilizados, contra vazamentos ilegais de informações e gravações, principalmente em momentos extremamente sensíveis para a sobrevida do governo do qual eu fazia parte, contra o abuso da coerção processual pelo juiz Sérgio Moro, contra o uso da mídia para exposição de pessoas e contra o populismo da campanha pelas 10 medidas, muitas à margem da constituição, propostas por um grupo de procuradores midiáticos que as transformaram, sem qualquer necessidade de forma, em “iniciativa popular” (grifo nosso)[262].

Como analisa Agamben (2004), e se aplica sobejamente neste caso, suspende-se o direito por meio de um instituto jurídico (iustitium = solstitium). Como o sol que some no solstício, na exceção desparece o direito. De acordo com Capella, além disso, a processualística não pode ser substituída pela legitimação mítica do poder.

Tais expectativas, pelas que lutaram gerações de pessoas, aparecem ante as consciências de todos como aureoladas juridicamente, como hegemônicas. Justificar sua violação ou sua restrição exigirá, pois, um esforço (discursivo) especial por parte de quem atente contra elas: tal é, em realidade, sua magra couraça, mas, que ao mesmo tempo, facilita que os indivíduos insistam na legitimidade e na justiça de suas pretensões quando estas aparecem como o conteúdo de um direito de cidadania. Em realidade, para denegar essas pretensões legítimas, o poder há de recorrer, de um modo ou de outro, à doutrina do “estado de exceção”: uma doutrina que, levada ao limite, exige a legitimação mítica (Capella, 1998, p. 143 – grifo nosso).

Para esses casos, é urgente que se retome o ensino de Educação após Auschwitz[263]. Talvez ainda coubesse o Adorno (2001) do “nojo” pela idiotia: vulgaridade, ignorância, dotação única de egoísmo e desprovimento de qualquer sentido coletivo. Os idiotes do passado sobreviveram como idiotas modernos. Sem educação, não há emancipação, permanecendo-se tutelado, submetido, subjugado, inferiorizado (Adorno, 1995). Desse modo, sempre se trata de uma educação para o cidadão, como educação intencionada politicamente (Canivez, 1991). Portanto, não é normal ter medo do Estado se este fora criado (na força da ideologia) com os regulamentos do direito. Se ao homem bom basta seu bom senso, por que temer o direito, se o Estado é de direito e democrático? Só temem o direito os facínoras, o povo teme a ditadura.

A consciência exige domínio de conhecimento, clareza conceitual, independência para pensar e para agir, avaliação crítica dos fatos, remoção dos preconceitos, maioridade moral e emocional. Quem tem a vida defensável moralmente age movido por suposições? Como haver isenção cognitiva se age e decide com base no pré-conceito, sem provas de que o conceito é válido? Esse é o início para se ter consciência de quem se é.

Enfim, consciência exige emancipação e liberdade. O homem é livre para pensar e para agir – conscientemente – quando está liberto das prisões da tragédia humana. Mas, se faltam condições mínimas para que a consciência se informe desde a infância e na adolescência, sobretudo na escola e na família, quem – além de uma elite cínica – está livre do subjugo do direito injusto? Todavia, imersos na menoridade, não se questiona a injustiça construída como “força de lei”. E dessa ação de poder não escapam nem mesmo as instituições do Judiciário.

Ditadura legal[264]

O Supremo Tribunal Federal está no meio da Lava Jato[265]. Todavia, por razões nem sempre esclarecidas – talvez por vaidade, talvez por reserva político-institucional do regime de castas – o poder (investigador) ameaçado de investigação interrompe os processos investigatórios[266]. A mesma Ditadura Inconstitucional que se (retro)alimenta do regime de castas é a que se beneficia da lei e da cultura de exceção. Pois, se não houvesse o intercurso da cultura de exceção, as prerrogativas constitucionais não seriam transformadas em privilégios. Sem esquecer as picuinhas pessoais, administrativas e partidárias que animam a rotina seletiva da ditadura legal[267], deve-se ter em conta os desvios totalitários que agem sob a alcunha do Bem Maior: “Mas, vejamos, a proposta de que prova ilícita, obtida de boa fé, deve ser validada, a priori, tem que ser muito criticada e se negar trânsito. Imagine, agora, um sujeito que é torturado, ah, mas foi de boa fé”[268].

Não há bons propósitos[269] acima da lei, dos princípios da licitude e da presunção de inocência, e dos postulados democráticos. No caso da última citação o que causa maior espanto é o fato de que só há indignação quando se faz referência direta aos “amigos da lei”. Ou seja, o regime totalitário em curso não ameaça apenas ao STF. Mas, a saída encontrada, uma suposição vaga, faria a sugestão de que os documentos “vazados” forçariam uma pressão externa a fim de que os fatos fossem acolhidos com naturalidade[270]: um naturaliter da exceção.

Além de suposições diz-se que teriam ocorrido excesso de autoridade, força de cobrança desproporcional da autoridade administrativa e que, se fosse outro, menos impositivo, não haveria crise política[271]. Pela lente angular do processo de impedimento, o impeachment de 2016 – como marco regulatório da Ditadura Inconstitucional – tem matriz político-jurídica, quando, em acerto legal/legítimo, deveria ser o exato contrário: processo jurídico-político. A diferença, que não é de mera sutileza verbal e nem de neutralidade demológica (porque não há regra neutra), deveria apontar a ocorrência inequívoca de crime de responsabilidade, com ato direto provocativo de dolo (art. 85 da CF/88). Porém, no realismo político, basta a alegação (política) de um crime administrativo não-tipificado, que se denomina de “conjunto da obra” para que se abra espaço a 55 projetos legislativos aniquiladores do Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido, não basta ser legal – ainda que muitas vezes nem se obedeça à legalidade que atinge o homem médio em sua vida comum[272] – é urgente obedecer a uma moral democrática, popular, respeitosa ao senso médio nas condutas públicas[273]. Por sua vez, o pior é quando o mesmo poder, encarregado da justiça, pune os que se voltam contra seus privilégios de casta social. Juízes foram ameaçados, cerceados em direitos e liberdades por não defenderem a exceção. Ao mesmo tempo, sente-se a invasão da força coercitiva das corporações pelos corredores e arredores do poder oportunista – e que, mesmo sendo complacente, incomoda-se com o arrocho[274].

A Justiça Social não tem caráter de urgência, mas os aumentos de salários, privilégios e status adquirido no establishment, sim[275]. A miséria humana verificada fora dos porões do poder coincide com o típico anti-Estado ou Poder Público privatizado. Nesse prisma, tal modelo de Ditadura Inconstitucional segue a tragédia do capital, encontrando-se com um vasto caminho global que atende pelo codinome de Golpe de Estado internacionalizado[276]. Nesse circuito ampliado pelo capital especulativo, disruptivo, os preceitos mínimos liberais, como liberdade e igualdade formal, cidadania participativa, Estado de Direito – que se oponha à barbárie jurídica – são degenerados sob a figura do “inimigo combatente”: “o inimigo é o cidadão”. Por fim, pode-se/deve-se dizer que a exceção dirigente da Ditadura Inconstitucional tem uma forma específica de fazer as coisas previsíveis nunca se realizarem, ao passo em que as imprevisíveis se contornam como a própria vida pública.

O “conjunto da obra” da ditadura legal

O assim denominado “conjunto da obra” é um modelo (a)típico (i)legal da Ditadura Inconstitucional. Sob tal codinome violam-se – no varejo e no atacado – o bom senso, a justiça, os Princípios Gerais do Direito e a racionalidade (modelo ideal) genérica, mas genética, do Direito Ocidental. Violam-se, sem peso na consciência político-jurídica, princípios éticos acostados nas cláusulas pétreas; ocorrem condenações (costumeiramente) por crimes sem objeto e nem autoria; portanto, sem dolo. Anulam os efeitos da irretroatividade legal in pejus, quer dizer, para agravar a situação do condenado. Contudo, isso ocorre com a máxima cautela instrumental, sob um modus operandi amarrado pelo tecnicismo jurídico. Além disso, houve obtenção de provas por meio ilícito; seletividade judicial; ruptura da separação dos três poderes; mutação constitucional após o golpe, inocentando-se legislativamente os motivos de suposto crime de responsabilidade, para no futuro inocentar novos abusos. Em síntese de uma linha: o “conjunto da obra” pode ser resumido à negação dos direitos fundamentais individuais e sociais. Foram e são desferidos múltiplos ataques legislativos contra os “povos da floresta”, quilombolas (PEC 215 e outras) e se patrocina, hodiernamente, o fim da laicidade pública.

No percurso do processo político-jurídico (que deveria ser jurídico-político), o Congresso Nacional atuou como Tribunal de Exceção. Sob a presidência do STF fez-se vigorar a democracia indireta: Colégio Eleitoral. A Ditadura Inconstitucional sofre e ampara, ao mesmo tempo, o resguardo da racionalidade jurídica dirigida contra os “inimigos de Estado” – mas com o sobretudo do poder ora estabelecido – operacionalizando-se a inversão constitucional dos princípios democráticos em favor dos “novos” grupos de poder. Pelo “conjunto da obra”, a ditadura legal conflui para o exercício mais bem caracterizado do modelo (a)típico (i)legal, como se congregasse todas as variáveis num só tipo político-jurídico de Estado de Exceção. Desse modo, pode-se indagar: há um atentado contra o Estado de Direito, pela direita, ou se trata da direita usando o direito democrático de forma antidemocrática?

Na verdade, como se vê, ocorrem os dois fenômenos: nega-se o Princípio Democrático residente no Estado de Direito e se utiliza – manipulando-se – o Estado de Direito de acordo com a conveniência do realismo político. Raros são os agentes do poder que ousam desafiar as ordenações fascistas da Ditadura Inconstitucional[277] – a começar das conjurações cleptocráticas do duplo-Estado[278] (Bobbio, 2015). No lugar de princípios éticos, o poder dos príncipes. Ao invés da justiça, a corrupção da coisa pública[279]. Se não há direito de contestação e de manifestação não há liberdade e, sem liberdade democrática, prospera o fascismo[280]. Esse é o barco atual, afundando rapidamente na falta de senso público.

Violência institucional – violação intrínseca e extrínseca do direito e do poder

Em que pese a análise conceitual de que devesse ocorrer separadamente no caso a caso do cotidiano, no “conjunto da obra”, por sua vez, a violência institucional é tamanha que se imiscui por todas as formas e ações antirrepublicanas. Há violações intrínsecas e extrínsecas do direito e do poder na efetivação da Ditadura Inconstitucional. O direito-poder – no abandono da justiça material – serve à simbologia do poder-direito: a soberania popular está distante do Poder Político. Na Teoria Política contemporânea (Bobbio, 2015), há um verdadeiro “Estado Paralelo” que opera em non sense (absurdo lógico), ora como anti-Estado cleptocrático (exceção mais exclusão) ora como duplo-Estado: um confessável democraticamente, outro opaco, porque é antiético. Então, em conclusão preliminar, vigia um “Estado discricionário” no reino da autocracia: as autarquias de poder não recepcionam auditorias da opinião pública. A autonomia se traveste de autoritas. No caso do golpe de 2016, não é tão linear a distinção entre violação interna e externa da Constituição Federal de 1988. Pergunta-se: vige a Constituição Federal de 1988, quando há toma lá, dá cá na política real[281] e um revisionismo sem fim no Judiciário[282] – e que deveria se avaliador da judicialização da política?

O resultado final da pena imposta pelo impeachment é novamente útil à análise. Primeiro: não se sabe se o real beneficiário será o deputado federal Eduardo Cunha – além do partido empossado. Pois, o afastamento da Presidência não veio cominado com a inabilitação para o desempenho de outras funções (art. 52 da CF/88). Nesse caso, o deputado poderia invocar o mesmo tratamento para si. Convém lembrar que as penas, em caso de perda de mandato do Legislativo, são as previstas pela chamada Lei da Ficha Limpa – e não se aplica ao deputado, por óbvio, o que reza a Constituição. Pois, a CF/88 é clara na tipificação dos agentes na cominação dos seus artigos 52 e 85. Se bem que, a essa altura, com tanta violação constitucional, nada assegura a vigência da própria Constituição Federal de 1988. Assim, a conclusão geral que se retira do golpe de 2016, no eixo da Ditadura Inconstitucional – e por demais óbvia no apreço da lógica formal – remete ao fato/fator de que realmente não havia ilícito que consubstanciasse a premissa maior da pena: crime de responsabilidade (art. 85 da CF/88). Dizendo-se de outro modo: absolver no menor ou no conjugado (inabilitação: art. 52, § único da CF/88) infere que a premissa maior não é válida: se não é inabilitado para as outras “funções” públicas derivadas, porque houve afastamento do “cargo” de maior poder? Enfim, não tem lógica. Nesse ponto, chega-se a outra conclusão, essa sim, lógica: a Ditadura Inconstitucional não obedece à lógica aristotélica e nem segue parâmetros democráticos.

Em segundo lugar, outra conclusão derivada implica em que não há Ciência Jurídica, apenas axiologia do poder, porque não se estabelece a lógica jurídica onde impera a imposição/conclusão impressa pelo realismo político. Não há iuris prudentia sem direito justo, pois o formalismo é o de menos, sobretudo, quando o conteúdo não é visível e “prudente”. É justo o direito que é prudente. Ainda que o direito seja fiel à violência que o gera (Benjamin, 2013) e à propriedade, há que se ponderar “a regra da bilateralidade da norma jurídica” (Malberg, 2001) – como defeso contra os abusos de poder e de autoridade – além da “função social da propriedade”: como ícone da Justiça Social albergada na CF/88. Mas, isso conviria ao Princípio Democrático – como princípio ético – e não à Ditadura Inconstitucional. Nesse “novo” domínio, quanto aos poderes em excesso, deve-se observar o entrechoque das instituições.

Como na história da política nacional – recheada de fatos/fatores patrimonialistas (começando pela misoginia[283]) – não há santo sem trave nos olhos, as críticas remetem às vaidades que não ultrapassam os interesses ocultos, não se sustentam na rotina burocrática. Equivale a dizer que, dentre os fatores extrínsecos ao poder, há uma vaidade de nomes citados com justa causa[284]; enquanto, de outro modo, como fator intrínseco, a paralisia institucional socorre ou cumpre a missão da seletividade política. Em tudo, enfim, o mundo jurídico é indiferente e inerte diante do realismo político.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Teorias do Estado: ditadura inconstitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5410, 24 abr. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65594. Acesso em: 23 nov. 2024.

Mais informações

O presente trabalho é resultado de uma pesquisa de Pós-Doutorado em Ciências Políticas, realizada no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da UNESP/Marília, sob a supervisão de Marcos Del Roio, professor titular em Ciências Políticas pela mesma universidade.

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